Dom Pedro II - créditos: divulgação
09-11-2025 às 10h20
Rosane Carmanini Ferraz*
Os objetos de uma coleção são pontes simbólicas entre o visível e o invisível, entre o passado e o presente. No acervo do Museu Mariano Procópio, há um pequeno conjunto de pires e xícara do serviço do baile da Ilha Fiscal, um curioso testemunho da cultura material daquele que ficou conhecido no imaginário popular como “o último baile do império”, e que nos remete ao ambiente social e político dos últimos dias da monarquia brasileira.

O objeto em questão provoca algumas indagações, sobre as quais me proponho a refletir: qual a relação do objeto com a trajetória de d. Pedro II e com o fim da monarquia? Como esse item passou a fazer parte da coleção do Museu?
A ilha Fiscal e o palacete: “um neogótico em terras tropicais”
A Ilha Fiscal, pequena porção de terra na Baía de Guanabara, era conhecida como Ilha dos Ratos, originalmente utilizada para abrigar materiais das docas da Alfândega. Em 1881, o inspetor Carlos Américo Sampaio Vianna teve a ideia de criar ali uma unidade alfandegária.
Nessa época, o Rio de Janeiro era um polo de comércio de produtos vindos de diversas partes do mundo. Rotas comerciais que partiam do antigo continente para o Oriente tinham, em muitos casos, a sede da corte imperial como parada obrigatória. O controle do fluxo de embarcações exigia uma estrutura alfandegária capaz de fiscalizar a entrada e saída das mercadorias.
A Ilha dos Ratos era um posto de observação privilegiado, com ótima visão da entrada da Baía de Guanabara, possibilitando o monitoramento das embarcações que atracavam no porto do Rio de Janeiro, ajudando a coibir o contrabando. Assim, a pedra fundamental do futuro posto alfandegário seria lançada em 6 de novembro de 1881.
O projeto inicial foi rejeitado, considerado modesto pelo imperador d. Pedro II. O monarca teria definido a pequena ilha como “um delicado estojo digno de uma brilhante joia”. Atendendo às solicitações do monarca, seria elaborado um novo projeto, de autoria de Adolpho José Del Vecchio, inspirado em construções neogóticas.
A pequena porção de terra passaria então a ser conhecida como “Ilha Fiscal”, em referência à sua nova função. Após oito anos de obras, a inauguração do palacete, que se tornou também um monumento, ocorreu em 27 de abril de 1889. Inspirada nas ideias do arquiteto Eugène Viollet-le-Duc, expoente do neogótico francês, a edificação seria a primeira em estilo gótico do Rio de Janeiro.
O palacete horizontal, referenciado em castelos franceses, foi construído em cantaria, apresentando uma torre central, janelas de vitrais coloridos ingleses, rosáceas e arcos ogivais, além de um brasão do império, esculpido em pedra, em sua fachada. Brasão esse preservado no período republicano pela interferência do autor do projeto arquitetônico.

O torreão, projetado para ser o ponto de observação do posto, dava acesso à sala do chefe da aduana e ao terraço. O projeto previu, ainda, uma escada esculpida em pedra, pela qual se alcança o relógio de quatro faces de origem alemã, localizado no alto da torre. O relógio era ligado ao Imperial Observatório Astronômico, permitindo a correção dos cronômetros dos navios.
Os dois planos formam a planta arquitetônica em “u”, onde o corpo central tem altura superior a 30 metros e as suas alas laterais são demarcadas por pequenas torres que se destacam na horizontalidade da construção. O edifício ocupa uma área de aproximadamente 2.300 m², com a fachada principal voltada para a entrada da Baía de Guanabara.
Na torre do corpo central foi instalado um potente holofote de 60 mil velas, uma grande novidade tecnológica para a época, iluminando grande parte da Baía de Guanabara, auxiliando a fiscalização alfandegária no período noturno. As quatro faces do relógio também seriam iluminadas por energia elétrica, assim como toda a Ilha Fiscal.
O projeto, recomendado para a exposição da Escola Imperial de Belas Artes, foi premiado com a medalha de ouro. A concepção arquitetônica, inclusive, é uma homenagem à casa imperial brasileira, materializada na cor verde das fachadas e nos vitrais representando d. Pedro II e a Princesa Isabel.

Pouco tempo depois da queda da monarquia, em 1893, durante a Revolta da Armada, o palacete seria atingido por tiros de canhão, com danos à alvenaria, mobiliário e vitrais. Ainda no período da primeira república, a Ilha Fiscal foi transferida para o Ministério da Marinha. Inicialmente, funcionou como sede da Diretoria de Navegação e Hidrografia, responsável pela sinalização do litoral brasileiro, e pela elaboração e organização das cartas náuticas. Em 1983, a Diretoria de Hidrografia e Navegação foi transferida para a cidade de Niterói e a Ilha Fiscal foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). Restaurado a partir de 1996, o palacete é transformado em museu. Atualmente, a Ilha Fiscal e o palacete fazem parte do Espaço Cultural da Marinha, e podem ser visitados, onde é possível conhecer a exposição “Ilha Fiscal: um neogótico em terras tropicais”.

