A filosofia da cápsula de café
Uma cápsula de café prepara uma bebida sempre idêntica na Itália ou no Brasil. Tem-se uma bebida decente. Resultados sempre iguais só podem ser atingidos com padronização e mecanização.
28-09-2024 às 07h:29
Marcelo Galuppo*
Abro os olhos sobressaltado: o despertador não tocou! Lembro-me, depois do susto, de que é domingo. Levanto-me com mais calma e dirijo-me à cozinha, enquanto todos dormem. Tomo nas mãos uma cápsula de café da marca famosa, certeza de que a bebida de meu desjejum terá a qualidade requerida por um homem de classe média, educado e de meia idade.
Interessante artefato, a máquina de café em cápsula: é como ter um barista em casa. Houve uma época em que um italiano, para beber seu espresso ou capuccino, precisava sair de casa, ir ao bar, quase ser atropelado ao atravessar a rua, conviver com estranhos, gastar muito, uma trabalheira. Hoje, basta ter se lembrado de passar pela gôndola do supermercado na noite anterior.
Essa é a filosofia da superfície da cápsula de café: otimizar o resultado e reduzir o risco e o esforço. Uma cápsula de café prepara uma bebida sempre idêntica na Itália ou no Brasil, e isso com o mínimo esforço do usuário para se conseguir uma bebida decente. Mas resultados sempre iguais só podem ser atingidos com padronização e mecanização. Essa nem sempre foi a filosofia do café.
Há aqueles que ainda se lembram dessa instituição mineira, o café coado, não em um filtro de papel, descartável, com a água aquecida no micro-ondas, mas em um bule esmaltado, em um fogão à lenha, com um coador reutilizado centenas de vezes, até adquirir ele mesmo a cor, a alma do café. Coisa de vó. Claro que às vezes nos colocava em saias justas: o café estava quente demais, colocaram açúcar demais (que os campeões da cápsula de café sequer pensam em adicionar à bebida), o pó era de péssima qualidade. Mas ninguém fala da bebida produzida com a cápsula de café: que gostoso! Ele não traz à memória nem coisas ruins, nem coisas boas.
O apagamento da memória é um requisito do mundo moderno e do modo como ele transformou a cultura em um produto de consumo. Os filósofos de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, diriam que se trata de um processo de massificação requerido pelo próprio capitalismo: vender um produto que é sempre igual, e que não possui surpresas, é muito mais fácil, porque não pressupõe o gosto do consumidor: forma-o. É claro que é possível beber café melhor que o produzido com uma cápsula, mas não gastando tão pouco. E um café produzido de maneira mais artesanal vem sempre com o risco da imperfeição e do defeito.
Para atingir esse objetivo, a indústria precisa fazer uma cisão entre o dentro e o fora (e aqui encontramos a filosofia profunda do café de cápsula). O dentro, o pó de café, é o orgânico. O fora, a cápsula de alumínio, é o mineral. E, desde sua origem, para que essa tecnologia funcionasse, era preciso que esses dois mundos nunca se encontrassem.
A cápsula, só pode ser conhecida pelo tato, e, apesar de os amantes de café falarem em corpo e peso, os sentidos que intervêm no consumo de seu produto são de outra esfera, mais “espiritual”, o olfato e o paladar. Essa cisão marca, em primeiro lugar, uma concepção da indústria acerca do consumidor: a experiência do café precisa ser fragmentada, analiticamente separada, e, ao realizar essa operação, a experiência integral do café é negada ao consumidor.
O produto da cápsula de café é totalmente separado do método de sua produção, a experiência de extrair o café é independente da experiência de bebê-lo, exatamente o contrário do que acontece com o café que o barista prepara, ou com o café coado de nossa avó. Quando ela nos pedia que pegássemos a lata na estante, passávamos a mão pelo pó preto, sentíamos seu cheiro e víamos sua transformação ocorrer no coador. Vemos também essa transformação ocorrer nas mãos do barista, nas inúmeras etapas de sua arte. A experiência de preparar o café e de prová-lo era uma experiência única. Agora, produção e produto estão irremediavelmente separados.
Depois de pensar tudo isso, coloco a cápsula no receptáculo, a xícara sob o dispensador e aciono o mecanismo. O cheiro de café enche o ar. Terminada a extração, levo a xícara ao lábio, beberico um pouco o líquido preto, com o creme castanho e denso que caracteriza o bom Espresso. Meu espírito se enche de alegria. Estou pronto para enfrentar mais um domingo de minha vida
*Marcelo Galuppo é doutor em Filosofia do Direito e professor da PUC Minas e da UFMG. Ele é autor de diversos livros, dentre eles #Um dia sem reclamar, de 2020, #Um dia sem odiar, de 2024, ambos em coautoria com Davi Lago, e Os sete pecados capitais e a busca da felicidade (2024), todos pela Editora Citadel.