
Gravura do livro Tragédia Biológica da Mulher - créditos: divulgação
27-07-2025 às 10h00
Gisele Bicalho (*)
Trecho da “receita” datada de 1942, em que o médico recomenda para a paciente a leitura do livro “Tragédia Biológica da Mulher”. Imagem – arquivo pessoal
Aqui em casa moram muitas memórias. Estão espalhadas em fotos, vídeos, cartas e bilhetes. Cada um carrega em si pequenos pedaços da nossa história. Há até pedras, como aquela em formato de coração, presente do papai para a Jacqueline. Foi recolhida no leito do Rio Pará. Hoje, reina na mesa de centro da sala de visitas, símbolo silencioso de afeto e permanência.
Há também memórias que não nos pertencem. Estão nas taças que coleciono há décadas, cada uma com origem e alma próprias. Algumas vieram do Mercado das Pulgas de Paris. Outras chegaram de Conceição do Pará, do modesto Topa Tudo, onde a simplicidade escolhe o que merece permanecer.
São objetos, sim. Mas são também testemunhas delicadas das pessoas que fomos, dos encontros que vivemos, dos olhares que guardamos.
Recentemente uma das minhas irmãs encontrou dentro de uma latinha uma receita médica datada de 1942. Foi prescrita para a minha avó. Mais que uma receita, é, na verdade, uma carta datilografada que retrata a época. Além da indicação dos medicamentos que Vovó deveria usar, traz também reflexões sobre como manter a harmonia no casamento, orientações religiosas e uma recomendação médica insólita: para entender sua sexualidade e saúde, que lesse o livro “A tragédia biológica da mulher”.
Reconheço que eram outros tempos, mas hoje só consigo vê-lo como de fato é: um aconselhamento clínico travestido de julgamento muito comum naquela época. Era como se o simples fato de ser mulher já fosse uma sentença biológica, inevitável, trágica.
Vovó seguiu à risca a orientação da carta do médico: certamente usou todos os medicamentos prescritos, manteve harmônico o casamento que ultrapassou as Bodas de Ouro e comprou o livro. Esse acabou herdado pela minha mãe e foi guardado a sete chaves, longe dos olhares e curiosidades da prole.
A questão é que mesmo antes da puberdade eu e minha amiga Aparecida já praticávamos uma espécie de arqueologia doméstica: revirávamos os livros escondidos na estante da minha mãe em busca de pistas sobre aquele mundo secreto chamado “adultos”. Foi assim que encontramos “A tragédia biológica da mulher”. O título, tão dramático, nos atiçava mais do que qualquer sinopse. Que tragédia era essa que morava dentro da gente e que ninguém explicava com todas as letras?
Escondidas em meio às sombras das árvores do quintal, lemos aquelas páginas como quem decifra um mapa. E embora não entendêssemos tudo, havia um peso ali, como se ser mulher viesse com manual de sofrimento incluído.
Na mesma época, minha irmã, dois anos mais velha, ficou menstruada. E o primeiro absorvente que recebeu foi do nosso avô. Sim, do nosso avô. Em um gesto discreto, quase cerimonioso, ele entregou à neta o item como um rito de passagem: “Agora, minha querida, você pertence ao mundo das mulheres”.
Não se espante. Vovô era desse jeito. Amoroso e próximo. Por mais desafiador que fosse o momento ali estava ele, sempre por perto.
Quanto a mim, sofri muito na transição para a adolescência. Na verdade, me recusava a crescer. Gostava das coisas como estavam. A ideia de menstruar me assombrava. Significava abrir mão de tudo, das minhas bonecas, das brincadeiras no quintal, de ter uma goiabeira de estimação, entre outros privilégios reservados à infância.
É inegável que daquela época até agora há muitos avanços. Hoje há aplicativos que monitoram os ciclos e a mulher pode escolher entre dezenas de métodos contraceptivos com autonomia. Só que mesmo nesse cenário tecnológico e aparentemente libertário há julgamentos sutis: na consulta médica apressada, nas propagandas que confundem saúde com estética, nos olhares enviesados ao se falar de prazer. Poderia me alongar aqui e até abrir uma discussão sobre violência obstétrica, entre outros temas que assombram o universo feminino. Mas não é essa a intenção.
Só quero mesmo compartilhar com você que houve um tempo em que o universo feminino era visto e tido como uma tragédia biológica.
A verdade é que cada época carrega seus próprios mitos, censuras e avanços, muitos deles ambíguos. Mas talvez o que nos une seja esse esforço contínuo e silencioso de tentar compreender a nós mesmas para além das prescrições alheias. Sem precisar levantar bandeiras ou justificar existência. Apenas exercendo, com dignidade e coragem, o nosso direito de ser quem somos, com tudo o que acreditamos, sentimos e escolhemos viver.
Ah! E se você se interessou em ler há uma edição de 1932 do livro “A tragédia Biológica da Mulher” à venda no Mercado Livre. Custa por volta R$ 70,00. O nosso não empresto e nem dou. É parte do nosso acervo de memórias.
Abaixo, íntegra da receita, datada de 1942, que o médico prescreveu para minha avó:

(*) Gisele Bicalho é jornalista