05-1-2025 às 11h51
José Luiz Borges Horta*
No alvorecer da Nova República, o Brasil viveu momentos de intensa euforia durante o Governo Sarney, tanto no processo de reconstitucionalização do Brasil quanto com as eleições presidenciais de 1989, as primeiras a se realizarem pelo voto direto desde o pleito de 1960, que elegeu Jânio Quadros presidente da República. Aqueles que vivemos 1989 somos capazes de recordar da intensidade deliciosa daquelas circunstâncias, em especial do protagonismo de Marília Gabriela, a jornalista da Rede Bandeirantes de Televisão que dirigiu, como pôde, os mais saborosos debates políticos já realizados na política brasileira. Como saíamos de uma ditadura, ou ao menos assim pensávamos, os debates eram livres, acalorados, intensos, confrontadores; nada segurava os candidatos, dispostos a tudo para vivamente participarem do jogo democrático.
Uma candidatura, no entanto, foi mais debatida e intensamente aguardada que todas as demais, sem que gerasse o registro de um nome na lista na cédula de votação (que à época ainda era palpável, material, concreta — e não imaginária e virtual como passaria a ser depois do governo Fernando Henrique Cardoso).
Durante semanas, o Brasil parava nas noites de domingo para ouvir o apresentador Silvio Santos debater, ao final de seu programa dominical, a possibilidade de sua candidatura à presidência da República. O governo Sarney, resistente a apoiar as candidaturas de políticos oriundos do Ministério Sarney, como Aureliano Chaves, Ministro das Minas e Energia, que se candidatava pelo PFL, Affonso Camargo, Ministro dos Transportes, que se candidatava pelo PTB, ou mesmo o grande algoz de Sarney no PMDB, o presidente da Câmara dos Deputados e da Assembléia Constituinte, Ulysses Guimarães. Ulysses se candidatava pela tradicional legenda que elegera, cinco anos antes, Tancredo Neves e seu vice José Sarney para operarem a tão desejada transição democrática — transição que não houve, ou transição que não se concluiu, ou que talvez nem se iniciou, como tempos recentes o tem demonstrado, do poder militar ao poder civil. O governo Sarney era alvo de todas as candidaturas que se apresentavam, cada uma delas, como candidaturas de oposição.
Não restava ao governo, como aliás Saulo Ramos, consultor geral da República e Ministro de Estado da Justiça o descreveria em seu sensacional O Código da Vida, alternativa, a não ser encontrar uma candidatura que, por conectada supra-democraticamente ao eleitorado, pudesse ultrapassar os limites de uma candidatura de situação ou de oposição e ter presença garantida no segundo turno, que então a Constituição inventava e se aplicaria por primeira vez, de modo que o governo não ficasse tão terrivelmente desguarnecido tido diante do processo eleitoral em curso.
Assim, o senador Marcondes Gadelha vinha articulando a candidatura de Silvio Santos à presidência da República pelo Partido Municipalista Brasileiro (PMB) — imagine-se! — e o povo brasileiro acompanhava atentamente as articulações, ansioso para votar em alguém que as famílias e os eleitores conheciam há muito.
Não é preciso dizer que a candidatura Silvio Santos, registrada em 30 de outubro, foi fulminada no Tribunal Superior Eleitoral, a época presidido pelo mineiríssimo Ministro Francisco Rezek (em sua primeira temporada como ministro do Supremo Tribunal Federal). Curioso que o TSE não se valeu do argumento de que Silvio teria de ter se afastado meses antes da Televisão, e não o fizera, aliás a candidatura estava sendo debatida abertamente na Rede de Televisões de que detinha a concessão — o TSE simplesmente extinguiu o Partido, em 9 de novembro, em ação movida pelo futuro presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, por óbvio anulando o registro da candidatura, deixando o governo federal sem qualquer possibilidade hoje consistente de intervenção naquelas eleições de 15 de novembro de 1989.
A par de um certo antissemitismo, que persiste impedindo brasileiros de origem judaica de alcançarem a presidência da República, do episódio restou apenas a maledicência dos que viram na nomeação do ministro Francisco Rezek como chanceler do governo Collor e depois de sua nova nomeação como Ministro do Supremo Tribunal Federal (em nova temporada) como uma benesse decorrente do agradecimento do presidente Collor pela intervenção cirúrgica da chamada jurisdição eleitoral na garantia do processo eleitoral que o acabaria elegendo. O detalhe mais divertido: Sílvio Santos detinha, nas pesquisas de intenção de voto, cerca de 30% (trinta por cento) do eleitorado, enquanto Collor alcançava, contra ele, no máximo 20% (vinte por cento), o que apontava para um segundo turno entre os dois candidatos. (Collor foi ao segundo turno com 30,5% dos votos, e durante dias houve disputa — travada, diz-se, mesa a mesa de contagem de votos — pelo segundo lugar entre o candidato que encabeçara a cédula de votação e Leonel Brizola, este afinal com 16,51% dos votos e Lula com 17,19%, uma diferença fenomenal de 0,68% dos votos, ou 454.656 votos).
