A casa da verdade e a fuga da mentira; a verdade presa na memória liberta a mentira para o esquecimento
Garoto, sempre se acredita no poder da palavra. Palavra como expressão, como verdade e ou possibilidade da verdade, como fuga, como experimento, como mágica.
01-12-2022
08h:20
Roberto Pio Bastos*
Aletéia é o não esquecer... O que não se esquece é que é a verdade.
- Aquilo que você não esquece é verdade?
- Então, a mentira lembrada pode ser verdade?
- Onde entra a memória inventada, a falsa memória, uma falsa verdade?
A Assembleia Legislativa de Minas, era na rua Tamoios, prédio já demolido. A Assembleia foi para a Cidade Jardim.
Na rua Tamoios, um deputado, herói pracinha da grande guerra, mesmo no seu silêncio da tribuna, é ouvido como se estivesse no campo de batalha.
- Ele lutou na segunda grande guerra!
Apontam para ele e nele se fixam olhares que reinventam batalhas heroicas e que há três mandatos o devolvem para ser o Herói Apontado.
Para o jovem que observa não se justifica o tanto que se apregoa e uma memória ainda não avaliada como fato inquestionável.
Para aquele adulto, que carrega a pasta do Deputado Herói Apontado, não se discute nada.
É um herói, e pronto e o povo, convencido, o devolverá sempre à Assembleia até que o esquecimento (a mentira) prevaleça.
Como o personagem que relata suas façanhas na resistência à invasão da Rússia, por Napoleão onde teria perdido a perna em uma batalha. Ele fala ao amigo do príncipe Michikin, personagem de O Idiota de Dostoievski.
A perna o desmentia quando ficava sóbrio. A perna estava ali intacta.
Assim se confirma que a mentira tem perna curta.
Rio Letes
– Para se chegar ao inferno deve-se atravessar o rio do esquecimento - esquecer de tudo.
Quantas vezes na vida, quantas vezes em um dia, o homem não atravessa o Letes?
Quantas vezes ao dia o homem não chega ao inferno, não está no inferno, além do esquecimento?
– Não esquecer (a verdade) lembrar (sempre) ter a verdade não seria inútil, impossível e difícil para um homem ao longo de sua vida, ou mesmo ao longo de um dia?
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- Garoto, sempre se acredita no poder da palavra. Palavra como expressão, como verdade e ou possibilidade da verdade, como fuga, como experimento, como mágica.
- Agora, meu amigo, aos quase noventa anos, assusto-me com tantas dúvidas, tenho dúvidas do aprendizado da palavra.
- Para que aprender a ler e a escrever? Qual o sentido deste aprendizado?
Resgata-se aqui, as dúvidas de Thomas Mann, em A Montanha Mágica, sobre escolas como penitenciárias, destruidoras da vida dos jovens e como “acessório da supremacia burguesa”.
Crescem os temores de que há uma complexa rede de controle e de domínio do homem, de submissão de todos os homens.
Nesta intrincada rede, a palavra e a gramática seriam tanto instrumentos de aprisionamento do homem como o seriam as celas e as grades de uma prisão, como seriam os guardas que limitam a caminhada dos presos, impõem as palavras certas e as palavras erradas, o escrever certo e o escrever errado.
- Não haveria uma gramática libertadora, criadora?
- Seria possível imaginar um léxico subversivo, audaz, insubmisso?
- Começa-se, então, a buscar as origens destas preocupações e destas cautelas, destas dúvidas e destas indagações – uma fonte rica, riquíssima, seria Espinosa.
- Não se tem certeza disto se não se chega à análise da gramática iídiche.
Adverte Espinosa.
Em Espinosa evidenciam-se as pistas do que se trata desta preciosa abordagem de aprisionamento do cérebro.
- Heidegger também – para quem “a linguagem é a morada do ser”.
Aí se pode ler também que a linguagem será o cárcere do ser.
Entrando naqueles países baixos, na época de Espinosa, dá para imaginar a sua luta para sobreviver, o seu dia a dia. Sua resistência pela liberdade.
Vê-se naquele homem sua grande ousadia (era, com certeza, um homem extremamente alegre e debochado) e seu imenso desprezo pelas poucas chances de libertação – assim se entende seu ofício (seu deboche) como polidor de lentes (uma metáfora) para a busca da visão possível, da melhor visão, do aprimoramento da visão, da correção da visão.
Isto sem trazermos A Galaxia Gutemberg, em que Marshall McLuhan (**) aponta a introdução da tipografia na desorganização mental dos indivíduos e na origem de graves doenças psíquicas.
Notas
(*) Aletéia
Heráclito de Éfeso, in Pré-socráticos, coleção Os pensadores, da Abril, 1978, p 79
B – Fragmentos
Sobre a natureza
1. Sexto Empírico, Contra os Matemáticos, VII,132
...Aos outros homens escapa quanto fazem despertos, tal como esquecem quando fazem dormindo.
2. No grego lanthánei, do mesmo tema de léthe (= esquecimento), que forma a-létheia (lit. não esquecimento) = verdade
(**) A Galáxia de Gutenberg é uma obra de Marshall McLuhan, na qual este analisa a emergência da escrita e da tipografia. A tecnologia tipográfica que nasce com Gutenberg é fundadora da modernidade e da civilização industrial. Num primeiro momento, com a escrita, há uma transição da cultura tribal, fechada e estável para o aparecimento do homem alfabetizado, individualizado, vivendo na instabilidade das sociedades modernas. Num segundo momento, com o advento da tipografia, intensifica-se o culto do indivíduo, a ideia de nação. Segundo McLuhan, nacionalismo, industrialização e mercados de massa são resultado da extensão tipográfica do homem.
*Filósofo com raízes gregas