O último baile da monarquia
A última grande festa monárquica, ocorrida em 9 de novembro de 1889, apenas seis dias antes da Proclamação da República, ficou popularmente conhecida como “o Baile da Ilha Fiscal”. A chegada do cruzador-encouraçado da armada do Chile, Almirante Cochrane, ensejou a homenagem um tanto quanto exagerada para os moldes da monarquia brasileira. A decisão de organizar o baile partiu do Presidente do Conselho de Ministros – Visconde de Ouro Preto –, com o objetivo de homenagear a oficialidade chilena e a relação de amizade e cordialidade que marcaram as relações entre o Brasil e o Chile.

A realização do baile pode ter tido outras motivações, como apaziguar os ânimos políticos e amenizar as campanhas republicanas e o descontentamento dos fazendeiros escravocratas, insatisfeitos com o desfecho da assinatura da Lei Áurea, que extinguiu oficialmente a escravidão no Brasil sem o pagamento de indenização por parte do Estado. Dessa forma, o baile poderia ofuscar e disfarçar as movimentações de grupos descontentes com as decisões do governo e daqueles que desejavam a queda do Visconde de Ouro Preto. Alguns jornalistas à época também especulavam que o baile significava uma forma extraoficial de comemoração das bodas de prata da Princesa Isabel e do Conde D’Eu, que já havia ocorrido no Cassino Fluminense.
No entanto, o contexto político era delicado, pois a monarquia estava fragilizada pela oposição crescente a d. Pedro II, principalmente por parte dos escravocratas, uma das principais bases de sustentação do poder monárquico, bem como pela agitação causada pelo movimento republicano.
O evento se tornou um dos principais assuntos nas rodas de conversas na Corte. A rua do Ouvidor foi palco de intensa movimentação, com o comércio de roupas e acessórios para o baile, e o vai-e-vem de clientes nas barbearias e salões de beleza. Cerca de 3 mil convidados representavam a alta sociedade imperial: ministros, senadores, deputados, conselheiros de estado, magistrados, diplomatas e altos funcionários, além de representantes dos setores produtivos (indústria e agricultura), e comércio. Amplos setores do exército não seriam convidados, em função do envolvimento com o movimento republicano. Apenas alguns oficiais da Guarda Nacional e das forças armadas se fizeram presentes ao concorrido baile.
No dia do evento, os populares se aglomeraram nas imediações do Cais Pharoux, desde o Largo de São Francisco até o Largo do Paço Imperial, para observar a movimentação dos convidados. Interessante ressaltar que o Cais Pharoux é conhecido atualmente como Praça XV de Novembro, sendo renomeado após a Proclamação da República, como tantos outros logradouros públicos pelo país afora, como estratégia de apagamento da memória monárquica e construção das referências simbólicas republicanas. Cerca de 600 carruagens enfileiraram-se para deixar os convidados no cais, onde aconteceria o embarque para a Ilha Fiscal.
A iluminação elétrica recém-instalada tornava a Ilha Fiscal o único ponto iluminado da Baía de Guanabara. Fogos de artifício ressoavam, enquanto uma banda de música tocava no local do embarque, e os convidados seguiam em barcas e lanchas para a ilha, portando seus intransferíveis convites.
A decoração do palacete foi descrita como um capítulo à parte. Seis salões foram ricamente ornamentados para o baile, com cortinas, tapeçarias, flores, âncoras douradas e prateadas, espelhos e bandeiras do Chile e do Brasil, representando a amizade entre os dois países. Em um dos salões, figuravam retratos de personagens relacionados à independência do Chile, entre eles um quadro do almirante escocês Thomas Cochrane, homenageado com o nome da embarcação que se encontrava em águas brasileiras, e que suscitou a realização do baile.
A ceia e o buffet ficaram a cargo da Confeitaria Pascoal, a preferida do imperador d. Pedro II. O cardápio incluía 15 tipos de pratos frios, 11 pratos quentes e 12 mil porções de sobremesa e sorvetes, além de bebidas variadas entre cervejas, vinhos, champanhes e licores.
D. Pedro II, d. Teresa Cristina e d. Pedro Augusto – filho mais velho da princesa Leopoldina – chegaram ao baile às 9 h da noite, acompanhados do chefe do Gabinete de Ministros e demais titulares dos ministérios. Ao tropeçar em um tapete, adentrando o palácio da Ilha Fiscal, o imperador teria dito: “a monarquia tropeça, mas não cai”. Mal sabia o monarca que, em 6 dias, enfrentaria sua deposição do trono, e a república seria instaurada. Sobre o episódio, os jornais republicanos publicaram charges do imperador desgastado e doente, sendo amparado por seu médico pessoal, o conde da Mota Maia.
