O Waze é um sistema de interação social (pressupõe outros motoristas perdendo-se por aí e comunicando seus erros aos demais) que dispensa a interação social.
12-01-2025 às 08h37
Marcelo Galuppo
Quem tem mais de quarenta anos lembra-se do pai ao volante, a mãe no banco ao lado, com um gigantesco mapa do Guia Quatro Rodas nas mãos. Ela rodava o mapa várias vezes em seu colo para tentar localizar-se naquele emaranhado de linhas minúsculas que se cruzavam sobre o papel já rasgado em suas dobras. Inevitavelmente o pai tomaria o desvio errado (ou porque ela avisou em cima da hora, ou porque ela se equivocou – o pai nunca via o engano como fruto de suas próprias escolhas). As mulheres pareciam ter uma incapacidade neurológica para ler um mapa. A alternativa seria a mãe dirigir e o pai interpretá-lo, mas isso nunca ocorria, ou porque pressupunha-se que homens dirigissem melhor, ou simplesmente porque tornaria claro que homens também não conseguiam compreender um mapa, e ambas seriam uma ofensa ao macho alfa do carro.
Aquele, no entanto, era um mundo com mais aventura, que nos fazia sentirmo-nos um pouco como Vasco da Gama cruzando os mares (era um mundo em que um pedaço de sabonete, um elástico e um grampo de cabelo faziam parte da caixa de ferramentas de qualquer viajante, no qual era possível reparar um carro no acostamento de uma estrada deserta, enquanto a família aguardava entediada sob o sol escaldante de janeiro); um mundo mais pitoresco, em que sonhávamos encontrar uma tribo de indígenas isolados nas proximidades da Régis Bittencourt; um mundo com mais serendipidade (a descoberta, por acaso, de coisas boas), ainda que essa palavra fosse desconhecida. O mapa era um componente desse mundo.
A Enciclopédia Britânica diz que mapas são “uma representação sistemática da natureza e da distribuição de fenômenos no espaço”, que fornecem “meios únicos e eficientes para comunicar certos tipos de informação”, e que “a existência humana seria impossível sem o tipo de conhecimento que mapas representam”. Diz também que, como os conhecemos, foram uma invenção dos gregos, que talvez os tenham tomado dos babilônios, e que tiveram um desenvolvimento espetacular entre os séculos XV e XVI, sem o qual os portugueses nunca teriam atravessado o Atlântico e a globalização teria sido do Império Inca, e não do Norte-Americano.
Mas depois veio o GPS, e tudo mudou: a mãe não podia mais ser acusada pelo pai de perder a entrada para Guarapari e, a não ser para teóricos da conspiração, que podiam culpar a NASA, o resultado foi um pouco mais de cautela ao dirigir por caminhos desconhecidos. O pai continou não pedindo informações, só que agora tinha bons argumentos para isso: ele confiava nas máquinas. Não mais era preciso prestar atenção a placas, nem sequer procurar por radares para então reduzir a velocidade de 140 quilômetros por hora, alcançada na tentativa de descontar o tempo perdido perdendo-se. Tudo estava no GPS. E aí veio o Waze…
O Waze é um sistema de interação social (pressupõe outros motoristas perdendo-se por aí e comunicando seus erros aos demais) que dispensa a interação social. Ninguém mais precisa pedir informações de como chegar do número 1000 da Paulista ao número 2000 da mesma avenida, e não interessa quão óbvio seja o trajeto: o motorista do Uber vai sempre programar seu celular e errar o caminho sem que seja culpa sua.
Com sua voz melíflua ou tonitruante (segundo a preferência de cada um), o Waze parece livrar-nos de mapas, mas é claro que não o faz, porque, pelo menos na cabeça de quem o projetou, há mapas nele. O Waze só nos tirou a capacidade de os interpretarmos.
Para fazer isso, o Waze precisou suprimir as diferenças: as ruas são todas iguais, indistintas em seu valor, e ninguém mais parece saber onde se encontra, porque é desnecessário sabê-lo. O passo seguinte foi suprimir o emaranhado de vias, que traz consigo caminhos alternativos. Tudo é reduzido a uma única rota e, se você ousar afastar-se dela, ouvirá um insistente “retorne, quando possível”. Ao contrário de um mapa, do qual o pai podia discordar para cometer seus próprios enganos, é preciso seguir cegamente a rota do Waze. Uma ordem que não mais pode ser discutida, porque se desconhece haver outras possíveis, é a consequência a que chegamos, que vai nos domesticando para nos tornarmos aquilo de que nossa evolução tentou nos afastar: de sermos submissos como gado.
Sob a aparência de conferir mais independência, o Waze tornou-nos completamente dependentes. Mapas permitiam-nos improvisar rapidamente diante de problemas, desviar quando o caminho não parecia seguro, e o Waze não. E o que a vida exige de nós o tempo todo é improviso e desvio, impossíveis sem nos localizarmos e sem sabermos que há sempre caminhos alternativos. O que precisamos para viver é de mapas, não de Waze.
*Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG e autor do livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, pela Editora Citadel, dentre outros. Ele escreve aos domingos no Diário de Minas.