
Créditos: Divulgação
11-08-2025 às 10h14
Marcos de Noronha*
Nestes dias turbulentos aqui no Brasil, o tema político tomou os espaços em todas as mídias. Na CNN Brasil, Caio Coppolla, descreveu como o Ministro Alexandre Moraes, que acabava de determinar a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro, foi humilhado. “Nos últimos dias, ninguém neste país foi mais humilhado do que o Ministro Alexandre de Moraes”. Relaciona que ele foi humilhado pelo governo da maior democracia do mundo, ao perder o direito de entrar nos EUA; humilhado pelas leis de proteção aos direitos humanos ao ser sancionado por violação a liberdade de expressão e ao devido processo legal pela aplicação da Lei Magnitsky; foi humilhado pelo sistema financeiro, quando instituições bancárias se recusaram a mantê-lo como cliente; humilhado até pelo seu próprio time, quando foi vaiado no estádio do Corinthians, para se rebaixar ainda mais, fazendo um gesto obsceno para a torcida. A imprensa internacional passou a trata-lo como uma potencial ameaça a democracia; humilhado até pela imprensa nacional, pela prática da censura prévia nas suas decisões cautelares; humilhado também por seus pares, que além de se recusarem em assinar uma carta em conjunto em apoio a sua conduta como juiz, a maioria não compareceu ao jantar proporcionado por Lula com a mesma intensão. As denúncias de seu antigo subordinado no TSE, refugiado na Itália, também se somaram, ao destacar as graves ilegalidades impostas pelo Ministro, para incriminar as vítimas do 08 de janeiro. Foi humilhado pelo depoimento do delator dos réus e das testemunhas de 08 de janeiro, que contradizem as narrativas do golpe imaginário do qual Alexandre de Moraes é vítima e juiz, ao mesmo tempo. Foi especialmente humilhado pela ausência de provas incriminatórias contra o réu Felipe Martins, torturado na prisão e cuja irrefutável inocência escancara a perseguição política instaurada no país. No Congresso ele contabiliza pedidos de impedimento, humilhado pelo povo nas ruas pedindo seu afastamento do poder pela via democrática, ou humilhado por suas próprias palavras em vídeos do passado, em que ele condenava a censura prévia e a corrupção dos governos petistas. E por fim, humilhado pelos erros grosseiros gramaticais cometidos contra a língua portuguesa nas suas sentenças.
Coppolla comenta ainda, que estes sucessivos episódios de humilhação publica seriam suficiente para fazer qualquer pessoa sucumbir numa crise emocional sobre o peso de sua própria vergonha, mas o citado Ministro resiste. Suspeita o jornalista que seu mecanismo psicológico de defesa seja canalizar esta humilhação, contra os réus de 08 de janeiro, submetendo-os a grosseria, indignidade e ao autoritarismo. Nesta coluna destaquei uma de suas vítimas, a cidadã Débora dos Santos, presa e condenada a 14 anos de prisão por rabiscar, com batom, uma estátua em Brasília (Do Batom ao fuzil, do crisântemo à espada, em 14-04-2025). O objetivo das ações de Moraes e de todos aqueles que vibram com suas determinações fazendo vistas grossas as arbitrariedades é humilhar especificamente o ex-presidente Jair Bolsonaro, numa tentativa de equipará-lo ao ícone condenado da esquerda. Quando uma humilhação é capaz de deixar maiores sequelas numa pessoa?
As reações de uma pessoa comum, quando humilhado, depende de sua personalidade e evidentemente, da proporção que o fato tomou, das habilidades do ofendido, como também de seu estado de saúde. Se o ofensor for aquém que representa um determinado valor, este fato também pode influenciar nas reações do ofendido. Aspectos sociais podem conduzir o humilhado também a uma determinada direção. Tem países em que seus cidadãos, quando são humilhados, reagem com uma vergonha acentuada capaz de trazer sérios danos. Em outras nações, o delito pode fazer parte do comportamento comum, e quando deflagrado, algumas vezes traz notoriedade ao “malandro”. No Japão, por exemplo, o seppuku – conhecido como harakiri – é tradicionalmente uma forma de lidar com a humilhação. Trata-se de um suicídio ritualizado, que foi praticado pelos samurais visando lidar com a vergonha. Isto acontecia ao sofrer uma derrota, ou como forma de restaurar a honra própria, ou de sua família, ou clã, ao se matar, cravando uma espada em sua barriga. O “jeitinho brasileiro”, por sua vez, traz aspectos éticos questionáveis, mas não significa que nós não tenhamos um sentido universal voltado à cooperação e à solidariedade.
