Acho que quando se chega nela ou ela chega nele, o indivíduo começa a refletir com mais clareza sobre as apreensões da vida, e é quando num átimo se pode voltar à infância
31-12-2024 às 09h40
Bento Batista*
“A Idade da Razão” é o título do livro escrito pelo filósofo escritor Jean-Paul Sartre (1905-1980), francês de nascimento. O livro é muito bom, mas não é dele que quero falar, senão só do título porque a intenção é assuntar sobre a idade da razão com quem está a ler o texto.
Essa idade mexe com todo homem, que mais dia menos dia chega a ela. Ou não, também. Ou ela chega nele. Isto é, os sobreviventes até ter o privilégio de entrar nela.
Acho que quando se chega nela ou ela chega nele, o indivíduo começa a refletir com mais clareza sobre as apreensões da vida, e é quando num átimo se pode voltar à infância para compreender melhor e concluir ter vivido experiências lúdicas da maior importância.
Por exemplo: o jogo de finca. Uma ferramenta de ferro com uma das pontas afiada para penetrar a terra úmida, é de grande importância para o desenvolvimento da coordenação motora da criança, além da criatividade, a pontaria, a segurança individual, o contato telúrico e outras coisas mais.
Quem jogou finca sabe bem o que estou dizendo. Se ao jogar a finca no chão ela não fincar, este perde a vez e o outro inicia. E assim vai, de fincada em fincada se pode exercitar essas faculdades.
Outra atividade, o jogo da bolinha de gude. Quem jogou sabe o tanto de coisas que se pode aprender e apreender, também relacionadas à coordenação motora e a iniciação do relacionamento e convivência com os outros e uma porção mais.
Mas, o máximo mesmo, eu considero a arte de confeccionar papagaio (pipa) de papel impermeável, também chamado de arara, e de empiná-lo, principalmente com a ajuda de uma manivela.
Pensando bem, a atividade de empinar apetrecho desta natureza pode ser considerada a primeira experiência espiritual da criança, mesmo ela não sabendo que é.
Se a gente adicionar ao cortar o papel no formato da arara; preparar as taliscas de taboca ou bambu, raspar direitinho para ficarem lisinhas; colar cada uma delas no papel, em lugar certo; seja “sureco” ou com rabiolas; fazer o cabresto bem equilibrado para a arara não dar de lado; emendar o cabresto na ponta da linha de um carretel; e depois soltar o apetrecho aos ventos de agosto, isso exige conhecimentos quase acadêmicos.
A arara se transforma em sua alma, e ela voa às alturas e retrata tudo como se fora um “droner” e de lá a impressão é que se está a enxergar o mundo, o que transmite uma emoção sem igual.
Mais ainda ensina a arara ou a sua alma lá no alto quando os ventos fazem o apetrecho subir até as nuvens coroando, de modo a ter de ficar a olhar na vertical. O pescoço até dói.
E quando numa situação dessa a linha arrebenta, tamanha força dos ventos, a arara desaparece nas nuvens e no coração fica a sensação de que ela subiu aos céus.
Hoje em dia não sei se as crianças têm essas mesmas emoções e sensações com os seus apetrechos lúdicos.
Mas posso dizer com toda certeza, eu não gostaria de nascer nos dias de hoje, vendo o que vejo, observando o que observo no comportamento das crianças da era eletrônica e informática.
Se elas jogassem finca e bolinha de gude; aprendessem a confeccionar arara e a empinar com manivela o apetrecho, os pés descalços em contato com a terra nua e crua, talvez pudessem ser melhores ao chegarem à idade da razão. Porque ao longo da vida irão construir um leque chinês de sonhos realizados para ajudar a apagar o incêndio na floresta, como um beija-flor a espargir água no fogo.
*Jornalista e escritor