05-01-2024 às 11h11
Marcelo Galuppo*
Sabia que o certo é “Quem tem boca vaia Roma”, e não “Quem tem boca vai a Roma”? Não, eu não sabia, pensei comigo. E ninguém mais sabe. É impressionante que as pessoas estejam dispostas a inventar explicações estapafúrdias quando desconhecem as verdadeiras, mas mais impressionante ainda que estejam dispostas a acreditar em qualquer coisa que pareça indicar um mistério ou um erro oculto no que os outros dizem e fazem. Não quero dar uma de Cândido de Figueiredo (que escreveu O que se não deve dizer, obra divertidíssima, mas de pouca serventia nos dias de hoje, mesmo aos de falar mais empolado), mas é tudo “invencionice de Dona Teodora das Sabichonas”.
Tome esse exemplo: “quem tem boca vai a Roma”. Alguém um dia decidiu que lhe parecia sensato que o que todos diziam contivesse um erro que escapa ao homem comum, porque, afinal de contas, falta a todos o bom senso que abunda nesse iluminado, pensa ele. O problema é que o ditado existe em outras línguas tal e qual. Em francês, diz-se “qui a de la langue, va jusqu’à Rome”: quem tem boca (ou língua) vai a Roma. É o mesmo dito, cuspido e escarrado (e não “esculpido em carrara”, como corrigiriam alguns).
É também o caso do irritante risco de morte: a expressão risco de vida estaria errada porque o perigo que se corre é o de morrer. Parece muito sensato. Jornais e revistas decretaram em seus manuais de redação que a expressão correta era risco de morte. Essa ideia foi encampada até por filólogos, como Sacconi (ainda que ele não desautorize risco de vida). Faltou foi combinar com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, que abona apenas a expressão risco de vida (Vol. II, p. 3264). Faltou explicar a Padre Antônio Vieira, que notexto Como se há de governar o gentio que há nas aldeias do Maranhão e Grão-Pará, usa a expressão risco de vida (“seus pais os foram buscar ao sertão com trabalho, risco de vida e dispêndio da fazenda”). Faltou explicar também a Machado de Assis, que diz no Quincas Borba (capítulo LXVII) que o personagem buscara “salvar uma criança com risco da própria vida”.
Há também o caso das falsas etimologias (não é um problema moderno: Isidoro de Sevilha, no século VI, em seu livro Etimologias, quando não sabia uma, inventava, e mesmo Camões atribuía o nome da cidade de Lisboa à sua suposta fundação por Ulisses). É o caso da palavra aluno. Na versão dos iluminados da internet, sua origem é sem (a, em latim) luz. Ernesto Faria, em seu Dicionário de Latim, ensinava que alumnus nada tinha a ver com luz: era a criança que mamava do peito e, depois, o discípulo, uma pessoa criada e cuidada por alguém, como diz o Dicionário Caldas Aulete (daqui a pouco aparecerá alguém para indicar meu erro: uma dupla negativa – “não existe nenhum” – é uma afirmativa, o certo seria “não existe um”, ou “existe nenhum”; é preciso dizer-lhe que isso é crasso anglicismo, que não se aplica a línguas latinas, mas não tenho tempo aqui para tanto).
Não se trata de problema exclusivo do Português: assisti há dias um vídeo muito bonitinho de um menininho norte-americano de uns seis aninhos que ensinava magistralmente a seu pai que tea (chá, em inglês) viria do nome da companhia portuguesa responsável pelo comércio do produto com a Inglaterra: Transporte de Ervas Aromáticas. O Dicionário Oxford, no entanto, diz que a palavra vem do malaio, que por sua vez é um empréstimo da palavra chinesa chá, mas vivemos em uma era em que se confia mais em um vídeo gravado por qualquer um do que em bons dicionários organizados por lexicógrafos reconhecidos, como Aurélio Buarque de Holanda (que virou sinônimo de dicionário), Antônio Houaiss, Caldas Aulete e tantos outros.
Que pessoas se equivoquem, não é nada estranho (errei de novo!), mas que achem que sua ignorância possa ser sanada por seu desejo de parecerem espertos, e que haja pessoas que as achem realmente espertas, é aí que mora o problema. Não sou filólogo, dicionarista, membro de academia de letras ou colecionador de aforismos. O que me interessa nisso tudo é, em primeiro lugar, o delírio daqueles que não sabem e pensam que sabem mais do que os que realmente sabem. Mas o que me interessa ainda mais é porque pessoas sensatas caem nessa balela.
René Descartes inicia o Discurso do método dizendo: “o bom senso é a coisa mais bem compartilhada no mundo, pois cada um pensa estar tão bem provido dele que, mesmo aqueles que são os mais difíceis de se contentar em qualquer coisa, não costumam desejar mais do que já possuem”. O filósofo principiante pode pensar tratar-se de ironia. Não é. Descartes acreditava que a inteligibilidade do mundo e a possibilidade de conhecermos objetivamente a realidade dependem de compartilharmos o mesmo bom senso. Sem isso não pode haver leis da ciência. O que me pergunto é por que, nos dias de hoje, deixamos de compartilhá-lo, por que deixamos de endossar expressões que nossos antepassados usavam, e que pareciam muito naturais, para adotar versões delirantes. Não, Umberto (Eco): o problema não é que a internet deu voz a idiotas: é que lhes deu mais ouvidos.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG e autor de vários livros, como Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, pela Editora Citadel. Ele escreve aos domingos no Diário de Minas.