A antiga ponte de Sobragy
Uma correnteza de afetos em um rio de memórias foi o que sucedeu ao autor deste texto, ao abordar o tema, o que é algo peculiar de quem viveu e ainda vive
06-03-2024 às 09h:17
Sérgio Augusto Vicente*
Sábado, 29 de agosto de 2020. Vivíamos em pleno período devastador da pandemia de Covid-19. Não bastassem as condições de isolamento impostas pelo vírus, a comunidade de Sobragy (MG) e seus arredores foram impactados por outra situação inesperada: a queda de sua centenária ponte de ferro, que, atravessando o rio Paraibuna, ligava os municípios de Belmiro Braga e Simão Pereira.
Um importante equipamento logístico ruía, interrompendo o direito de ir e vir de várias comunidades. Para muitos outros cidadãos e cidadãs, mais do que uma estrutura utilitária da engenharia, era um símbolo de memórias afetivas que sucumbia ao descaso das autoridades políticas.
Em uma sociedade cuja maior preocupação é construir muros, a centenária ponte costurava vínculos, identidades, presente e passado. Não é fortuito, portanto, que muitos tenham chorado a sua queda.
O casal Antônio e Nair Gonçalves Vicente lamentou profundamente a tragédia. Nascidos em 1943, ambos cresceram, estudaram, namoraram, casaram-se, constituíram uma família de seis filhos e lhes ofertaram estudo, graças a essa ponte. Pensar suas vidas a partir de 2020 sem ela foi o mesmo que ressignificar suas existências e reimaginar aquele patrimônio histórico como uma foto preto e branco pendurada na parede, ameaçada pelo esmaecimento.
Principal cartão-postal de Sobragy, a ponte, mesmo velha e precária, esbanjava estilo e sofisticação, como uma velha senhora elegante que "flutuava" sobre as correntezas do rio Paraibuna. Sobre ela muitos choraram, sorriram, brincaram, caminharam e se enamoraram. Iludidos pela lógica do eterno retorno e pela crença na observação da repetição, não acreditávamos que ela perecia com o passar do tempo, com as intempéries naturais e com o descaso político. Mas, da mesma forma que o filósofo grego afirmava que é impossível banhar-se duas vezes no mesmo rio, eu diria que nenhuma molécula daquelas águas do rio passou embaixo da mesma ponte. A cada dia, semana, mês, ano e década, mais frágil ela se tornava. Sem manutenção, chegou o dia em que os 117 anos literalmente pesaram e sua estrutura não suportou o peso de um caminhão de leite que passava sobre ela em uma manhã de sábado, colocando em risco a vida do motorista que o pilotava, o Sr. José Luís.
Porém, como tudo na vida, não adianta "chorar o leite derramado". Sem o cuidado e o zelo necessários à sua preservação, só mesmo a ilusão dos sentidos para nos fazer acreditar que ela era imortal...
No fundo de nossas almas, porém, nutríamos a esperança de que políticos sensíveis e homens públicos de verdade recuperassem aquele monumento histórico e o tratassem com o respeito que merecia. Afinal, como continuar contemplando e mergulhando nas profundezas daquela paisagem, se nenhum de nós ainda a tínhamos visto sem a centenária moldura?
Quatro anos se passaram e o trauma da queda se suavizou ao efeito deletério da "borracha do tempo" sobre nossas memórias. Acostumamo-nos com a decomposição da defunta e de seu esqueleto retorcido, jogado ao corrosivo sereno do descaso e do “Alzheimer” coletivo.
Hoje, resta-nos aguardar a nova ponte, bruta, de concreto, ser inaugurada sob o pomposo, insípido e insosso "show pirotécnico" de políticos insensíveis. Estamos diante, é claro, de um direito de ir e vir restabelecido, mas também de um direito à memória perdido e desrespeitado. Paisagem embaçada e almas embrutecidas pelo concreto, novas travessias serão feitas. Para onde não sei... “E, agora, José?! José, pra onde?!”
Dos vestígios remanescentes dessa história outrora materializada pela centenária ponte, resta-nos hoje a estação ferroviária de Sobragy, que padece do mesmo mal que a falecida ponte: falta de manutenção e desprezo do poder público. Será que vamos esperar que tudo se acabe de vez para tentar salvaguardar um patrimônio da maior importância? Trata-se de um espaço que poderia ser transformado em lugar de memórias, no qual os cidadãos e cidadãs das comunidades expressariam suas tradições, histórias e afetos, vivendo o presente e rememorando os tempos em que nossos ancestrais ali se reuniam para aguardar a chegada das novidades pelo vapor das locomotivas, para "prosear" e "costurar" laços de solidariedade e sentidos de pertencimento.
Salvemos, enquanto há tempo, a estação de Sobragy. Nela, inclusive, pode ser narrada a longa saga da nossa memorável ponte de ferro inaugurada em 1907, de cujos primórdios pouco se sabe.
Comecemos por essa pesquisa há pouco realizada. Antes de sair de Glasgow, na Escócia, atravessar o Atlântico a bordo de um navio e chegar ao porto brasileiro, para ser encaminhada, através da linha férrea, até Sobragy, a ponte já era aguardada por suas bases de sustentação, que haviam sido construídas em 1898, por meio de doação efetuada por um senhor de nome Ambrósio. O fazendeiro, provavelmente interessado em otimizar o escoamento de sua produção agrícola, tomou a iniciativa desse investimento.
