
A anistia não é algo que sirva à Esquerda ou à Direita, não é arma de guerra ou instrumento de negociação. CRÉDITOS: Divulgação
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09-05-2025 às 09h40
Rogério Reis Devisate*
As pessoas morrem por vários motivos, mas ninguém morre por falta de pudor. Se isso fosse doença e matasse, os cemitérios estariam lotados. A gratidão é um dos mais nobres sentimentos e o reconhecimento pela graça recebida deve ser enaltecido. Como diz a bela oração de São Francisco, “é perdoando que se é perdoado”.
Nessa linha, quem recebe presente, presenteia; quem é acolhido, acolhe; quem é elogiado, elogia; quem recebe anistia, a concede.
O Brasil é o país das anistias. É como o esquecimento do ocorrido. É o “deixa pra lá” e vamos seguir em frente. É como discussão de amigos que brigam, mas logo se abraçam e vão tomar cervejinha juntos.
Equivalendo ao perdão, a anistia faz parte da nossa história, tradição e cultura. Somos um país especial, com um povo amoroso. Acreditamos na mudança das pessoas, na recuperação. Somos a Nação das indulgências, do amor, do perdão, da tolerância e da 2ª chance.
Se houvesse pena de morte no Brasil, esta não seria executada, porque certamente, na última hora, alguém concederia o perdão ou a transformaria em outra penalidade. Assim, as forças apodreceriam e as cadeiras elétricas enferrujariam, por falta de uso.
Tiradentes, na Inconfidência Mineira, foi o único condenado à morte. Morreu na forca e teve o corpo esquartejado. Todos os demais receberam penas menores, de degredo para outros países ou prisão.
Tiradentes serviu de exemplo e poderia ter tido pena menor, se fosse tratado como os demais. Poderia até ter sido anistiado, mas a Coroa portuguesa foi dura demais, talvez porque a sua sentença tenha sido proferida em 1792, ainda sob o clima de pânico que a Revolução Francesa – então em andamento – instalara no mundo.
Diferentemente do movimento da Inconfidência Mineira, outros atos de resistência contra a opressão portuguesa terminaram em anistia. Foi o caso da rebelião dos Emboabas (1708-1709), a resistência contra a Companhia do Comércio do Maranhão (1684), a Insurreição Pernambucana – contra a invasão holandesa – de 1654, a Guerra dos Mascates em Pernambuco (1711-1714), a Revolta de Villa Rica (1720), a já mencionada Inconfidência Mineira (1789 – mesmo ano, aliás, da Revolução Francesa!), a Conjuração Baiana (1798) e a Revolução Pernambucana (1817).
No Brasil Colônia, houve o movimento da Confederação do Equador (1824), duramente reprimido pelas tropas do Imperador. Também houve a Cabanagem, a Balaiada, a Sabinada e a Farroupilha, contemporâneos movimentos no Grão-Pará, Maranhão, Bahia e Rio Grande do Sul. Esses sofreram forte repressão pelo Exército Imperial e, mesmo assim, alcançaram a anistia. Aliás, em 1835, a Regência concedeu uma, inerente a fatos havidos até 1834, seguida por outra, mais abrangente, concedida em 1836. Outra se seguiu à Questão Religiosa, em 1842.
Com a Proclamação da República, logo surgiram anistias, como a de 1895, concedida a militares. Depois, em 1906, anistiados foram os envolvidos na Revolta da Vacina Obrigatória. A Revolta da Chibata, evento marcante relacionado à hierarquia militar, também gerou uma. Em 1916 surgiu outra, beneficiando os envolvidos nos conflitos de 1915 até a Proclamação da República. Anistias também beneficiaram os envolvidos na Guerra do Contestado.
Então, surge Getúlio Vargas, que para alguns encarnava a imagem do mais temível ditador. Também Vargas concedeu anistia, no quinto dia após a sua posse como Presidente. Depois concedeu outra, em 1934, aos envolvidos na Revolução Constitucionalista de 1932. Novamente Vargas fez mais uma, em 1945, beneficiando presos políticos.
Após se suicidar, assumem Café Filho, Carlos Luz, Nereu Ramos e, em seguida, por eleição, Juscelino Kubitschek. Este concede anistia ampla e irrestrita aos envolvidos nas rebeliões militares de Aragarças e Jacareacanga e, em 1961, mais uma, retroagindo a 1934.
Após o regime implantado em 1964, foi concedida anistia em 18 de agosto de 1979. Resultou dos comitês pró-Anistia, formados por brasileiros, a partir de 1978. Em 1985 ocorreu abrangente anistia, pela Emenda Constitucional 26 à Constituição de 1969, que foi muito ampliada no contexto da atual Constituição Federal, que dela trata no artigo 8º, do seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, retroagindo a 18 de setembro de 1946.
Assim, é inegável que há um espírito apaziguador, superior e até terno, incentivando a união de todos em torno de uma sociedade fraterna, na ambiência da vigente Constituição Federal de 1988, que nasceu como a “Constituição Cidadã”, na célebre expressão de Ulysses Guimarães.
Para a nossa Constituição, é do Congresso Nacional a competência para a concessão de anistia, com a sanção do Presidente da República. Portanto, é ato típico do Poder Legislativo.
Aliás, esse papel do Parlamento, na divisão de competências e atribuições, é obra recente, com pouco mais de 200 anos e decorrente da Revolução Francesa. De fato, com a queda do centralizador Antigo Regime absolutista, ganhou o Poder Legislativo certas competências exclusivas, como essa.
O historiador francês Albert Mathiez, na sua obra As origens dos cultos revolucionários, referiu-se aos legisladores como os “sacerdotes da felicidade social”. Essa felicidade não se alcança com a espada cortante empunhada, ameaçadora… Esta, só divide e fere.
A felicidade é alcançada pela sabedoria, pela clemência, pela união das pessoas em torno da nacionalidade e das virtudes. Urge que a espada de guerra seja trocada pela Espada Flamejante. É esta que se associa à ideia de justiça e superior proteção contra as forças do mal, representativa daquela empunhada pelos Querubins, na guarda e proteção do caminho ao conhecimento (Gênesis, 3:24).
Rendamos honra à nossa história, à cultura e à amorosidade do povo brasileiro. Não adianta se criar variantes narrativas, tentar arrancar páginas dos livros ou pintar por cima os muros e placas.
Não somos país contra anistia, não somos país contra o perdão, não somos país contra a compreensão, a tolerância, a harmonia e o amor. O passado intelectual importa e a tradição fala alto. A anistia não é algo que sirva à Esquerda ou à Direita, não é arma de guerra ou instrumento de negociação. A Anistia ao amor pertence.
*Rogério Reis Devisate é membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania. Colunista do Diário de Minas