Como curiosidade conto que cresci até ouvindo de bons companheiros dizerem que, então, tudo era resolvido “bocalmente” e quaisquer tratos, garantidos pelos fios dos bigodes.
05-01-2025 às 09h59
José Altino Machado*
Era conhecido e muito por João Doido. Negro forte, musculoso e autoritário que só. À época, um leal companheiro de meu pai, podendo ser considerado sua sombra. Anos sem fim, vidas e lutas em comum.
Pai se meteu em tudo de revolução acontecida no Brasil nos famosos anos trintas. João com ele. Meu velho, um jovem militar. João, mais que civil, ia sempre de penetra. Inexplicavelmente, ninguém jamais ousou questionar sua presença.
Com as Volantes Mineiras, a cavalo, vararam o inexplorado Mato Grosso, chegando à fronteira do Paraguai, atrás da Coluna Prestes. Episódio marcante aos dois por verem acabarem a “boia” da cantina, restando apenas bolachas. Nenhum dos dois nunca mais suportou nem ouvir falar em bolachas Maria. A boa da ocasião…
Chegavam mesmo, a boca miúda, a comentar que João seria um Anjo Negro, que Deus enviara para proteção do então arrojado capitão Altino. Ficando mais que digno de nota, o vínculo de confiança e lealdade estabelecida entre os dois.
Quando tenente, delegado regional a cavalo, tal como Ranger’s americanos, pai encontrara o João em Barbacena-MG. Lá e bem dentro de um famoso manicômio, que nem sei se ainda hoje existe. Se existir, não podemos mais por modernos sentimentos de preconceitos, assim o chamar. Inventaram outras palavras que, como dizem, mais palatáveis e politicamente corretas…
Só que, o João era doido apenas por uma semana no mês. Na lua cheia. Verdade!!! Com ela a brilhar, ele subia num toco e discursava a noite inteira. Ouvidos houvesse… Nas outras três, um silencioso e enérgico trabalhador, homem severo de respeito.
Quando rapaz ainda, em noite do grande luar, pegara sua muito amada esposa, em flagrante, em sua própria cama com seu melhor amigo fornicando. Um cabra safado chamado Laurentino. Bão, daí para frente, nas noites das luas brilhantes, ele endoidava invocando o demônio a quem passara a chamar Laurentino. E tome palavrório…
Pai um oficial PM de Minas Gerais, já exímio precursor da aviação, casado, pai de três de uma conta que fecharia em onze, estabelecera a família em uma fazenda em “formação” nas florestas do vale do Rio Doce, como ele dissera para entusiasmar mãe a assumir a aventura.
Requisitado com seu avião, para em companhia do General Falconiere, fiscalizar e lançar o traçado e construção da BR-4, hoje BR-116. Resultado, praticamente dois anos, pelos céus, fora de casa, de mãe, nós três, e do fazendão.
Do cascalho do chão da Rio-Baia, até a propriedade apenas 11km. Entretanto, uma estradinha, que hoje chamaríamos de varadouro, meio a selva bruta. Suas margens cheias de macacos, onças, veados e antas. Lembrando não haver rádios, telefones e nenhum outro meio de comunicação não fora a boca humana a ser ouvida.
Como curiosidade conto que cresci até ouvindo de bons companheiros dizerem que, então, tudo era resolvido “bocalmente” e quaisquer tratos, garantidos pelos fios dos bigodes.
E toda nossa família, até os que vieram depois e muito depois, é grata àquele, a quem pai entregou e confiou deixar a guarda, não só da gente, mas a todos os seus selváticos bens: o João Doido. Um homem incrível… A sintonia entre eles, homens verdadeiros, foi boa, útil, imediata e sólida, até que a morte carregasse Joao.
Atropelado três ou quatro vezes pelos ônibus da viação São Geraldo, quando na marra tentava pará-los, porque como dizia, transportavam o rapariga do Laurentino. Bois e vacas então, em profusão, pegavam o João de tudo quanto é jeito. Tudo isso quando doidão.
