Amazonas seca e os nossos olhos ficam marejados
A questão é que os invernos não estão produzindo grandes formações de gelo, o que acarreta pouca água no processo de derretimento, na primavera.
26-10-2023 às 09:05h.
Rogério Reis Devisate*
Nem o imenso Rio Amazonas está imune às perturbações climáticas.
A partir desta constatação, confesso que adoraria que as previsões estivessem erradas e que as nossas gerações não viessem a sofrer com os sombrios prognósticos já feitos para os próximos anos. Contudo, o otimismo e as palavras não podem negar a realidade dos fatos.
A baixa das águas dos rios muito decorre da diminuição das geleiras dos Andes.
A questão é que os invernos não estão produzindo grandes formações de gelo, o que acarreta pouca água no processo de derretimento, na primavera.
A menor quantidade dessa água afeta diretamente o volume dos rios Solimões e Negro e de outros tantos que se alimentam daquelas fontes.
O tema é tão significativo que até o enorme lago Poopó, na Bolívia, chegou a secar, em 2021, mesmo ano em que, aliás, foi noticiado que a neve estava muito reduzida na Cordilheira dos Andes.
Portanto, o que vem ocorrendo é um quadro dantesco, envolvendo o sistema de abastecimento natural de toda a Bacia Amazônica, por águas provenientes das geleiras andinas.
Esse complexo de condições existenciais forma um sistema único e, como se vê, apesar da sua imensidão, extremamente vulnerável às deformações climáticas.
Quem diria que algo tão grandioso seria tão frágil!
No mundo, a cada dia anunciam-se medidas, ideias, propostas e esforços para vários problemas ambientais, com a natureza dando gritos cada vez mais estridentes e evidentes, sinalizando-nos que o tempo urge e que talvez sejam necessárias mais ações concretas e de âmbito global do que experiências isoladas e utópicas campanhas de propaganda.
Um exemplo curioso que deve nos fazer refletir é a proibição de distribuição gratuita de sacolas plásticas nos mercados, quando sabemos que podem ser usadas, desde que os consumidores paguem. Coisas assim não funcionam...
Se a preocupação fosse real por parte de todos os líderes mundiais, no mínimo poder-se-ia logo estabelecer imposto para cada tonelada de poluente lançada na natureza, com percentual único a incidir sobre a quantidade de poluição produzida e com o resultado sendo utilizado para pesquisas e medidas de controle ou minimização dos problemas já conhecidos. Infelizmente, isso não seria do interesse das grandes potências e dos que focam apenas na dominação econômica e política.
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Além disso, o quadro real está além da percepção da imensa maioria, mais preocupada em viver um dia de cada vez, como der.
Enquanto isso, assistimos calor extremo em várias regiões do globo, alterações na temperatura das águas oceânicas e ocorrências de chuvas e alagamentos extraordinários, com precipitações de fortes chuvas até no seco deserto de Death Valley (Vale da Morte), um dos lugares mais áridos e quentes dos Estados Unidos!
Por outro lado, o brotar de uma flor na Antártida pode parecer vitória da persistência sobre as dificuldades, embora, na verdade, signifique ausência de condições climáticas saudáveis.
De fato, nem todas as flores significam boas notícias, havendo as que integram as coroas, nos sepultamentos.
A nossa existência sangra na ponta da mesma faca que a humanidade afiou para o seu progresso.
Pode haver exagero por parte de alguns, com o medo servindo para a adoção de medidas de dominação, controle e cobiça, manifestando, ainda, traços de anti soberania, como se os maiores poluidores da Terra pudessem, sem fazer o dever de casa, dar lições a outros.
O que fazer quando o imenso rio serpenteia pela floresta em quantidade menor de volume e as suas águas não mais invadem as áreas dos imensos tradicionais alagados, deixando a rica flora e fauna exposta ao sol e ao barro rachado nas bordas das calhas dos rios?
O que fazer quando os brasileiros que lá vivem ficam sem água potável, comida e transporte de medicamentos, combustível e tudo o mais que circula apenas por barcos, através dos rios, canais e igarapés?
Dói ver as embarcações coloridas, lindas e tão significativas, encalhadas no barro. Causa agonia ver as casas de madeira, no alto dos barrancos, no seco terreno, tão distantes da beira dos rios ou das águas onde flutuavam. É triste ver mortos os botos, peixes e outros animais. Não morrem sozinhos; morremos com eles.
Quem vive naquela imensidão - e, também, quem conhece um pouco daquela realidade - sente doer o peito diante da tão impactante baixa do nível das águas.
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Para se ter uma ideia, o Rio Negro, com a imensa cidade de Manaus à sua margem, está 13 metros abaixo do nível normal – o menor volume, nos últimos 121 anos! Isso significa que está cerca de 40 metros abaixo do volume máximo que atingiu no ano passado, quando a cheia teve 29,70 metros de altura. A diferença equivale ao tamanho de um prédio de 12 andares!
Detalhe: como corriam em imensa planície, as águas costumam atingir quilômetros e quilômetros de mata adentro, nas duas margens. Só vendo para se entender o significado daquele rio de dimensões oceânicas se espraiando floresta adentro...
Não se falou, ainda, no impacto para o solo, pobre em essência e que só atinge bom poder de fertilidade quando está protegido pela cobertura vegetal úmida e em decomposição. O drama dessa seca é, portanto, maior do que as notícias conseguem expressar.
As queimadas atingiram níveis alarmantes, com Manaus sendo envolta em fumaça, como se fosse cidade à beira de usina de carvão e não de grande floresta.
Não sejamos inocentes. Enquanto há os que querem cuidar, há os que querem aproveitar-se do momento para esticar a corda e achar rachaduras na nossa Soberania, por onde possam penetrar com os seus tentáculos e, sob a bandeira ambiental, nos criar amarras e impor regras e, quiçá, até sanções. O foco acaba sendo distorcido.
É preciso transparência para se construir diagnóstico claro, com propostas realistas e mensagens possíveis de serem assimiladas por grande contingente populacional.
É urgente que o discurso tenha legitimidade, para ser aceito pela humanidade, acompanhado do exemplar compromisso real por parte dos grandes poluidores globais e sem o dedo em riste apontado para a pequena poluição individual, causada por pessoas comuns.
Outro dia ouvi que temos de agir enquanto é tempo. Tempo para se arrepender e corrigir alguns rumos.
Parece que a humanidade segue num barco imenso, onde há festa, música, bebidas, dança e risos, no qual os salões iluminados criam distrações e paixões fáceis, permitindo-nos viver na ilusão de que tudo vai bem, não nos dando sequer motivos para olhar pela amurada para observar a noite escura com os seus monstros e mistérios, até que eventual iceberg metafórico surja, atrapalhe a nossa negação e nos force ao reencontro com a realidade.
* Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.
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A seca deste Ano foi uma surpresa para a população residente na capital, diferentes para os que habitam as margens desse gigante doce rio, onde o impacto da seca foi maior isolando os municípios e prejudicando a população e os animais aquáticos e os demais.