
Ana devia ser um furor de mulher, daquelas que sabem traçar seus objetivos. CRÉDITOS: Reprodução
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09-04-2025 às 09h18
Geraldo Fróis de Almeida*
Ao que parece, o movimento de translação e de rotação dos nossos tempos está em alta velocidade, a tal ponto que não conseguimos mais aplicar, nos acontecimentos do cotidiano a atenção necessária. Uma notícia atropela a outra e nesse ritmo, a nossa memória, desde sempre volátil como o éter, não se prende à recordação dos fatos, sejam importantes, atuais ou não.
No decorrer dos séculos tantos exemplos de heroísmo, de coragem e de bravura se deram e os escrevinhadores da história não conseguiram registrá-los para a posteridade tamanha a falta de discernimento e a incapacidade de apreendê-los para a reflexão dos que viriam depois, como nós, que vivemos a era da internet e agregados.
Em Grão Mogol, que a partir de finais do século 17 entrante pelo século 18 viveu grande efervescência, tendo recebido gente de várias partes do mundo, atraída pelo brilho do diamante, tantos são os fatos históricos que a memória curta não conseguiu registrar para contar aos viventes do século 21.
O AMOR DE ANA É o caso da negra Ana, que deu ao mundo da época provas de amor, destemor e desprendimento ao sair de Grão Mogol (MG), onde nasceu, a pé, para se encontrar com o amor da sua vida, no Paraguai, durante a guerra travada com a Tríplice Aliança, composta por Brasil, Argentina e Uruguai (1864-1870).
Conta o escritor Mário Martins Freitas, nos originais do livro “O Município de Grão Mogol”, que ele não conseguiu publicar, porque morreu antes, a negra Ana, “como vivandeira (mulher que vende ou leva mantimentos, seguindo tropas em marcha) do 17º Batalhão de Voluntários da Pátria seguiu o destino de seu companheiro, um soldado tão preto como ela”.
Conta Martins Freitas: “Não éramos um exército em retirada como o dos dez mil cuja página gloriosa imortalizou a raça helênica e o seu grande historiador Xenofante, nem tampouco os bravos da Laguna, que traçaram uma das mais belas e heroicas páginas da história brasileira, mas, tínhamos a nossa estoica Ana Mamuda, que alimentou centenas de filhos de outras mães, muitas vezes com o próprio sangue generoso, porque os seios milagrosos também secaram como as fontes e as cachoeiras divinas do alto sertão baiano”.
Ela era “mulher de soldado por ocasião da guerra do Paraguai e seguiu a sorte do amante através dos sertões mineiro e goiano até as longínquas plagas do Mato Grosso, incorporada, como vivandeira, ao 17º Batalhão de Voluntários da Pátria, para expulsar o invasor, palmilhando centenas de léguas como o mais levípede dos infantes”.
Tanto tempo depois, é de se ficar imaginando que força propulsora tão intensa e forte levou Ana a empreender essa jornada? Para um homem só, uma empreitada de tamanha periculosidade já seria difícil, faça ideia para uma mulher, além do mais, negra, numa época em que existia a escravatura no Brasil.
Não se tem notícia de tamanha aventura, à semelhança dos bravos bandeirantes que se embrenharam pelas terras brasileiras numa época em que os perigos eram de toda monta – índios inóspitos, insetos vários transmissores de doenças e a lei do mais forte que imperava numa monarquia incipiente interessada apenas nas preciosidades brasileiras para fazer a riqueza de Portugal endividado até o pescoço com a Inglaterra imperialista.
A negra Ana devia ser um furor de mulher, daquelas que sabem traçar seus objetivos. Induzida pela força da determinação, ela abandonou tudo para reencontrar o amor do homem amado. Não se conformou em ficar à espera dele, mesmo porque o retorno do amado era incerto. Ele podia ser alcançado por alguma bala ou mesmo a lâmina de uma espada que lhe atravessasse o peito. E Ana jamais saberia o que acontecera ao homem da sua vida.
Martins Freitas narra os acontecimentos: “Expulso o invasor (ela) acompanhou a coluna vingadora pelas terras paraguaias adentro e foi parte da mais dolorosa de todas as retiradas, quando integrou de corpo e de espírito ao serviço da Pátria ferida. Durante a Retirada da Laguna, no momento em que numerosos feridos enchiam as carretas colocadas no quadrado do 17º Batalhão, tomando ou rasgando as próprias roupas o que faltava para ligar, pensar e estancar o sangue dos bravos e heróis tombados, sob a densa chuva da metralha e do canhão, enquanto suas companheiras de glória e de infortúnio, escondidas sob as carretas, ali disputavam lugar com horrível tumulto”.
“Na passagem de uma ponte, entre as 71 vivandeiras da coluna, já apontada como heroína, havendo-se encarniçado um paraguaio em lhe arrancar o filho, tomara ela de um salto uma espada largada no chão, e num ápice matara o assaltante”.
“Além de brava e valente – contou o escritor – quando o inimigo mais atroz da guerra acercou-se da coluna – a fome e a peste – tornou-se a mais soberba das mães – mãe de filhos de outras mães – mãe de velhos guerreiros exangue e de coléricos condenados à morte, entregando-lhes os seios fecundos e dando-lhe o leite milagroso e, quando este escasseava, o próprio sangue – fonte de sua vida para salvar outras vidas”.
“Ana, simplesmente, era o seu nome, o desse desprendimento divino que só as mulheres eleitas de Deus o possuem, adveio-lhe o cognome de Ana Mamuda, de seios grandes, laços, enchendo o colo portentoso, fonte milagreira de vida para moribundos tantos na tremenda guerra”.
“E não termina ainda a síntese histórica dessa preta gloriosa, agora divinizada pelos guerreiros petrificados na terra inimiga. Acompanhando o 17º pelo Chaco dantesco, além, na famosa Linha Negra, no Saunce e no Piquecerí, em Tuiuti, como em Iomas Valentinas, diz um aedo mato-grossense, “era como o anjo das batalhas, espargindo o bem, e o demônio das refregas, combatendo assaz, nas primeiras linhas em que a batalha se ferir viesse”. Vivandeira e lutadora mordia vigorosamente, com a dentuça prodigiosa os cartuchos e ensinava aos fracos o caminho do dever, enérgica”.
“Historiadores e cronistas, muitos, citam-lhes os feitos e esquecem-lhe o nome, e assim passou quase ignorada para a história pátria. Como outras heroínas que desapareceram na poeira do tempo, ignora-se o seu destino. Em que terra dorme o sono derradeiro? No Brasil, no Paraguai? Mistério. Só Deus sabe o destino dos heróis ignorados”.
* Geraldo Fróis de Almeida é jornalista