
Créditos: Divulgação
21-08-2025 às 08h44
Andreia Donadon Leal*
Nunca fui remunerada pelos meus textos. Não sou escritora profissional com um contrato assinado; embora tenha assinado um de um livro que aguarda publicação. A editora é tradicional na área literária, mas isso não me transforma em autora reconhecida. Completei 21 anos dedicados à arte de colocar palavras na folha de papel, explorando os seixos da prosa e poesia. Essa maioridade literária me deu experiência e autonomia para imprimir meus discursos e volteios sobre a vida. Sou, de fato, uma escritora da margem, do interior, cuja voz ressoa em publicações de jornais locais, onde meus textos encontram espaço para transpirar e respirar.
Aprecio reparar nos pequenos instantes da vida cotidiana: na flutuação graciosa de um beija-flor malabarista bebericando néctar em flores equilibristas, no riso espontâneo de uma criança que brinca na calçada, ou na conversa desinteressada de pessoas que esperam na fila do banco, compartilhando histórias que muitas vezes vão além das palavras. Esses momentos nos oferecem uma versão da vida como ela é – despida de filtros e algoritmos, crua e autêntica, revelando a complexidade das emoções humanas em sua forma mais pura.
Recentemente, em uma clínica, enquanto aguardava para fazer raio-X do meu pé direito, ouvi a lamúria de uma mulher que se queixava de não ter feito mamografia. Oito anos haviam se passado desde seu último exame, e ela reclamava do profissional de saúde, atribuindo a culpa a ele. A maneira como sua frustração se manifestava me fez refletir sobre as pressões que todos enfrentamos em nossa jornada. Embora duvidasse da veracidade de suas queixas, optei por não discordar, pois percebi que a dor que ela sentia era intensa. Em pouco tempo, ela desfiou uma ladainha de reclamações que revelava angústia e solidão severa. Concluí que precisava de um profissional da área da saúde mental para ajudá-la a lidar com suas dores. Ofereci meus ouvidos. É nessas horas que aprecio minha empatia de escutar os estranhos.
Sinto que ouvir alguém desabafar é um gesto de empatia necessária.
Guardei meu celular de lado; o texto que eu pretendia escrever poderia esperar. A senhora não. Tive compaixão. Sua alma precisava desabafar. Falou sobre seus filhos adolescentes, que já não conversavam com ela, encerrados em seus próprios mundos de celulares e namoros. “Essa fase é assim”, tentei confortá-la, reconhecendo que muitas famílias enfrentam a mesma realidade. Ela recordou os velhos tempos, mergulhando em uma nostalgia que me causava dó. A perda é um tema que nos une. Sentimos falta dos pais quando partem. Sentimos falta dos irmãos que se vão, das risadas compartilhadas nas tardes ensolaradas. Sentimos falta dos amigos que se afastam, das conversas que pareciam intermináveis. Sentimos falta da infância, quando a inocência ainda nos abraçava e os problemas pareciam distantes. A gente perde pessoas e coisas, e sente muita falta. Disse-lhe, compreendendo que cada perda deixa um vazio terrível, mas que vai embora com o tempo.
Sou testemunha da revolta e da carência daquela senhora, e isso não me causa danos, mas uma profunda reflexão sobre a solidão que carregamos ao longo do tempo.
Compartilhei com ela que aprendi a transformar períodos de solidão em arte, uma maneira de dar voz às minhas emoções e experiências. A arte, em sua essência, é uma das companhias mais férteis que podemos ter, pois nos oferece sem exigir nada em troca. Proporciona horas de prazer, acalma o espírito e revela nossas potências criativas internas, permitindo explorar novos horizontes e dar vida a sentimentos enrustidos.
Mostrei à senhora algumas telas e esculturas que havia criado, cada uma delas carregando uma história e fragmento de minha criatividade. Falei sobre como cada obra nasceu de momentos de introspecção e solidão, e como esses períodos podem se transformar em algo belo.
Ao final, percebi que, apesar de nossas dores e perdas, sempre podemos encontrar uma forma de nos conectar, seja pela escuta, seja pela arte. Estamos todos entrelaçados nas histórias dos outros, e, mesmo autora da margem, minha voz ressoa em constante diálogo com o outro.
E assim, em meio ao fluxo da vida, continuo a escrever e a ouvir, a transformar o cotidiano em arte, e buscando poesia nas interações mais simples, porque, no final das contas, é isso que nos torna humanos e menos reféns de algoritmos!
*Andreia Donadon Leal reside em Mariana-MG. Membro da Academia Marianense de Letras e da ALACIB. Mestre em Literatura e Doutora em Educação. Autora de 30 livros.