
Família tradicional - créditos: divulgação
16-082025 às 14h14
Raphael Silva Rodrigues (*)
Quando recordamos a palavra “família”, uma imagem de um protótipo tende a surgir em nossa mente, nutrida por décadas de publicidade, cinema e convenções sociais: um pai, uma mãe, filhos sorridentes e, talvez, um animal de estimação, todos reunidos em uma casa com um jardim bem cuidado. Este retrato, embora reconfortante para alguns, tornou-se um molde obsoleto e restritivo para compreender a complexa e multifacetada realidade das conexões humanas no século XXI. O verdadeiro sentido de família transcendeu os limites do sangue e da certidão de casamento, firmando-se em um terreno muito mais profundo e significativo: o do afeto, do cuidado e da escolha mútua.
Historicamente, a instituição familiar era, antes de tudo, uma unidade de sobrevivência econômica e social. Casamentos eram arranjados para unir terras, consolidar poder ou garantir a sucessão. A prole era a garantia da continuidade da linhagem e da força de trabalho. Nesse paradigma, o afeto era um bônus, não um pré-requisito. A estrutura patriarcal e heteronormativa não era apenas a norma, mas o pilar que sustentava a ordem social. Questionar essa estrutura era desafiar os alicerces da sociedade e da igreja.
Contudo, as transformações sociais do último século – a emancipação feminina, o avanço dos direitos individuais, a urbanização e as novas dinâmicas de trabalho – erodiram gradualmente esse modelo rígido. A família deixou de ser primariamente uma instituição de deveres para se tornar um espaço de afetos. E é nesse novo solo que florescem as mais diversas configurações familiares, cada uma com sua própria legitimidade e força.
Hoje, a família pode ser uma mãe solo que se desdobra em mil para criar seu filho, ensinando-lhe sobre resiliência e amor incondicional. Pode ser um pai que, após o divórcio, aprende a construir um novo tipo de lar, baseado na presença e na qualidade do tempo compartilhado. É o casal homoafetivo que, superando preconceitos, constrói um núcleo de amor e respeito, mostrando ao mundo que a capacidade de amar e cuidar não conhece gênero. São os avós que assumem a criação dos netos, tecendo uma segunda geração com os fios da experiência e da ternura.
Mais radicalmente, a família contemporânea ousa romper até mesmo a barreira do parentesco. Quantos de nós não temos “irmãos de alma”, amigos que se tornaram o nosso porto seguro, a nossa rede de apoio mais confiável? Esses laços, forjados na cumplicidade das jornadas compartilhadas, na vulnerabilidade das confidências e no apoio incondicional nos momentos de crise, são a mais pura expressão da família por escolha. Eles nos ensinam que o pertencimento não é algo que se herda, mas algo que se constrói ativamente, dia após dia. É a família que nos acolhe quando a de origem nos falha, que nos celebra quando o mundo nos ignora e que nos levanta quando tropeçamos.
Este novo conceito de família, centrado no afeto, não é, de forma alguma, menos exigente. Pelo contrário. Se antes a coesão era garantida pela tradição e pela necessidade, hoje ela depende de um trabalho contínuo de comunicação, empatia, perdão e dedicação. A ausência de um manual de regras predefinido nos obriga a criar nossos próprios acordos, a negociar nossos próprios termos e a sermos intencionais na manutenção dos vínculos. O amor, aqui, é verbo; é ação deliberada.
A função primordial da família, seja ela qual for, é ser a primeira escola da vida. É no seio familiar que aprendemos a nos relacionar, a negociar, a compartilhar, a resolver conflitos e, fundamentalmente, a amar e a nos sentirmos amados. É esse sentimento de pertencimento que nos dá a base emocional para explorar o mundo, para assumir riscos e para desenvolver nosso potencial como indivíduos. Uma pessoa que se sente parte de um núcleo de apoio sólido, que sabe que tem para onde voltar, é mais resiliente, mais confiante e mais apta a contribuir positivamente para a comunidade.
Portanto, celebrar o sentido de família hoje é celebrar a diversidade das conexões humanas. É reconhecer que o que nos une não é necessariamente o DNA ou um documento, mas a teia invisível de afeto, compromisso e história compartilhada que tecemos juntos. Família é quem segura a sua mão no escuro, quem celebra suas vitórias como se fossem as próprias e quem lhe oferece um ombro sem pedir nada em troca.
Raphael Silva Rodrigues: Doutor e Mestre em Direito (UFMG), com pesquisa Pós-doutoral pela Universitat de Barcelona, na Espanha. Especialista em Direito Tributário e Financeiro (PUC/MG). Professor do PPGA/Unihorizontes. Professor de cursos de Graduação e de Especialização (Unihorizontes e PUC/MG). Advogado e Consultor tributário.