Acontece, porém, que os anos se passavam e os pilares construídos pelo Sr. Ambrósio não recebiam a tão esperada ponte metálica. Duarte de Abreu, intendente do município de Juiz de Fora àquela época, respondendo também pelos distritos de Vargem Grande (atual município de Belmiro Braga) e São Pedro de Alcântara (atual município de Simão Pereira), recebia forte pressão política para que a ponte fosse comprada. No carnaval de 1907, a insatisfação com a demora se transformou, inclusive, em marchinha carnavalesca publicada no jornal "O Pharol".
Coincidentemente ou não, naquele mesmo ano do fatídico carnaval, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada viabilizou um recurso de 34:108$000 (trinta e quatro contos e cento e oito mil réis) para a tão esperada compra na Europa.
Finalmente, em 22 de dezembro de 1907, quase às vésperas do Natal, a instalação era inaugurada com ampla divulgação na imprensa local, contando com a presença de representantes políticos do Estado. A propósito, marcou presença no evento o poeta, tabelião e inspetor de ensino Belmiro Braga, que, no início da década de 1960, com a emancipação de Vargem Grande em relação a Juiz de Fora, será homenageado emprestando seu nome ao novo município, por ali ter nascido em 1870, na Fazenda da Reserva. O "tabelião-poeta" ou "poeta-tabelião", como se auto intitulava, já morando no Alto dos Passos, na sede do município, talvez se recordasse, nesse momento da inauguração, da longa jornada percorrida, nos tempos de menino, entre a propriedade da família, localizada nas imediações da Serra da Criminosa, e aquela estação ao lado da nova ponte, levando e trazendo mercadorias para o pai comerciante. Talvez se recordasse também das cartas dali enviadas para o seu maior ídolo literário, Machado de Assis (1839-1908), que morreria em setembro do ano seguinte, 1908.
A solenidade contou com um inusitado jantar realizado sobre a ponte metálica e, como não podia faltar, com calorosos discursos políticos.
No alto do morro, a poucos metros dali a capela do Divino Espírito Santo, construída em 1902 como pagamento de promessa, assistia aos festejos, como se estivesse a abençoar a nova ponte que faria parte da vida de tantas famílias, possibilitando acessar e abastecer o comércio local, levar e trazer novidades, atualizar as notícias vindas da capital federal, estudar, rezar, buscar curas e tratamentos e visitar parentes e amigos de outras redondezas.
E vejam como a vida é: foi a ponte a responsável pela existência desse texto que você, meu leitor ou leitora, acaba de ler. Afinal, foi atravessando-a todos os dias, nos idos dos anos 1990, a pé, a cavalo ou de bicicleta, que me deslocava do sítio dos meus pais, em Simão Pereira, para aprender as primeiras letras na Escola Municipal Erotides Leal Teixeira.
Por isso, ouso dizer que a antiga Ponte de Sobragy, mais do que um instrumento utilitário, é um objeto simbólico, uma travessia de sonhos e oportunidades que ficou guardada na memória. Espero que, se não tão linda quanto esta, a nova, bruta e fria ponte oportunize às gerações vindouras o florescimento de vívidas esperanças, a edificação de novas experiências e a construção de belas e resistentes memórias, a exemplo da singela flor que nasce por entre as trincas do concreto armado.
*Professor de História e historiador. Graduado, mestre e doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora
6 comentários
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Comentário
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Obrigado meu irmão, Sérgio Vicente.Por descrever com este belíssimo e memorável texto, o sentimento de algo que nós foi e é, essencial. De fato "parecia eterna".
Agradeço, carinhosamente, a todas e todos que leram e comentaram o meu texto. Obrigado pelas lindas e generosas palavras de incentivo a esse escrevinhador.
Texto maravilhoso!! Também já atravessei muito essa ponte! A cavalo, a pé, de carro.. há 2 semanas fui lá ver como estava a construção e fiquei igualmente triste ao ver os blocos insensíveis de concreto que vão tomar o lugar da antiga ponte…
A estrada da vida que conduz as mais meigas e gratas memórias afetivas da infância.Obrigado Serginho que com seu talento proustiano resgata um tempo de saudade.Vc seguramente haverá de ombrear-se ao gigante transmontano Miguel Torga que como nós veio viver em nossa Zona da Mata mas nunca deixou de buscar e revelar ao mundo as Pietas de Pedra do Trás os Montes onde situam-se nossas raízes.Obrigado por nos brindar com seu talento .
Acabo de ler o magnífico texto do professor de história Sérgio Augusto Vicente e fiquei muito sensibilizada como o autor literariamente expressa sua forte relação com um elemento da antiga cultura de sua terra natal e quão importante para ele significou a possibilidade de atingir a terceira margem de seu rio.A flor que brota no concreto armado terá necessariamente a mesma força capaz de mobilizar a geração de hoje assim como aconteceu com Sérgio Vicente. O tabelião - poeta Belmiro Braga deixou seu nome para as próximas gerações, e esperamos que as mais novas não se esqueça do professor Sérgio Vicente.
Parabéns, bem colocado, a memória atravessada por sentimentos. A ponte e a estação existem nesse tecido sentimental e identitário. Fico me perguntando se o povo local teria lutado suficientemente para a preservação do patrimônio, já que o poder emana do povo, e este sustenta os políticos.