
Toda a obra de Darcy, toda a sua vida, tem uma palavra síntese. Esta palavra é paixão. CRÉDITOS: Divulgação
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22-05-2025 às 09h07
Rufino Fialho Filho*
Para todos aqueles que lutaram ao lado de Darcy Ribeiro, para aqueles que foram condenados (gloriosamente, justamente, condenados) ao lado de Darcy Ribeiro, contemporâneos de um brasileiro, têm a obrigação (a honra) de confessarem: conheci um brasileiro e tenho o orgulho de fazer parte de um time de derrotados com a coragem de cerrar fileiras na batalha de um mestre escola a nos ensinar o valor da solidariedade, da amizade e do amor.
Ele nos mostrou nós mesmos. Indicou caminhos? Mais perguntou a mostrar a raiz (foi exatamente isto, radical) de nossas mazelas, da falta de caráter de nossas elites. Perguntou sempre, exaustivamente, porque queria respostas. Enfim, era sempre a mesma e instigante pergunta.
Por que o Brasil não deu certo até agora?
As primeiras respostas, ele as alcançaria com a consciência histórica da realidade.
Enfim, não deu certo por que?
“O que está aí, está mostrado. É a fome, a pobreza, o analfabetismo, a exploração estúpida com o consumo de vidas, de homens e de gentes pelo capitalismo canibal”.
A realidade identificada de olhos bem abertos aponta todas as mazelas que devem, com a urgência do agora, serem extirpadas. É o mestre a dar lições como criador de uma universidade (criou duas) para titular doutores em sabedorias – a dos pajés, por exemplo; a dos mestres seleiros (*), por exemplo, que levou de Montes Claros para a UNB. Criador de uma escola que alimenta, sabedor de que devia defender o básico, ler, escrever, contar e comer. Saber comer tão fundamental quanto a leituras e a matemática.
No Senado desta República, dialogou não apenas com os seus pares, destes puxava as orelhas, “indisciplinados, corrompidos pelo triste destino de serem políticos construídos pelo barro da corrupção”.
Dialogou mais com o seu povo e o nosso senador escrevia cartas ao povo brasileiro ao mesmo tempo em que concluía O Povo Brasileiro.
Um furacão passou por Minas
O objetivo aqui é registrar a passagem do antropólogo e professor Darcy Ribeiro por Minas Gerais, em um período, em que ele foi governo: março a setembro de 87
Período em que criou polêmicas:
- O caso do Aço x Cimento;
- O patriarcado mineiro e a UDN;
- Os intelectuais e o eruditismo: o discurso poético de Luiz Leal e a educação etc.
- Darcy não é mineiro? Não há certeza.
- Darcy não é brasileiro? Não há certeza?
- Foi apenas um menino. Na realidade, um moleque. Um moleque que quis ser gente, metido a besta e que carregou Montes Claros na cacunda a vida inteira. Ele saiu de Montes Claros, mas Montes Claros nunca saiu dele e o perseguiu por todos os cantos do mundo, seguindo-o nos cárceres e nos exílios.
Este flagrante é da passagem política por Belo Horizonte por sete meses. Tempo em que conviveu no poder do Estado de Minas Gerais com Alberto Sena Batista e com Carlos Olavo da Cunha Pereira
Minas não teve um furacão. Jamais ocorreu algo parecido em Minas. Não há registro nestes mais de quatro séculos. Tufão, totalmente improvável. Não há registros.
Todos os registros da presença de um vulcão e até mesmo de um furacão, fenômenos da natureza, estão todos associados a um homem: Darcy Ribeiro.
Como um furacão, sua passagem foi rápida, violenta, deixou marcas profundas e não há como apagá-la da memória dos mineiros que conviveram com ele. Os mineiros quase o resgataram para sua Minas, mas Darcy escapou e, como um furacão, desapareceu, mais uma vez, em nossas almas.
