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Na democracia: "O poder emana do povo" - créditos: divulgação
08-02-2025 às 08h28
José Luiz Borges Horta*
Para muitos de nós, a democracia não é estática nem muito menos institucionalizada; ao contrário, meditando sobre a história da democracia desde o seu nascimento, quem sabe entre os gregos, muitos chegamos a igualá-la à linha do horizonte, de tal forma que quanto mais se caminha em direção à democracia tanto mais se descobre que a democracia segue longínqua e que mais precisamos nos esforçar em sua direção.
É inesgotável o caminho da defesa da democracia e a luta por ela jamais teve fim, embora os fins democráticos permaneçam sendo, talvez , os verdadeiros fins da existência do Estado de Direito, dos direitos fundamentais e da própria sociedade organizada como Estado. Daí dizermos, nos últimos 50 anos, que estamos na luta pela construção do Estado democrático de Direito.
Lutar pelo Estado democrático de Direito é aceitar, em uma perspectiva fortemente histórica e portanto cultural, que o direito à democracia é na verdade o direito ao desenvolvimento político, que a Política, como a economia, o meio ambiente ou a cultura, precisa se desenvolver, evoluir, progredir, alcançar cada vez mais parâmetros de satisfação para os seres humanos como um todo. O direito a viver em uma democracia implica necessariamente em ter direito a viver em uma democracia que se desenvolva, que aprimore as suas instituições e que se torne, com o passar das décadas, cada vez mais democrática.
Por isso não podemos jamais permitir que a democracia entre em decadência, congelando-se dentro de um mero fetichismo institucional. As instituições democráticas precisam ser aprimoradas, caso contrário serão necessariamente capturadas por dimensões autocráticas ou, para quem as admira, aristocráticas.
Daí decorre a alegria de iniciar um novo ano político brasileiro com duas das melhores novidades nos últimos vinte anos na pauta do Parlamento brasileiro: o sistema eleitoral misto e o sistema de governo semipresidencial.
A primeira delas decorre da firme disposição do novo Presidente da Câmara dos Deputados, deputado federal Hugo Motta, da Paraíba, em instituir uma comissão especial para estudar a modificação do sistema eleitoral parlamentar brasileiro, com vistas à instituição daquele que a mídia e o debate cotidianos chamam de sistema eleitoral misto.
Hugo Motta, jovem mas experiente, amplamente apoiado em sua chegada ao comando do Parlamento, parece ter compreendido que o sistema eleitoral parlamentar brasileiro é talvez a raiz de boa parte dos males da nossa incipiente democracia. Não há país significativo no mundo que opere as eleições parlamentares no desenho brasileiro, no qual as eleições atendem ao princípio proporcional, democrático, das listas partidárias — com a possibilidade de coligações agora construídas a partir de federações partidárias nacionais —, mas com o envenenamento provocado pela lista “aberta”, que permite o embaralhamento do processo eleitoral e a confusão do eleitorado de tal forma a que o povo não compreenda, eleição após a eleição, o que se passa no processo eleitoral brasileiro.
Não se trata aqui de deslegitimar o Parlamento brasileiro — muito antes, pelo contrário. O Parlamento brasileiro é a reflexão inequívoca do povo brasileiro, e quem com ele insiste em conflitar não deseja a mudança da democracia ou do corpo de parlamentares, como a história brasileira cansou de provar: no fundo conspira contra o próprio povo brasileiro, e prefere trocar de povo, não de Parlamento ou de sistema eleitoral. São os chamados demófobos, os estranhos animais que atuam na Política, mas tem fobia do povo e do voto popular, e que permanentemente conspiram contra o verdadeiro representante do povo e genuína sede da soberania popular: o Parlamento nacional.
Trata-se, ao contrário, de buscar aproximar cada vez mais a vontade popular, vontade do constituinte dos mandatos, ao perfil dos parlamentos sucessivamente eleitos, de modo a que o povo cada vez mais se reconheça no vínculo de representação política e constitucional — que se encontre forte e vigoroso, vivo e capaz de resistir a quaisquer tentações demofóbicas e antidemocráticas. Hugo Motta, parlamentar nas últimas e turbulentas décadas, parece ter compreendido a necessidade de aprimoramento do reconhecimento público deste vínculo e da sofisticação dos processos mediante os quais o povo constitua seus representantes.