Ali estava clara, no entanto, uma das características centrais do jogo político brasileiro, como movimentado nas muitas décadas de experiência democrática, iniciadas com a derrubada da Ditadura Vargas em 1945: a ojeriza a candidaturas populistas. O Brasil tem uma rejeição visceral, instalada em parcelas significativa do meio político, a candidatos de grande apelo popular, que de alguma forma lembrem o caudilho de 1930 ou quaisquer dos seus correlatos filo-fascistas que tanto horror trouxeram ao mundo nos anos 1920, 1930 e 1940 (aqui, indistintamente, o horror se dirige a um Hitler como a um Stalin, a um Mussolini como a um Salazar, a um Perón como a um Franco, todos compreendidos como expressão do mesmo fenômeno: o caudilhismo de líderes políticos muito mais fortes pessoalmente que nas habilidades propriamente incitas ao jogo político — e é de reparar-se que os Estados Unidos da América, que sempre se colocaram antipodalmente em relação aos caudilhos, conseguiu enfim encontrar o seu, na polêmica figura de Donald Trump).
O antipopulismo tem raízes profundas na alma do brasileiro, que resiste intensamente ao jogo personalista, mas paradoxalmente não consegue se livrar da imagem de um pai generoso, lentamente decantada da figura de Dom Pedro II e de sua bonomia, e depois reafirmada manu militari pela presença insidiosa dos retratos de Getúlio Vargas nas salas de visita das casas de todos os brasileiros durante os descomunais horrores da ditadura Vargas, quem sabe derrubada em 1945. O paradoxo brasileiro reside nessa tensão permanente entre o desejo de um Dom Pedro II que nos garanta a existência como país e o asco de um Getúlio Vargas que não nos permita nem sequer em mínimo de liberdade em nossas próprias casas.
O espírito da UDN, a brava e combativa União Democrática Nacional que resiste a tudo e segue incomodando os consensos políticos de ocasião, é e sempre foi o espírito do antipopulismo, como grande Otávio Soares Dulci clarificou em seu A UDN e o antipopulismo no Brasil. Mas nem só a UDN é antipopulista; toda a resistência política realizada no Brasil é de natureza antipopulista, numa forte tendência a “fulanizar” o processo político.
A imensa resistência a personagens de apelo direto com a população é uma constante da vida política brasileira. Um exemplo cabal dessa constante é o horror à figura de Carlos Lacerda, muito provavelmente o maior e mais bem capacitado político da história do Brasil, que no entanto, pela profissão jornalística e pela capacidade retórica infinitamente superior à dos adversários, sofreu as mais intensas perseguições, mesmo dentro de seu próprio partido político, tornando-se os defensores de Lacerda em lacerdistas, quando na verdade o Clube da Lanterna que no entorno de Lacerda florescia era apenas um desdobramento da Banda de Música que desde sempre representou a mais fina flor da UDN. Publicamente, no imaginário político, lacerdismo e antilacerdismo se faziam maiores do que o próprio udenismo, o que é absolutamente ilusório. Do mesmo modo, janismo e ademarismo se colocavam nos anos 1960 como forças políticas efetivas, o que é totalmente descabido mesmo para os padrões da política paulista (que como sabemos é menos política que a política desenvolvida nas demais unidades federativas brasileiras, talvez com a honrosa exceção da luminosa presença de Gilberto Kassab, paradigma inequívoco de liderança política hábil e talentosa).
Se repararmos com atenção, toda a trajetória de Carlos Lacerda é vítima de uma tentativa de apagamento tal que as suas inequívocas virtudes pessoais, aquelas que o aproximavam diretamente do povo, fossem simplesmente desconsideradas nos livros de história. O exemplo mais claro desse apagamento é a Frente Ampla pela Redemocratização do país, lançada por Lacerda junto a Juscelino Kubitschek de Oliveira e a João Goulart, próceres do PSD e do PTB, com os quais Lacerda se compôs em defesa da redemocratização do país dois anos após o advento de 1964, Frente Ampla que culminou na cassação dos direitos políticos do próprio Carlos Lacerda, se não mesmo no assassinato de todos os três líderes meses antes da Anistia de 1979 (aparentemente Juscelino morreu de acidente em 22 de agosto de 1976, Jango morreu de infarto em 06 de dezembro de 1976, e Lacerda morreu de gripe em 21 de maio de 1977, nove meses exatinhos e terríveis). A Frente Ampla segue sem nenhuma representatividade na história política brasileira, embora tenha unido em 1966 três dos maiores líderes de toda a história política brasileira, no intento de impedir a evolução do regime militar no Brasil.
