
Trump recebe Vladimir Zelensky, presidente da Ucrânia em encontro recente na Casa Branca - créditos: divulgação
26-08-2025 às 12h00
Ana Penido (*) para o Diário de Minas
O mundo caminha para a multipolaridade, mas o Brasil e a África do Sul, embora fortes regionalmente, são mais fracos que os demais candidatos a polos regionais. O caso do Brasil é um pouco pior, pois ele é considerado quintal do principal polo regional, os EUA. Portanto, na leitura do Brasil, dos BRICS, e mesmo da Europa, somos um polo regional. Na leitura dos EUA, não.
O fim da guerra na Ucrânia seria positivo para o mundo, não há dúvidas. Uma guerra com potencial de extrapolação regional que se tornou o motor para o aumento de gastos militares no planeta é negativa pois, acima de tudo, captura os orçamentos nacionais que poderiam ser gastos na melhoria da vida das pessoas.
A paz só deixará como saldo positivo para a Ucrânia o fim da morte dos seus cidadãos, no mais, o país foi derrotado. A guerra também deixa muitos problemas por resolver para a Europa, e saldos positivos para os EUA/OTAN e para Rússia. Para esta última, a guerra colocou um freio à expansão estratégica da OTAN – “por aqui, não passam”. Foi uma derrota bélica, não necessariamente política. A OTAN ganhou novas adesões e renovou o “inimigo” necessário para a sua existência. Especificamente para os EUA, logrou a promessa europeia de gastar 5% do PIB em armamentos (que eles irão vender). O fim da guerra não alterará a percepção de ameaça, e os gastos continuarão. A Ucrânia perdeu território, economia, população e autonomia. No caso da Europa, explicitou-se o que já se sabia: são incapazes de lutar uma guerra sem os EUA, e esse em particular, acelerou sua fragmentação interna. Por fim, a guerra reanimou o verdadeiro significado da OTAN: “manter os EUA dentro, a Rússia fora, e a Alemanha (Europa) abaixo”.
A Ucrânia é um exemplo de que, em um cenário de disputas abertas entre grandes potências, dificilmente os conflitos ocorrem nos terrenos dos gigantes, mas em territórios de terceiros, as proxy wars. A Venezuela é o “território de terceiros” favorito para uma proxy war na América Latina. O Brasil tende menos a ser um “território de terceiros”. Tem peso para articular força própria e alianças com outros para ser considerado um polo em termos econômicos, políticos e culturais. Em termos de defesa, a nossa, em um conflito aberto entre potências, está hoje organizada como força auxiliar dos EUA.
Os EUA estruturam a hegemonia atual em quatro pilares: força/militar, dólar/economia, político e cultural. Se vê muito ameaçado em um deles – dólar (o PIX BRICS é muito interessante, mas um potencial, como é o NBD) –, então tende a buscar se reforçar nos outros, não necessariamente obtendo sucesso. Não vai buscar o isolacionismo, embora aparente que sim. Vai tentar arrumar a casa internamente para estar em melhores condições para a disputa, e internamente, pra eles, inclui toda a América Latina, além dos próprios EUA. Não parecem preocupados com o pé político, que discursivamente sempre foi autoritários x democráticos. Pelo contrário, testam limites internos e externos, tratando mal aliados históricos na Europa, Índia, e até o Canadá. Sinais do neofascismo.
Trump sai na frente dos democratas por assumir o inevitável declínio da potência. Vem fazendo alterações no estado profundo, inclusive na área militar. Não significa que vai chegar às últimas consequências, mas, usando uma metáfora militar, vai fazendo aproximações sucessivas, e com isso, alarga as margens para a extensão do seu poder sobre o que pode ser considerado aceitável, e o que não é. Exemplos: uso de tropas contra o próprio povo (em Washington e em Los Angeles, não existiam crises de “segurança”, mas interveio mesmo assim); mudou a distribuição orçamentária entre as diferentes forças para montar sua guarda pretoriana (o ICE teria condições para isso?); constrói protetorados dedicados à pauta da violência, em diálogo com a cultura punitivista dos EUA (prisão em El Salvador); trocou oficiais do Estado Maior Conjunto por militares alinhados a ele. Há objeções, em especial da CIA e o FBI. Os EUA já vinham, desde antes do Trump, reavivando a Doutrina Monroe e, diante da falta de recursos, recorrendo mais ao “grande porrete” na relação com o resto do mundo. A novidade é que Trump pode estar criando a própria doutrina, aplicando as práticas do ambiente externo ao doméstico. Há preocupação no deep state com a fragilização da segurança nacional estadunidense. O problema é que, se os EUA sofrem uma “falha de segurança”, como um ataque terrorista, Trump pode instrumentalizá-lo, pois uma população ameaçada autoriza medidas que, em outras situações, não aceita.