Não há como desconsiderar a importância de seu gesto em nomear uma comissão para estudar o sistema misto, que por exemplo inspira a democracia alemã (que resiste bravamente a toda forma de extremismo, e continuará resistindo, apesar dos profetas do caos), no qual metade do parlamento é eleito em eleições em processos distritais uninominais — nos quais o povo elege um deputado federal do seu distrito, com toda clareza de que aquele parlamentar é o representante dos interesses regionais —, e a outra metade é eleita em lista fechada, proposta por cada partido político (ou federação partidária, na experiência recente brasileira), uma lista que o partido antecipa para o povo, fechada de modo a que o povo não tenha nenhum tipo de surpresa e saiba com antecipação qual é a cara real com que os partidos políticos se apresentam ao processo eleitoral.
Trata-se o sistema misto de um processo mediante o qual nada é escondido ou camuflado da compreensão democrática. Os dois votos que o eleitor passa a ter, o distrital e o proporcional em lista, são votos absolutamente transparentes, evidentes e nada surpreendem: no voto distrital, cada partido só pode apresentar um único candidato, tornando a eleição destes parlamentares um processo extremamente claro de escolha de representantes de direto conhecimento dos eleitores; no voto em lista, as eleições são protagonizadas por uma lista já apresentada previamente, ordenada segundo as estratégias políticas, eleitorais e parlamentares do partido, que escolhe o cabeça de lista, ou cabeça de chapa, e é este cabeça de lista quem participa de grandes debates televisivos em nome do partido político e de sua plataforma eleitoral. O povo não tem nenhuma dúvida, não é enganado, uma vez que é clara e cristalina a escolha feita em cada partido político.
Hugo Motta está contribuindo diretamente para a democracia brasileira e o aprimoramento das nossas instituições.
A outra maravilhosa notícia é uma notícia plural, que ao mesmo tempo vem da Suprema Corte brasileira e da Câmara dos Deputados. Em que pesem as divergências que ambos possuem entre si, o atual Presidente do Supremo Tribunal Federal e o decano daquela Corte, ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, constitucionalistas amplamente reconhecidos no Brasil e no Exterior, ambos admirados pela solidez de formação e pela intensidade de seu peso doutrinal, luminares do Pretório Excelso, parece estarem em perfeita sintonia para, ainda no mandato presidencial de Barroso, viabilizarem a adopção do que se está chamando de Semipresidencialismo. Na mesma toada, o competente deputado federal mineiro Lafayette de Andrada, na companhia do deputado paranaense Luiz Carlos Hauly, estão apresentando proposta de emenda constitucional para a formalização de instituições políticas do Semipresidencialismo no texto constitucional brasileiro.
O Semipresidencialismo, ou Semiparlamentarismo, é o sistema de governo no qual o chefe de Estado é eleito pelo voto popular direto e o chefe de governo corresponde ao líder da maioria no Parlamento. É o modelo adotado em parte das democracias mundiais, especialmente em povos com alguma tradição autocrática ou paternalista que exigem a eleição direta do chefe de Estado. Como se sabe, em povos mais avançados democraticamente, não há que falar em eleições diretas para a chefia de Estado, em regra aplicado o princípio monárquico ou as eleições indiretas (basta observar os países com maiores índices de desenvolvimento humano no planeta).
Em povos latinos, que gostamos de caudilhos, ou em povos mais habituados a líderes de força, a eleição direta do Presidente da República acaba sendo adotada — é o caso de Portugal, da França, da Rússia. Hitler ao chegar ao poder impôs a eleição direta do presidente da República de Weimar, de Gaulle fez o mesmo na Gália e hoje a Premier italiana é quem defende eleições diretas para presidente da Itália.
No Brasil, muito poucas forças parlamentaristas se dispõem a defender a eleição indireta do chefe de Estado, ou mesmo a adoção do princípio monárquico, já que o povo brasileiro tem o fetiche da eleição direta do presidente da República demarcado em sua tradição de luta pela democracia. A Frente Parlamentarista Republicana, comandada em Minas, em 1993, pelo deputado Bonifácio Andrada, por exemplo, defendia as eleições diretas para presidente da República, em consonância com o modelo do Parlamentarismo Semipresidencial — ou do Presidencialismo Semiparlamentar — adotado já então pela França e por Portugal.
Eleito pelo voto direto, o presidente da República sempre deverá receber parcela significativa do poder, dadas as expectativas inevitáveis de uma eleição por algumas dezenas de milhões de votos. Sendo uma democracia, no entanto, a concentração de poder em uma única pessoa não é conveniente, razão pela qual as verdadeiras democracias caminham para manter com o presidente da República as tarefas de chefe de Estado, aí incluídas de modo especial as tarefas e funções referentes à defesa do próprio Estado e das instituições democráticas, deixando as tarefas de governo com um Primeiro-Ministro, ou Premier, convidado pelo presidente da República para liderar um governo democrático, que se responsabilize permanentemente perante o Parlamento.