Curioso que Juscelino também tivesse o mesmo tipo de contato direto com o povo e o mesmo tipo de reserva em seu próprio partido político, no qual a Ala Moça que Juscelino em grande parte representava sofria restrições do grupo hegemônico, liderado pelo introdutor de JK na política, o indefectível Benedito Valadares, interventor ditatorial em Minas Gerais entre 1930 e 1945. Jânio também sofria das mesmas restrições, muitas vezes do mesmo Carlos Lacerda, afinal responsável pela sua derrubada e pela sua Renúncia em 1961, de vez que o plano mirabolante de implantação de uma ditadura janista no país foi denunciado por Lacerda na noite de 24 de agosto de 1961, gerando a Renúncia de Jânio na manhã seguinte, a sexta-feira 25 de agosto daquele ano. Aliás, a Frente Ampla pela Redemocratização do país, Lacerda a formou com Jango, e não com Leonel Brizola, outro líder de cunho pessoal e caudilhesco, responsável pela construção de um mito em torno de si e que, por muito pouco, não foi presidente da República eleito em 1989 (menos de um por cento dos votos válidos, como vimos).
Parece haver uma constante no Brasil desde o movimento de 1964: Essa constante é uma forte resistência ao populismo, colocando o movimento de 64 como uma revolução antipopulista. Compreendido desse modo, como um movimento que visava cada vez mais expurgar da vida pública líderes personalistas, o movimento não terminou, nem em 1967, nem em 1969, nem em 1985 ou 1988, mas prosseguiu na figura deplorável dos políticos gerentes, aqueles que não possuem atributos propriamente retóricos ou de contato direto com a população, mas que possuem suposta competência técnica (poiética, denunciará Joaquim Carlos Salgado) para gerenciarem “racionalmente” a Política — como se a Política pudesse ser fruto de decisões racionais ou como se houvesse a possibilidade de uma racionalização matemática das escolhas políticas.
Essa resistência a comunicadores diretos na política é correta, uma vez que a política e o desenvolvimento político exigem, e isso é inquestionável, uma maior ideologização e uma decisão política popular em sede do voto baseada em ideias e não em impressões acerca de pessoas, mas vem sendo feita, como se vê, no Brasil, como talvez em boa parte do mundo, do modo mais inapropriado possível: combate-se o mal com mal de igual força.
A um líder populista, costuma-se ofertar outro vir de cariz igualmente pernicioso ao sistema e à democracia, operando uma progressiva radicalização e uma nefasta polarização no jogo político. Quem quer que tenha vivido o processo eleitoral de 2022 saberá a dor terrível e incontornável de um processo político polarizado à exaustão, mas basta um mínimo de memória das eleições presidenciais posteriores a 1989 para reviver o desprazer incontrolável e tedioso de ir a um segundo turno falsamente polarizado entre duas candidaturas que, no fundo e na própria superfície, ofereciam ao eleitor mais do mesmo. Não se trata de demonstrar mais uma vez a obviedade de que tucanos e petistas pertençam ao mesmo universo ideológico e tenham as mesmíssimas raízes doutrinárias; para isso já há farta bibliografia e a presença de Geraldo Alckmin, o governador tucano que mais vezes esteve à frente de São Paulo, na vice-presidência de Lula, o comprovam ampla e generosamente.
Tucanos e petistas, no segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, sempre foram expressão de um falso duopólio, tedioso e despolitizante, neoliberal e desideologizante, fake e unfare, no qual somente se podia experienciar as mesmas políticas e as mesmas concepções de desenvolvimento econômico, com muito pouca margem de mudança, algo amplamente verbalizado pelos governantes depois de eleitos. Lembremos que em 2018 o processo alterou-se, o que se deu precisamente pela emergência de uma nova forma de caudilhismo que forçou o desaparecimento da falsa ala-direita do mundo tucano-petista e, apenas quatro anos depois, a adesão do candidato tucano naquelas eleições (de 2018) ao candidato petista nas eleições de 2022. Bolsonarismo, esse era o nome do monstro que fazia unificar-se o falso duopólio.