Ainda naquela tradição japonesa, tal suicídio, também era uma forma de demonstrar arrependimento (expiação) pelos erros graves cometidos, evitando uma humilhação pior, que seria a execução pública. Com isto, o samurai impedia que a mancha da desonra se estendesse. Para tal cerimônia era preciso se preparar através de um banho de purificação, escrever uma carta de despedida e o suicida podia contar com um assistente (kaishakunin), para abreviar o sofrimento do moribundo. Os textos de instrução para o ato reforça tratar-se de uma prova de nobreza moral e disciplina. Para a psicologia é compreensível a tentativa de conversão da extrema humilhação demonstrando uma suprema coragem. Mas o Japão, que não conta mais com o shogunato na modernidade, ainda sofre resquícios sobre a população, destes aspectos históricos sobre a vergonha social e a honra pessoal. Em 2007 o ministro Toshikatsu Matsuoka cometeu suicídio por enforcamento em seu apartamento em Tóquio, ao enfrentar escândalos. Na atualidade se fala num “seppuku metafórico”, quando alguém em contextos políticos ou empresariais, renunciam cargos ou detonam a própria reputação para “pagar” por seus graves erros.
Erros e pecados encontram formas menos brutais de serem reparados conforme as culturas. Assim como o modo grosseiro japonês institucionalizado de reparação existiu, existem muitos outros tipos de expiações em diversas sociedades. Por exemplo, se pode expiar num confessionário de uma igreja católica, ou cumprindo uma pena numa prisão, ao ter cometido um grave delito. Nestes casos o humilhado pode amenizar seu sofrimento e diminuir a desonra estendida para sua família. Uma professora que furtou um aluno durante um surto maníaco foi filmada em cenas que viralizaram pela web. Humilhada, inicialmente só pode contar com o apoio de sua família, o que não foi suficiente para impedir as perdas de reputação, emprego e saúde, escalados após o ato. Uma paciente lembra, em prantos, quando criança, teve que esperar sozinha no portão da escola, até a polícia levar seu pai armado – que ameaçava sua mãe, ex-esposa dele, recusada no reatamento o. Mesmo após tanto tempo, ela chora ao recordar humilhação daquele dia e a indiferença do pai para com ela. São tantas as possibilidades de passarmos por situações humilhantes que convém conhecermos quais recursos pessoais, ou sociais poderíamos contar para superarmos suas consequências. Valorizo a fisiologia humana e suas reações reparadoras. A vergonha é comum diante da humilhação e altera nosso corpo: rubor, tremores, sensação de todos os olhares sobre si. Em certa medida, sentir vergonha é sinal de saúde; o oposto — a indiferença ao vexame — é alarmante. A culpa, emoção irmã da vergonha, pode ser reparadora em doses moderadas, mas devastadora em excesso — é como raiva implodindo dentro de nós, cuja intensidade nada corrige, apenas corrói.
A raiva e indignação contra o ofensor pode ser também comum, mas se estiver sem controle consume-nos e pode provocar uma destruição ainda maior, daquela visada pelo agressor. Posicionar-se tentando entender as atitudes do agressor, e aceitar o ocorrido, com lamentos, mas sem vingança – costuma ser reparador. Expressar a tristeza em voz alta cria oportunidades para que o entorno realize atos de solidariedade ou condolência, ciente de que o humilhado não merecia tal tratamento. Com a prisão domiciliar de Bolsonaro, viu-se inúmeras manifestações sociais de revolta e solidariedade, que pode trazer conforto ao político, ou transformá-lo em mártir na comoção nacional. As ações solidárias em casos de humilhações neutralizam os sentimentos de desamparo. O que a humilhação certamente provoca é o medo, de que ela volte a acontecer e volte a provocar terríveis reações de embaraços.
