
A evolução do voto no Brasil - créditos: divulgação
17-07-2025 às 10h10
Dorgal Borges de Andrada*
A principal conquista eleitoral da humanidade foi o voto secreto, ao lado do direito ao voto feminino. Mesmo existindo eleições para parlamentos e para a Presidência da República mundo afora desde o século XIX, foi somente em meados do século XX que os países, na sua maioria, adotaram o voto secreto.
O exercício do voto secreto tem exigências mínimas: a) estar o eleitor exercendo o voto secreto em local púbico à vista dos fiscais partidários, do povo e candidatos que assim o quiserem; b) o voto ser praticado por meio de uma equipamento (urna) sob custódia, domínio e controle unicamente do poder público – no caso, a Justiça Eleitoral .
Desse modo, vale relembrar que hoje, por exemplo , até nas eleições internas para os cargos no Poder Legislativo, sejam municipais, estaduais ou federais , seus membros se dirigem pessoalmente ao local de deliberação para votar durante a sessão, secretamente, sob a observação e olhar do demais membros e/ou candidatos , no plenário oficial público, aberto a população e a imprensa .
No Brasil, somente após 110 anos de nossa Independência, com a vitória da Revolução de 1930 que sepultou a República Velha (1889-1930), o país implantou o voto secreto e o voto das mulheres, por meio do seu primeiro Código Eleitoral, em 1932, fruto do programa político dessa Revolução. Predominava o semianalfabetismo e cerca de 80% da população vivia na zona rural, quase incomunicável.
Então, com a implantação do voto secreto em 1932, o eleitor passou a ter direito de levar de sua casa até a seção eleitoral as cédulas (voto), escolhidas sigilosamente. Essas cédulas – ou “santinhos” –, em papel, já continham o nome do candidato impresso, seja para vereador, deputado, senador, prefeito, governador, presidente. Cabia aos partidos e/ou aos candidatos a tarefa de imprimir e distribuir para a população as referidas cédulas.
O eleitor escolhia e juntava esses santinhos dos candidatos de sua preferência e os colocava dentro de um só envelope, em sigilo. O envelope, fechado e lacrado, tecnicamente significava a garantia e a conquista do voto secreto, em face do fato de os candidatos serem escolhidos em sigilo.
Ocorre que, na prática, nem sempre era assim tão sigiloso. Como o preenchimento dos votos e o fechamento do envelope – popularmente denominado de “marmita” – eram realizados em casa, em local particular, longe da seção eleitoral, existem notícias que descrevem que algumas vezes estes eram preenchidos sob os olhares vigilantes dos cabos eleitorais, dos ‘coronéis da política’, prefeitos, caudilhos, militantes partidários, chefes políticos locais, ou, dos próprios candidatos ao pleito em questão.
Portanto, nem sempre o próprio eleitor era quem montava o seu voto secreto no envelope a ser depositado na urna eleitoral. Isso porque o voto não era definido e lacrado em ambiente público e sob a fiscalização da Justiça Eleitoral.
Essa fraude em ambiente privado era praticamente impossível de ser contida no país inteiro, em face da atuação de dezenas de partidos, centenas de cabos eleitorais, chefes políticos, militantes e candidatos. As possibilidades de os eleitores se reunirem e serem pressionados eram enormes, em face ao “voto marmita”.
Com a queda do ditador Getúlio Vargas, ante a redemocratização e já em vigor a Constituição de 1946, no ano de 1955 surgiram leis tentando modificar essa maneira de votar. Porém, a real mudança ocorreu apenas com o novo Código Eleitoral, em 1965, que encerrou e eliminou por definitivo o modelo de voto secreto por meio de envelope. Determinou-se que somente a Justiça Eleitoral passaria a confeccionar e imprimir as cédulas, que seriam distribuídas ao eleitor somente no dia da eleição, pelo mesário, dentro da seção e apenas na hora de votar.
O eleitor passou a receber uma cédula oficial de papel, em branco. Daí, entrava na cabine indevassável, onde, sigilosamente ele preenchia o nome e/ou o número do seu candidato na cédula oficial, antes rubricada pelos mesários, e a colocava dentro da urna eleitoral, sendo observado todo esse sigilo diante dos mesários e dos fiscais partidários.
Mas no Brasil tudo se alterou a partir de 1996, com a chegada da urna eletrônica. E, hoje, passados 30 anos da sua implantação, vivemos a novidade da massificação do uso das redes sociais, da internet, e, mais recentemente, da inteligência artificial (IA) no seio da população.
Diante de tantas alterações e avanços profundos nos meios de comunicação e na informática, alguns leigos em direito e muitos sem conhecimento dos princípios exigidos num estado democrático , começam a defender uma possível prática da eleição para mandatos legislativos – ou nas instituições e órgãos públicos – por meio do voto à distância on-line, com uso do telefone celular ou do computador.
Essa ideia merece uma reflexão cuidadosa e até muito aprofundada, diante dos seus efeitos negativos à democracia e às garantias da cidadania. Embora os equipamentos de tecnologia não cessem de avançar, e estejam a nos seduzir e nos encantar, os direitos fundamentais e garantias do Estado de Democrático de Direito, e também a vida humana, continuam bem acima deles todos. Aqueles valores são perenes e intocáveis. As máquinas e equipamentos modernos devem vir para ajudar a vida humana (e se adaptar aos direitos humanos), não o inverso.
Em tempos passados, tivemos o voto via “marmita”, que de alguma forma poderia ser manipulado na origem, mas, tecnicamente, era considerado secreto. Embora o ato de depositar o envelope na urna de fato mantivesse o sigilo do voto, a escolha dos candidatos era feita longe dos olhos dos representantes da Justiça Eleitoral, e permitia a pressão de terceiros sobre a vontade do eleitor.
Aos defensores de um futuro voto à distância on-line, cabe essa mesma reflexão e o questionamento que nos remete a prática do “voto-marmita”, pois essa nova modalidade também permitirá ao eleitor exercer seu voto longe da presença da Justiça Eleitoral, em local privado. E, pior, dependendo do sistema, até terceiros poderão votar de forma fraudulenta com uso irregular da senha.
Portanto, na prática voltaremos ao modelo das falhas do voto realizado longe da fiscalização oficial. Embora a novidade traga a imagem da modernidade, podemos estar a ressuscitar a velha “marmita”, com prejuízo, sobretudo, dos mais humildes e menos informados.
Há informações de que várias entidades particulares privadas, sem a obrigação de seguir preceitos públicos, o direito eleitoral e constitucionais – como clubes, conselhos, condomínios, associações –, já estariam experimentando esse modelo de voto à distância on-line, correndo assim o risco da fraude, ou, de haver o voto sob pressão de terceiros que estarão a observar e conferir qual candidato recebeu o voto do eleitor, numa verdadeira “marmita eletrônica”.
Os preceitos do Estado Democrático de Direito não deixam de existir porque chegamos à Era da Inteligência Artificial (IA) ou do computador. Permanece imutável a garantia constitucional do voto secreto e universal, e proibida a privatização do processo eleitoral, pois anula o direito e dever de o eleitor se dirigir à cabine eleitoral para votação secreta, sob as regras e a observação da Justiça Eleitoral, para ali então manifestar sua vontade livremente.
(*) Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, foi delegado de polícia, promotor de justiça, juiz de direito, professor universitário e autor de livros jurídicos.