No final da década de 80, Carlos Olavo e Alberto Sena trabalharam com Darcy Ribeiro, ali no edifício do BDMG. Uma época de convivência intensa. Darcy morava na rua Espírito Santo e escrevia, ditando, o MIGO, em quem ele resgata os nossos sonhos de “Colosso” e de grandeza numa história de lutas e de muitas derrotas.
Em 1989, com Carlos Olavo, na direção de um velho carro, um Passat (ele tem boa memória e este carro fez história também), Darcy, sua secretária Naná, mulher de um jornalista carioca e ela jornalista também e eu, percorremos o Vale do Aço e o Vale do Rio Doce na campanha de Brizola presidente em 1989, contra o Collor e o Lula.
Este episódio, um farto material para reflexões políticas (e eleitorais) daria para o Carlos Olavo escrever, aos 90 anos, “Na saga dos anos 80”.
PAIXÃO É SÍNTESE
Toda a obra de Darcy, toda a sua vida, tem uma palavra síntese. Esta palavra é paixão.
Grande sempre foi sua alegria e sua imensa paixão.
Se na paixão houve uma que se sobressaiu esta foi, sem dúvida, a sua paixão pelo Brasil, isto é, pelo povo brasileiro.
Uma paixão cultivada, uma paixão racional, uma paixão extremamente consciente.
Ele sabia em que terreno pisava.
Nenhuma ilusão.
Para um homem com a sua inteligência e erudição, ele sabia que, entre as muitas razões, que davam sustentação à sua “estranha loucura” estava o Brasil que ele conhecia e o Brasil que ele odiava, o Brasil falso, o Brasil desigual, o Brasil da elite corrupta e sanguinária, mas estava também um outro Brasil, o verdadeiro Brasil – só que ele sabia que este Brasil era um país sonhado, um país imaginado, uma imagem.
Daquele Brasil falso, daquele Brasil desigual, daquele Brasil que era uma farsa, Darcy extraia o povo e apontava para o seu povo alguns caminhos, como o mais aberto de todos: a educação.
E o seu exemplo, a fé inesgotável nas pessoas, o carinho e a alegria, o continuar, o resistir, a luta permanente e contínua, o nunca desistir.
Um homem imbatível, ele quer o seu povo assim.
Darcy continuaria a criar este país (a imaginar este país) mesmo quando distante dele, vivendo os dias de exílio, proibido de voltar.
De volta, seria exuberante em sua produção e da sua vida brotariam muitas palavras, muitos livros, escolas e inúmeros exemplos para aqueles que queiram algum dia ser homens públicos e que acreditam que é possível forjar as bases de um verdadeiro país e de uma sociedade que elimine, de uma vez por todas, não apenas a desigualdade, mas a mais sórdida das explorações e que se sustenta pela imposição de uma linguagem sofisticada e suja, uma linguagem econômica e embrutecedora, uma linguagem de servos e de marionetes.
Ninguém amou mais o Brasil e ninguém revelou mais o Brasil aos brasileiros do que Darcy Ribeiro.
O Brasil que ele amou não existia, existia apenas em sua imaginação – ele amava e muito o seu povo, o povo brasileiro e odiava a sua elite e todos aqueles que traem, permanentemente, este povo.
O Brasil que ele revelava era o Brasil da injustiça, da desigualdade e da violência, o país real com todos os seus males, o país que não dá certo, que não dará certo e que terá que desaparecer do mapa.
Há um país a ser derrotado e há um país a ser construído.
O que “existe” não vale nada, não vale um tostão furado.
O irreverente e o irônico Darcy Ribeiro
Da Prudente de Morais, pegamos a Donato da Fonseca, Darcy Ribeiro iria gravar um programa eleitoral para a campanha de prefeito de Belo Horizonte em apoio ao candidato do Partido Socialista. Darcy já não era mais secretário de Estado em Minas e voltava para cumprir um compromisso com os seus companheiros que propunham sua candidatura a prefeito para a criação de uma base para a campanha presidencial de Leonel Brizola em 1989.