Quem reage mal a tão pesadas humilhações pode adoecer. A ruminação deixa cenas vexatórias presas na memória, sem respeitar o repouso noturno, e gradativamente debilita o organismo. O humilhado adoecido entra num ciclo de baixa autoestima, autodepreciação e conformismo com os aspectos negativos do mundo e de si mesmo, podendo evoluir para depressão grave e até estresse pós-traumático. Perde as esperanças num processo depressivo em evolução, podendo gerar graves consequências. A autodepreciação parece não ter fim. Nestes momentos, voltando a minha concepção de fisiologia humana ou ambiente social saudável, os movimentos naturais do sofredor pode diminuir seu desconforto. As distorções da realidade, comum aos que reagiram com depressão e isolando, encontram incentivos na sua trama relacional capaz de resgatá-los.
As respostas comportamentais nocivas, como o afastamento social, ou o afastamento dos locais onde foi submetido pela humilhação, ou ainda, o afastamento das pessoas que o humilharam, tendem a aumentar as fantasias detratoras, comparadas a outros tipos de atitudes como a de uma exposição guiada, por exemplo. Técnicas psicológicas, como as usadas num procedimento comum na terapia cognitivo-comportamental, por exemplo, promove a aproximação do paciente a estes ambientes para reinterpreta-los. Uma postura compreensiva, capaz de lamentar o fato, ou se arrepender, ou entender a injustiça a qual foi submetido, promove uma ação mais confortável e reparadora comparada com a inconformação. Reações como retaliação/agressividade, diante da frustração e humilhação, são também comuns, como refletiu o repórter da CNN ao analisar o comportamento hostil do Ministro. Na minha opinião, neste caso específico, existem outros fatores, como as ações, que após as operações Lava Jato, caminhavam para atingir outras instituições do poder, relacionados aos crimes descobertos.
Considerando a diversidade humana, algumas pessoas, conforme suas bases caracterológicas, podem reagir num comportamento submisso quando humilhados. O objetivo deste comportamento é evitar, a qualquer custo, futuros conflitos e para tanto concordam com tudo. Muitas vezes o submisso reage em silêncio, procurando esconder suas emoções, que, comparado com aquele que expressa seu abalo emocional através do choro, fica numa posição desprivilegiada. A catarse com manifestações emocionais é uma forma de comunicação social que pode ajudar na recomposição da vítima. Intensa comparada com o silêncio do submisso, razoável, comparada com aqueles que recorrem a fuga com uso de substâncias. Nossa natureza providenciou reações corporais capazes de denunciar nossos sentimentos, que muitas vezes o objetivo de compartilhamento social visando a comunicação dos nossos sentimentos, acaba nos constrangendo ainda mais. O rubor facial, a tremedeira, na ativação do nosso sistema nervoso autônomo, deixa a vítima de humilhação mais constrangida. Os psicoterapeutas, nestes casos, ensinam seus pacientes a modificarem as prerrogativas. Ao invés de lutar contra as aparências, deveriam assumirem seu estado e promoverem a espontaneidade inata do ser humano, um comportamento menos dispendioso e, provavelmente, mais produtivo.
Não há uma solução única para a humilhação, mas o caminho trilhado, aproximando-se dos outros em sua trama relacional, é melhor do que o isolamento social. Aceitar o fato, sem traços de submissão é melhor do que a inconformação. Perdoar o agressor sobrepõe, ao ofendido, os sentimentos de vingança, desgastantes para ambos os lados. O arrependimento e a culpa em determinada proporção, podem ser reparadores. Do contrário, as consequências a longo prazo, pode ser nefasta, como queda permanente da autoestima, ou insegurança pessoal. Ainda mais, teremos dificuldades no estabelecimento de novos relacionamentos, e podem surgir sintomas depressivos e ansiedade social para nos incomodarem. Nos extremos, desenvolvemos estresse pós-traumáticos, capaz de consumir sobremaneira, seus portadores. Como você lida com a humilhação em sua vida?
*Marcos Noronha é Psiquiatra Titulado pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Conselho Federal de Medicina
Psicoterapeuta e Psicodramatista reconhecido pela Federação Brasileira de Psicodrama.
Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural. Membro da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural. Associado da Seção de Psiquiatria Transcultural da Associação Mundial de Psiquiatria. Membro do Grupo Latino Americano de Estudos Transculturais (GLADET).