América Latina
Na doutrina dos EUA para a América Latina, o narcotráfico já era o espantalho principal, e não o terrorismo, que é o espantalho a nível global. Já treinaram bastante na Colômbia para isso. Digo espantalho pois já está mais do que provado que a questão das drogas não é um problema militar, e talvez, sequer seja um problema policial. No Panamá (1989), na Colômbia (anos 2000), e em Honduras (anos 2010), as campanhas militarizadas antidrogas dos EUA não conseguiram desmantelar as cadeias de abastecimento nem reduzir os volumes de tráfico. Conseguiram mudar as rotas, militarizar os atores e desestabilizar os governos.
Mas esse é o argumento óbvio para manter a Venezuela sob pressão (esta, em específico, sequer está nas rotas principais de tráfico para os EUA). Internamente, é justificável nos EUA aumentar o cerco contra a Venezuela, tanto porque as sanções não tiveram o êxito esperado, tanto porque os EUA vivem uma crise de saúde pública em função da dependência. A classe trabalhadora, também nos EUA, está doente.
A pressão sobre a Venezuela de fato é a maior movimentação militar dos EUA no Caribe desde a invasão do Panamá, em 1989, também sob justificativa das “drogas”, contra Noriega. Mas Maduro não é Noriega, e nem a Venezuela um Panamá. Além disso, o deslocamento tem impactos na região toda, em países com peso como o México e a Colômbia. Militarizar o Atlântico resolve também o nó do Canal do Panamá, onde a influência chinesa é crescente, e amplia a relevância da ferrovia de integração sul-americana ainda em projeto.
Por outro lado, os EUA acabaram de autorizar a Chevron a voltar a operar na Venezuela. Os navios podem, assim, funcionar como “policiais”, deixando passar, ou dificultando a passagem de embarcações, a depender da bandeira; causando atrasos e encarecendo transações a depender do país. Assim, embora tenham finalidade militar, e mantenham a Venezuela sob pressão bélica, podem ser usados sob doutrina policial, e obter resultados na área econômica.
Designar normativamente os cartéis como organizações terroristas estrangeiras abre a opção para que os EUA atuem extra-territorialmente como “polícias de cargas”. Além das mudanças de natureza militar, pois um traficante se torna um combatente inimigo, gera impactos no comércio marítimo, que é por onde circulam as mercadorias de países exportadores como o Brasil, além das informações e fluxos financeiros, através de cabos submarinos. O cerco à Venezuela, assim, tem efeitos amplos em toda a região: comerciais, intimidação, mantém Estados em alerta, tem capacidade de ação militar real, e abre espaço para operações combinadas como o atentado na Colômbia, que favorece Uribe, Trump e a militarização.
Uma escalada de natureza militar não seria desprovida de custos para os EUA. Um desembarque dos EUA é pouquíssimo provável, mas a intensificação de mercenários, inclusive colombianos desmobilizados em função da paz na Colômbia, é possível. Substituir Maduro não parece mais ser o plano, mas mergulhar o país no caos, flertando com a balcanização, pode ser uma opção. Desde que mantida a exploração de petróleo (até por grupos criminais ou cartéis), não há problemas com manter o país em meio à instabilidade política. É uma mudança de conduta a nível global. Não controlar territórios necessariamente, ou regimes políticos, desde que garantido o acesso aos recursos.
A autonomia discursiva com subordinação operacional não é uma particularidade do Brasil. Na Colômbia, o status de parceiro da OTAN segue, e recentemente uma delegação da OTAN esteve no país para revisar os currículos de escolas de formação da Força Pública, em busca da “interoperabilidade” nas áreas de AI e logística. Por sua vez, Milei solicitou em 2024 a adesão da Argentina como sócio global da OTAN, status que só a Colômbia tem no continente. O Brasil segue como o principal mantenedor da estrutura militar da OEA, o “Ministério das Colônias”. E, logo depois da carta de Trump, ocorreu na Argentina a reunião dos Ministros de Defesa Sul-Americanos, com a participação de todos os países, menos da Venezuela. Múcio delegou a representação brasileira ao chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, almirante Renato Rodrigues de Aguiar Freire, seu ajudante de ordens e seu adjunto de comando.
Os exercícios conjuntos, método para a construção de hegemonia doutrinária e para a realização de operações de inteligência encoberta, seguem a todo vapor. Argentina participa do Estrela Austral, junto com Chile, Colômbia, etc., no Atlântico Sul. Chile esteve no RIMPAC 2024, exercício marítimo, liderado por EUA e Israel. Equador permitiu em fevereiro a entrada de forças estrangeiras dos EUA e mesmo de empresas privadas como a Blackwater para combater o narcotráfico (terceirização da segurança, problema de outro tópico). No Southern Seas, em 2024, os EUA visitaram portos na Colômbia, Brasil, Peru, Uruguai e Argentina. A lista seguiria, nas diferentes áreas, como a cibernética.
