
Hospedaria do imigrantes Horta Barbosa em Juiz de Fora - créditos: divulgação
08-02-2025 às 13h00
Wilson Cid*
O segundo caso sobre momentos de maior agitação em que italianos foram protagonistas ocorreu em novembro de 1891 na Hospedaria dos Imigrantes Horta Barbosa, na Tapera. Uma crônica de desespero que acabou dando lugar à violência. Fome, sede, doenças, frio, mau cheiro, banhos escassos, insegurança, crianças raquíticas esperando a morte, e constantes brigas entre famílias por causa de espaços mal divididos. A quem visse poderia parecer que outro italiano, o Dante, da Divina Comédia, esteve ali para escrever no pórtico do inferno: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrarte”.
Eram 1302 estrangeiros, maioria de italianos chegados aqui ao embalo da promessa de emprego fácil nas fazendas de café recém-desabilitadas do braço escravo. Antes deles, pretendeu-se o trabalhador chinês, ideia logo abandonada, considerando-se a distância para a viagem. Os descontentes não apenas queriam trabalho, mas que, pelo menos, 100 famílias permanecem juntas nos locais onde passassem a morar, o que confirma a preocupação com um dos valores de raça que eles traziam, ainda que sob a vida miserável. Como as promessas demoravam a se converter em realidade, certa manhã de novembro a explosão. Os gritos. Desespero. Polícia e feridos.
Por fim, chegaram a paz e as providências para o encaminhamento de parte dos trabalhadores, distribuídos entre Juiz de Fora e outros municípios da Zona da Mata. Muitos descendentes nesta região podem hoje ser considerados filhos mais que legítimos da rebelião na Hospedaria. Alguns sofredores escaparam da roça e ficaram para trabalhar na cidade.

É preciso demorar um pouco neste ponto para se conhecer o primórdio da civilização que ia se revelar diante de nós. Não diferentemente do que ocorreu no resto do País, em Juiz de Fora o volume maior da imigração se deu entre 1880 e 1910. Fatores diversos haveriam de contribuir para localizá-la nesse tempo, influindo principalmente o fato de então a Itália não se encontrar nacionalmente organizada. Eram províncias e regiões mais ou menos autônomas, em alguns casos verdadeiros feudos isolados, cada qual com seus hábitos e dialetos. Tanto que, quando embarcaram para o Brasil, aventura mar adentro, ocorreu de muitos nem poderem se comunicar, o que explicaria, tempos depois, o citado esforço de famílias na Hospedaria da Tapera para permanecerem juntas nos locais de trabalho para onde fossem designadas. Eram aquelas que já se conheciam a bordo. Pode ser que nem atinassem, mas nisso estavam elaborando o primeiro modelo de defesa e vida em comunidade, o que deviam conservar para não perecerem culturalmente. Precisavam estar agrupados.
Ainda para refletir nessa mesma linha, sabia-se que, quando solteiro, o jovem imigrante sentia a premência da instituição familiar. Procurava logo a moça do mesmo sangue para casar. Abria-se o caminho das descendências, na mais prolífera de todas as comunidades estrangeiras; um campeonato no qual disputavam, com sírios e libaneses, fôlego e tempo na obra da procriação.
Para confirmar o que revelou em 2013 a Embaixada da Itália: naquele ano, o Brasil contava com 30 milhões de descendentes diretos e indiretos. Temos uma parcela nessa estatística nacional. No mapa dos estados por eles preferidos, Minas está no terceiro lugar, superada apenas por São Paulo e Rio Grande do Sul. No painel mineiro, recorda-se que a preferência dos italianos e “oriundi” contemplou o Sul e a Zona da Mata, e, nesta, particularmente Juiz de Fora, desde os tempos da Tapera, onde para eles o governo Bias Fortes havia mandado construir a famigerada hospedaria.
Pode-se pensar, à primeira vista, que tais informações resultam apenas em relativa importância, quando estão em tela as bases da etnia. Mas observe-se que, no seu conjunto, as opções regionais, assim como as atividades escolhidas e o sistema familiar adaptado, são a fonte da formação daquele patrimônio de que tanto se valeram para se manter, longe das origens territoriais.
Para Juiz de Fora, ocorre outro detalhe significativo, ainda com relação à preocupação deles com o “estar juntos”. Porque, antes de chegarem aqui, mas desembarcados no porto, aqueles que nos seriam destinados ficaram unidos para quarentena na Ilha das Flores. Já sabendo seu destino, permaneceram ali por alguns dias, talvez duas semanas. Saindo, foram levados para Petrópolis. Uns 600. Mais uns 10 dias e, de trem, rumo a uma Juiz de Fora da qual pouco haviam ouvido falar. Inseparáveis.
Desse mundo de horror, na Tapera, acabou saindo personagem internacional: Domenico Marchioro (1888-1965), que em 1920 voltou para a Itália, depois de ter trabalhado na Industrial Mineira, sendo “um dos pequenos escravos desse cotonifício, onde eram comuns as chicotadas sobre o corpo dos meninos sonolentos, às 12 horas de trabalho diário, o salário miserável”, como escreveu.
Em 1924, Marchioro ingressou no Partido Comunista Italiano, preso durante 20 anos no regime fascista, mas eleito para integrar, em 1946, a bancada comunista da Assembleia Nacional Constituinte, onde ganhou expressão. Certa vez, em Roma, com Luiz Carlos Prestes, tratou das “lembranças do lúgubre e triste edifício da Hospedaria Horta Barbosa.”