Era 1988.
No primeiro quarteirão da Donato da Fonseca, Darcy perguntou para um menino de 11 anos se ele sabia quem era Donato da Fonseca.
A partir daí, Darcy discorreu sobre o político e, conquistada a atenção do menino, desenvolveu uma história sobre as opções de todos os cidadãos que se preocupavam com a vida da cidade e com a vida dos nossos índios.
O menino caminhou até a porta da produtora, continuou conversando com Darcy. Os dois ficaram na porta e nós entramos. Quando ele entrou na produtora, alguém perguntou:
- Darcy, quem foi Donato da Fonseca?
- Não sei. Um bom diálogo começa com uma pergunta e com a nossa ignorância. Donato da Fonseca foi o gancho para a conversa. Funcionou. Falei para ele sobre a importância da pergunta. Despertada a curiosidade, o menino escarafunchou minha vida com os índios.
- Donato da Fonseca foi um dos fundadores da Faculdade Livre de Direito de Belo Horizonte, em 1892 – disse Celso Araújo, proprietário da produtora.
A última aula
“Darcy Ribeiro lutou até o fim. Essa luta tem um dado que talvez poucos conheçam. Creio que tenha sido numa sexta-feira, eu telefonei ao Hospital Sarah Kubitschek, onde ele estava, e marcamos para conversar na segunda-feira, na casa dele, de tão otimista que ele estava.
“Naquele dia, exatamente uma sexta-feira, Darcy Ribeiro disse a uma profissional do Hospital Sarah Kubitschek, a Drª. Lúcia, Lucinha, como ele a chamava:
“Eu preciso desesperadamente dar uma aula, mas eu quero dar esta aula a uma criança, me arranja uma criança”.
Lucinha levou o filho Felipe, que tinha 10 anos, e Darcy Ribeiro deu uma aula de Antropologia para o menino.
“E, dessa aula – ela lembra e diz que o menino nunca esqueceu. Dentre as coisas para mostrar o que é uma sociedade, ele explicou porque é preciso fazer uma universidade e um sambódromo, porque um é a cultura da elite e o outro é a cultura do povo. Um casamento unindo a sociedade pelo conhecimento, pela alegria.
“Esse casamento, ele dizia a um menino de 10 anos, é aquilo que é preciso fazer no Brasil”.
“Ele terminou a aula, tomou banho, barbeou-se, como me disseram, colocou perfume – porque era vaidoso, como Vera Brant deve saber -, deitou-se, entrou em coma e morreu poucas horas depois.
“O homem que fez tanta coisa morreu como professor, por opção dele. Morreu como professor de crianças, por opção dele. E o que parece um rebaixamento – professor de criança -, na verdade, é a elevação máxima que ele percebeu, certamente inconsciente, a elevação máxima de quem está na véspera de entrar para a História, porque ele foi um político da História, não do poder.
Senador Cristovam Buarque em 21/03/2007. Discurso durante a 32ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal na Homenagem à memória do educador, intelectual e Senador Darcy Ribeiro, pelo transcurso do décimo aniversário de seu falecimento.
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/pronunciamento/367328
Os seleiros de Montes Claros que foram levados por Darcy para a UNB: José Paraíso, casado com Belormes, e João Par ou Ímpar, croupier. Os dois resgataram Darcy Ribeiro e Waldir Pires, do esconderijo em Brasília e os levaram até o aeroporto rumo ao exílio no Uruguai.
Vulcão não tem em Minas Gerais. Na região de Diamantina, área de intensa pesquisa e exploração mineral, o máximo que se chega na descrição seria de uma área de fundo de mar. Ali teria sido, outrora, um grande mar oceano. Talvez, na região de Araxá se encontre aquilo que seria marcas de um vulcão extinto.
*Rufino Fialho é Jornalista