À frente da casa, no terreiro grandão, onde “maiava” o gado havia um enorme cocho, peroba pura, onde ao luar, o João subia para falar aos Deuses e aos Diabos. Na maioria das vezes com uma de minhas duas irmãs, ou eu mesmo, em muitas ocasiões, em seu colo. E mãe não estava nem aí e ainda dizia que eu, preguiçoso, apesar do vozeirão falador, dormia nos ombros do bom homem.
E foi assim…
Aprendemos desde o berço, a não termos nenhum recalque de preconceitos e a amar todo e qualquer indivíduo a que nos seja próximo e nos queira bem. De amigos e companheiros, de quem de nós se aproximou, não mais nos abandonou ou nos deixou com saudade quando ainda vivos. E somos gratos a Deus e principalmente à nossa mãe e o berço de criação recebida para a vida.
Hoje, o que mais se vê, é uma absurda e inútil imposição de combate aos preconceitos de formas e maneiras inteiramente equivocadas. Agravadas por recheios de más intenções de efeitos midiáticos.
Botaram até na lei…e dá cadeia. Como o Estado ou se isso pudesse ou fosse aplacar sentimentos. E digo mais, muita de gente ganhando notoriedade, política e mesmo dinheiro com a exploração deste trágico deslize social a ser corretamente corrigido nos seres humanos. E isso nunca vai ser obedecido por algo escrito em nenhum, Vade Mecum, jornal, novelas de televisão, em cinema ou livro.
Existiram sim, dominadores e dominados e isso pertence a história do homem e se acabou. Por agora, será sempre coisa da educação, talento e por que não, inteligência própria de cada um. O que não é difícil a que cada ser tenha oportunidades.
De alguma maneira, não mais existem no planeta, isolados como a fazenda em “formação” nas matas das Minas Gerais, estão todos aí dentro dos melhores acertos.
Martin Luther King, aquele que tinha um sonho, Morgam Freeman que sempre pergunta, por que tanto falam nisso, Lazaro Ramos e Taís Araújo, que por luzes próprias, cintilam sem favores, Gloria Maria a talentosa viajante sem substituta, o sensacional Obama, o magistral Grande Otelo e tantos outros. Nenhum deles precisou de amarras de leis, cotas ou afins para alçarem voos com seus talentos e vocações.
Tornou-se curioso o uso econômico e político de tais agruras dos sentimentos da humanidade.
Estive por vezes na África, dito berço da humanidade. Na África do Sul, de onze diferentes etnias, seu maior líder e herói negro, Steve Biko, foi precocemente morto. À sua falta, assume o status, Nelson Mandela, após bodas de prata numa penitenciária, condenado por terrorismo com vítimas.
Ressurgiu iluminado e promovido, pelos ingleses, que em histórico litígio com africâneres, buscavam assegurar patrimônios, haveres e bens, sempre ameaçados por terem sidos derrotados na conhecida guerra dos Bôeres.
E jamais entendi como a comunidade negra, com praticamente 70% do eleitorado deu mais de 40% dos votos ao postulante branco e Nelson o negro, só se sagrando vitorioso, pelo fato dos britânicos haver com agrados financeiros e comerciais cooptado o rei Buthelezi dos Zulus, que “democraticamente” mandou a seus súditos votarem em Mandela.
Sem nenhuma vergonha divulgaram o acordão. Criando com isso um incompreensível mistério “socio” econômico… parecendo brasileiro, uai.
Somos mineiros, das Minas, não das Gerais, único Estado organizado e região do mundo no qual escravos combatiam ferozmente ao lado de seus patrões. Também únicos com liberdade em fins de semana para afazeres próprios de acordo a seus interesses pessoais.
Pela união deles, foram expulsos das minas mineiras todos os intrujões paulistas. Os de boa índole e gente como minha mãe, ficaram.
E a herança deixada por ela foi algo formidável e maravilhoso… Transmitindo o melhor dos ensinamentos, ou seja, que ninguém no mundo, diferente do berço materno e de uma cuidadosa mãe, conseguirá acabar com a maldita praga do preconceito racial na vida dos homens.
O resto é ao uso de interesses… utilizando as cores que Deus deu a humanidade.
Belo Horizonte/Macapá
*José Altino Machado é jornalista