Parece a muitos não haver cabimento para que um presidente eleito pelo voto popular preste contas ou debata diretamente com os parlamentares eleitos pelo mesmo povo; mas não há quem duvide de que um primeiro-ministro, que depende do apoio parlamentar para governar, deva comparecer periodicamente ao Parlamento e enfrentar os debates parlamentares sobre seu governo.
Qualquer de nós que tenha observado o primeiro-ministro britânico, qualquer que seja ele (ou ela), na Câmara dos Comuns do Parlamento de Westminster, percebeu a riqueza interminável da democracia presente no enfrentamento direto entre o chefe de governo e a sua oposição. É disso que se trata. Sem fragilizar a chefia do Estado pelo comezinho debate político-partidário, energizar a democracia levando o Governo, na pessoa do próprio chefe de governo, ao debate parlamentar e a um enfrentamento das principais questões pautadas pelo povo brasileiro, em público, em seções públicas, com a possibilidade da dialética construtiva da democracia.
Não faltarão vozes exigindo uma repetição prévia dos plebiscitos de 1963 ou de 1993 para que a democracia brasileira possa evoluir rumo ao Semipresidencialismo, argumentando falaciosamente que um plebiscito ou um referendo popular determinam limites eternos e inamovíveis à atuação do Congresso Nacional. Essa é uma afirmação tremendamente superficial, típica de quem sofre de preguiça intelectual.
A teoria geral dos mandatos resolve a questão de modo peremptório: um mandato representativo é um mandato de Direito Público, diferente de um mandato de Direito Privado, em regra um mandato imperativo, como os que são constituídos por procuração. Os mandatários, no Direito Privado, estão submetidos à vontade expressa no instrumento de mandato pelo titular da vontade — têm limites expressos à sua atuação. No Direito Público, os mandatários representam de modo ilimitado a vontade de seus constituintes — exceto quando ocorre o fenômeno do plebiscito ou do referendo, que naqueles temas submetidos ao Eleitor, tornam os mandatos representativos em mandatos imperativos. Quando, no entanto, todos os membros do Congresso Nacional — os deputados, em no máximo quatro anos, os senadores, em no máximo oito anos — tem seus mandatos representativos restaurados, cessa a imperatividade da decisão plebiscitária. Obviamente, aliás. Logo, a manifestação plebiscitária de 1993 somente manteve vigor até a posse do Congresso Nacional eleito em 1998, quando os últimos senadores em atuação em 1993 deixaram o Senado — e, naturalmente, o referendo de duvidosíssimos procedimentos de 2005, que tratou de desarmamento, perdeu imperatividade com a posse do Congresso Nacional eleito em 2010, todo ele restaurado in totum de seu poder representativo.
Aliás, quem se levantar em defesa de plebiscito, se quiser se perfilar ao lado dos democratas e do povo, que assuma a proposta de um referendo, no qual o povo saiba com precisão o desenho constitucional proposto para o novo sistema de governo. Mais que isso: para que a Cidadania compreenda o funcionamento concreto das instituições democráticas do Semipresidencialismo, recomenda-se que o referendo de confirmação do progresso seja realizado após uma janela de experimentalização democrática — ao menos uma década depois de sua implementação, com sua efetiva vivência no modelo político-constitucional brasileiro. Deixar o povo conhecer o Semipresidencialismo e decidir tendo a experiência viva da Democracia Parlamentar é o melhor caminho para o desenvolvimento político brasileiro.
Não temos nenhuma dúvida de que as duas apostas na democracia são fundamentais para o avanço das instituições democráticas brasileiras e para a consolidação do Estado de Direito no Brasil. Merecemos viver em uma democracia plena e verdadeira, e para isso precisamos nos reconhecer nesta democracia. Por isso e para isso, tanto a adoção do sistema eleitoral misto para a Câmara dos Deputados quanto a adoção do sistema semipresidencial são iniciativas que atendem ao direito ao desenvolvimento político dos brasileiros e das brasileiras. E contam com o nosso entusiasmado apoio e torcida; academicamente, não há dúvida de que a democracia merece aprimorar-se e desenvolver-se.
* José Luiz Borges Horta, 54, é Professor Titular de Teoria do Estado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e foi coordenador estudantil da Frente Parlamentarista Republicana, em 1993. Coordena na UFMG o Grupo internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado e o Grupo de Pesquisa dos Seminários Hegelianos. Professor Visitante na Universitat de Barcelona, é membro da Sociedade Hegel Brasileira e do Centro de Excelência Jean Monnet em Estudos Europeus. Contato: zeluiz@ufmg.br.