Apresentar uma resistência populista ao populismo é, estruturalmente, insistir no populismo e insistir nas suas raízes antidemocráticas: há estudos sobre o bonapartismo e o cesarismo, sobre democracias plebiscitárias como falsas democracias, como os conduzidos por Adamo Dias Alves na UFMG, que deixam claro que escolhas plebiscitárias definitivamente não se encontram no plexo das democracias genuínas. Mais que isso, pensar em uma democracia não é pensar em uma escolha de tudo ou nada, ou em escolhas binárias, uma vez que o raciocínio binário é substancialmente infenso ao desenvolvimento da inteligência e portanto também ele contrário ao desenvolvimento político: a Política exige pluralidade, e pluralidade não existe nem pode existir onde o desenho personalista, caciquista ou caudilhesco se sobrepõe aos desenhos de escolhas partidárias e ideológicas.
Democracia verdadeira é aquela na qual as escolhas são feitas com base em idéias, e não em pessoas ou em perfis pessoais. Portanto, combater bolsonarismo com lulismo ou o petismo com bolsonarismo é forçar o eleitor a ter de escolher entre o fogo e a panela, entre o inferno e o coisa-ruim, como no jargão popular se cansa de dizer. Nem na cruz, nem na caldeirinha, pode existir a salvação para a Política.
No modelo ucraniano de democracia, o povo elege diretamente um humorista, para um governo de manobras risíveis, que ao invés de uma comédia geopolítica apresenta-se como uma tragédia humanista de grandes proporções; pior, mesmo diante do final do mandato para o qual terá sido eleito o comediante, segue o governo tragicômico a divertir o mundo, enquanto o país se dissolve em uma guerra, no mínimo, no mínimo, palhaça.
Não que possamos evocar, neste momento, um modelo genuinamente europeu de democracia em nossa defesa. Sabemos que a democracia alemã e a democracia francesa estão em profunda crise, uma pela subserviência a interesses internacionais e outra pela subserviência a interesses econômicos: nada obstante, tanto franceses quanto alemães conseguem ainda dizer com clareza a seus governos, clareza do fogo nas ruas ateado pelos cidadãos franceses e clareza do verbo irresponsável lançado tantas vezes pelos eleitores alemães, que não aceitam os seus governos antidemocráticos e vão exigir deles grandes mudanças. Apesar dos pesares, franceses e alemães ainda resistem a seus governantes e mandam recados duros por meio das urnas, coisa que os ucranianos nem a bala conseguem fazer (não há balas, como não há governo nacional).
A democracia deve ser aquela forma de governo na qual o povo constitui o governo e o povo o destitui. Portanto, há alguns requisitos da democracia que não podem ser afastados, sob pena de não mais reconhecermos uma democracia como tal: é preciso que uma democracia seja uma Democracia Parlamentar; por isso é preciso que um governo possa ser derrubado pelo Parlamento; por isso é preciso que o povo vote livremente em partidos políticos que se apresentam com (e como) idéias e não com lideranças personalistas — é preciso que o povo possa se identificar com conjuntos de idéias e não com títeres messiânicos que se coloquem diante do eleitorado como se pudessem representar a salvação perdida em meio a um deserto de homens e de ideias, como não cessava de diagnosticar, aliás, o festejado ministro da ditadura Vargas, Oswaldo Aranha, glória do Alegrete.
Enquanto resistirmos às “figuras” políticas por não serem figuras da Política e a elas contrapusermos “figurões” da Política, estaremos condenados a viver não com uma candidatura Gusttavo Lima a presidência da República, mas com protagonismo indevido de lideranças messiânicas e por isso mesmo incapazes de se submeterem efetivamente ao processo democrático de debate e construção do futuro do país. Que crédito podemos dar aos hipócritas que resistem a uma candidatura Gusttavo Lima quando iriam em folguedo às ruas a favor de uma candidatura Chico Buarque ou de uma candidatura Luciano Huck?
* José Luiz Borges Horta, 53, é Professor Titular de Teoria do Estado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e foi Coordenador Estudantil da Frente Parlamentarista Republicana em Minas Gerais, em 1993. Itamarista há mais de trinta anos, votou quatro vezes em Ciro Gomes para a presidência da República. Coordena na UFMG o Grupo internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado e o Grupo de Pesquisa dos Seminários Hegelianos. Professor Visitante na Universitat de Barcelona, é membro da Sociedade Hegel Brasileira e do Centro de Excelência Jean Monnet em Estudos Europeus. Contato: zeluiz@ufmg.br