As músicas tocavam ao som da Banda da Polícia. Com a entrada da Princesa Isabel e do Conde D’Eu, iniciaram-se as danças: quadrilha, valsa, polca, mazurca e lanceiros. No programa musical, composições de Verdi, Boccherini, Strauss, Henrique Alves Mesquita, Chiquinha Gonzaga e Xisto Bahia.
A imprensa carioca se dividiu em função da linha editorial dos jornais e revistas. As publicações simpáticas à monarquia, ressaltaram a beleza e magnitude da festa, os recursos tecnológicos empregados, e o sucesso do evento. Já as publicações de viés republicano questionavam a suntuosidade do evento e os custos da sua realização para os cofres públicos, satirizando a festa.
Enquanto a família imperial e sua corte entretinham-se no baile, os sócios do Clube Militar, sob a direção do líder republicano Benjamin Constant, tratavam do golpe de estado que derrubou o governo imperial. Assim, a queda da monarquia foi resultado, dentre outros fatores, da atuação do movimento republicano, que se iniciou na década de 1870, do desgaste advindo da Guerra do Paraguai e do movimento abolicionista. A república foi proclamada por meio de um golpe civil-militar, do qual participaram alguns setores das elites política e cafeicultora e alguns intelectuais e militares, especialmente os mais jovens e de baixa patente, e marechais como Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.
O fato é que o baile, que ficou marcado na história da corte imperial pela opulência, luxo e elegância, assinalou o fim da monarquia no país. Os festejos deixaram seus rastros para além das peças íntimas do vestuário feminino e outros vestígios pitorescos. O conjunto de xícara e pires que compõe o acervo do Museu Mariano Procópio é um testemunho material desse evento. Os itens estão listados no Arrolamento de 1944, documento que registra o acervo que compunha a coleção original de Alfredo Ferreira Lage (idealizador do museu), à época de seu falecimento em 1944.
Segundo esse documento, o conjunto do serviço do baile da Ilha Fiscal ficava exposto na sala em homenagem à Viscondessa de Cavalcanti, Amélia Machado Cavalcanti, prima de Alfredo Ferreira Lage e importante doadora de coleções para o acervo do Museu Mariano Procópio. O fato de o conjunto ter sido exposto em uma sala em sua homenagem não é, por si só, suficiente para afirmarmos que os objetos pertenciam aos Viscondes de Cavalcanti, mas é uma possibilidade bastante plausível.
Diogo Velho Cavalcanti, Visconde de Cavalcanti, foi ministro do império em diferentes ocasiões e pastas: em 1870, Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas; entre 1875 e 1877, foi Ministro da Justiça no gabinete organizado por Duque de Caxias; entre 1877 e 1878, Ministro dos Estrangeiros; e, em 1889, passou a integrar o Conselho de Estado. Nesse mesmo ano, foi Comissário Geral do Brasil na Exposição Universal de Paris.
No entanto, sabe-se que os Viscondes já haviam retornado ao Brasil à época do último baile da monarquia. É o que atesta um documento depositado no Arquivo Histórico do Museu Mariano Procópio, datado do dia 15 de novembro, no qual Diogo Velho era convocado por d. Pedro II, por intermédio do Barão de Muritiba, a comparecer ao Paço Imperial em caráter de urgência.
Como conselheiro de estado, o Visconde e a Viscondessa de Cavalcanti foram convidados para o Baile da Ilha Fiscal, mas não há documentação conhecida que permita afirmar que o casal teria comparecido ao evento, bem como não é possível apontar de que forma o conjunto de xícara e pires do serviço do baile foi incorporado ao acervo do Museu Mariano Procópio.
De toda forma, os objetos são fragmentos do evento que deveria representar o poder e a imponência da monarquia brasileira, mas marcou o fim agonizante de uma era, diante de um incrédulo e titubeante imperador. A monarquia tropeçou e caiu. Por esse desfecho, a festa em homenagem à amizade histórica entre Brasil e Chile passou a ser conhecida como o “último baile do império”, marcando simbolicamente os momentos derradeiros do regime monárquico, e o exílio da família imperial em território francês, decretado pelo recém-criado governo republicano.
Saiba mais!
BRAGA, Cláudio da Costa. O último baile do Império: o baile da Ilha Fiscal. Rio de Janeiro, 2013.
CARVALHO, José Murilo de. Pedro II. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.
*Rosane Carmanini Ferraz é professora de história, historiadora e curadora, especialista e mestre em Ciência da Religião, doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente, é graduanda em Museologia e supervisora na Supervisão de Gestão de Acervos Bibliográfico, Fotográfico e Documental, no Departamento de Acervo Técnico da Fundação Museu Mariano Procópio.