Não basta apenas observar as forças armadas oficiais, mas é notável o crescimento do mercenarismo no mundo, com reflexos aqui. Mercenários colombianos atuaram na Ucrânia, Haiti, Iêmen e Afeganistão. Esses são amplamente requisitados, pois são treinados em atividades de contrainsurgência dentro da própria Colômbia, diferente dos mercenários treinados pela Rússia, que treinam em guerras interestatais. No Haiti, os EUA acabaram de assinar um contrato de dez anos para o enfrentamento de gangues através de mercenários da Blackwater (agora Vectus), e a maioria será contratada em El Salvador. Essa mesma empresa firmou parceria com o Equador, e hoje flerta com o Peru, que terá eleições em 2026. Essa empresa financia a Conferência da Ação Política Conservadora, articuladora do MAGA e dos bolsonaros. A paz na Colômbia ajuda a diminuir o fluxo latino americano de mercenários para o mundo, mas é algo substituível. E o Brasil não fica de fora. Mercenários brasileiros que atuaram na Ucrânia deram curso na AMAN, de pequenas unidades, através da empresa Planton Black Company. Basicamente, estados nacionais perderam a vergonha de fazer negócios com mercenários.
Brasil
Trump agrediu o Brasil. A burguesia se dividiu e a direita passou vergonha, inclusive Tarcísio. Lula se fortaleceu, deve socorrer empresas, mas a classe trabalhadora também foi beneficiada, porque recolocou na agenda temas como soberania, inclusive financeira e militar. Se a autonomia discursiva vai se tornar prática, são outros quinhentos, mas o presidente ganhou em margem de manobra para mudanças.
Os EUA cancelaram treinamento com a FAB, a Conferência Espacial das Américas. Um major da FAB foi aos EUA no Comando Espacial, e outros exercícios já haviam ocorrido em conjunto, como o Sentinela Global e o Panamax. Mas também é bom lembrar que a Embraer, joia da coroa militar que interessa aos EUA, ficou de fora do tarifaço. Não se trata mais de uma aquisição da empresa pela Boeing, mas da manutenção de cadeias de suprimento e do recrutamento dos engenheiros brasileiros.
Na imprensa, as informações são desencontradas sobre de quem partiu a iniciativa para cancelar os exercícios que ainda estariam previstos com a Marinha, operação Formosa (no Planalto central, a mesma em que blindados desfilaram em Brasília soltando fumaça durante o governo Bolsonaro, com um efetivo grande – 2000 homens); e o Exército, operação Core (ocorre desde 2019, cada ano em um bioma. Esse ano estava prevista para a Caatinga, mas chamou atenção no ano passado por ocorrer na Amazônia), em setembro e outubro desse ano. A justificativa oficial do governo é a falta de recursos, pois a prioridade seria a COP 30 e a interoperabilidade entre as Forças Armadas brasileiras (finalmente uma definição de prioridade acertada!). Entretanto, a primeira parte da Formosa (e mais cara) foi mantida, apenas com militares brasileiros.
O conflito geopolítico global se expressa claramente na Formosa. Segundo informações do Estadão, no ano passado, pela primeira vez, a China foi convidada para participar: mandou 33 fuzileiros, mas esse ano não mandaria nenhum. Os EUA foram convidados, mas ainda não haviam respondido; ano passado enviaram 62 militares. Quem vinha em peso esse ano seriam os franceses, com 82 homens. Outras nações latinas também já haviam confirmado. O exercício é um bom exemplo na área militar de que não se trata apenas de uma aproximação com a China, tensionando com os EUA, mas sim do estabelecimento de relações diversificadas.
A presença de dois generais na China ainda é mais pra “chinês ver”, pois as relações espúrias com os EUA passam mais pelo escritório de compras em Washington do que pelos adidos de defesa do Brasil nos EUA. Atualmente, o Exército brasileiro mantém 120 militares nos EUA em atividades de cooperação. A Marinha mantém 100.
Por fim, o Brasil segue tendo um militar no Comando Sul dos EUA. Recentemente, o presidente Lula promoveu o primeiro general brasileiro que ocupou esse cargo, e foi criticado pela medida. Divirjo dessa impressão. O militar estava cumprindo uma tarefa que lhe foi delegada pelo comando, e não deve ser punido agora por, naquele momento, ter se destacado e sido escolhido para ocupar a função cobiçada. Uma medida correta é a extinção da função. Mantém-se os adidos de alto nível, mas não há porque manter um oficial no Comando Sul, ainda mais com a postura intervencionista atualmente adotada.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.