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O que será de nós?

Precisamos de padrões rígidos para que as nossas ações se ideias possam representar mudanças na vida das pessoas. Sem isso, tudo é casuísmo e jogo de interesses, hábeis a não categorizar governante como estadista631

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28-09-2024 às 07h:04

Rogério Reis Devisate*

Em meio ao vai e vem das expectativas o mundo segue o seu rumo. Qual rumo? O que a humanidade traçou ou o que o mundo nos impõe? Temos avanços, aqui ou acolá, que convivem com retrocessos e promessas vazias.

O eterno jogo da polícia e ladrão deveria se chamar “ladrão e polícia” pois a liberdade de ação dos bandidos antecede a legislação que vai criminalizar a prática constatada e ensejar as atividades do Judiciário e da polícia, já que não há crime sem lei anterior que, como tal, defina a conduta. Só a lei define a conduta como transgressora e criminalmente punível e, enquanto isso, no vácuo, no vazio e no transcorrer da elaboração das normas, a liberdade de agir é ampla e os lucros são gordos.

Os delinquentes, portanto, agem sem os freios e balizamentos legais que estão presentes nas ações dos agentes de Estado. Isso se vê na ação dos governos e seus agentes contra as milícias e atividades outras e afins, como, por motivos distintos, exemplifica o tráfico internacional de pessoas e de drogas e as ações do Hezbollah. 

Paralelamente, como se condenar com dois pesos e duas medidas ações de uns e outros?

Precisamos de padrões rígidos para que as nossas ações e ideias possam representar mudanças na vida das pessoas. Sem isso, tudo é casuísmo e jogo de interesses, hábeis a não categorizar governante como estadista e grande líder, apequenando biografias e desperdiçando oportunidades.

O mundo encontrou mecanismos de transparência e de defesa dos direitos humanos, liberdade de expressão e de imprensa e práticas democráticas, com a lei sendo a expressão da ação de todos e do Estado e com menos espaço para decisões discricionárias, ao gosto do freguês e do imperador de  plantão.

Ao mesmo tempo – triste coincidência – viu recrudescer ou surgir organismos paraestatais fortes e que se valem do que puder para se estabelecer e combater os seus combates. Nessa luta, ainda que a contragosto, os governos são a luz e os demais tudo o que representa as sombras.

É uma luta inglória entre a força de uns e o poder de outros. Força, aqui, como potência sem limites. Poder, como decorrência da estrutura e formação das nações e estados nacionais.

Nesse universo de oposições e fortes contradições, democratas podem parecer tirânicos, como Thomas Jefferson que, na ambiência da Guerra da Independência dos EUA, defendeu que deveriam ser castigadas pessoas que agissem como “traidoras no pensamento”, como registra Noam Chomsky.

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Trair pelo pensamento, punir pelo pensamento, perseguir pelo pensamento não parecem coisas a combinar com defensor da liberdade. 

Essas sutilezas e reticências do pensamento já foram – e muito – punidas em regimes autoritários, como fruto da ação de delatores e fofoqueiros. 

Apesar disso, o que temos visto é uma cultura dominante a determinar as nossas ações. 

Temos sido levados por uma correnteza forte, que nos impede de parar para refletir. Por esse motivo optamos por aderir a modelos que nos são impostos pelas forças dominantes e por pequenos grupos sociais, por medo ou necessidade de aceitação. Assim, somos levados a limitar nossas ações e a agir apenas por reação: a favor ou contra. Argumentos acabam sendo deixados de lado e motivações e causas determinantes para certas consequências são desprezadas, enterradas e ocultadas.

Somos sugados pela cultura dominante que nos é imposta e empurrada goela abaixo.

De certo modo, o presente já é passado quando temos medo de opinar e construir os argumentos pessoais. Isso já desperdiçou a nossa época, os nossos anos e dias. Deixamos de ser atores para ser espectadores. Somos oprimidos por certas regras e temos medo de agir fora delas.

Somos uma onda de pessoas. Uma massa que o mar joga na praia, onda após onda. Estamos esvaziados da nossa força individual, aderindo a essa massa coletiva, deixando de ser sujeitos da história para ser apenas mais um nessa massa. Isso em parte decorre da ideia errada de que temos direitos mas não deveres e de estarmos tão distraídos e alienados que achamos que nunca mais viveremos os horrores da 1ª e da 2ª Guerra e que uma 3ª não surgirá em nossos dias de vida. 

Imaginamos que o mundo é esse consumismo desenfreado e distrações que a internet facilita, ao veicular, sem regras de acesso, tantos jogos e apostas e pornografia. Nunca foi tão fácil endividar as famílias e as pessoas com tão fácil oferta de distrações e comprometimentos, viciando ou fornecendo pão e circo sob várias modalidades.

Aprovou-se alguns modelos de jogos e as famílias se endividaram – já. Imagine se os jogos e cassinos fossem amplamente liberados, como ficaria a poupança das famílias e a poupança pública?

De fato, há males que vem para o bem e, quem sabe, a lição possa ser aprendida.

De certo modo, a internet e os sites de buscas e aplicativos não têm servido para o progresso pessoal tanto quanto para o mergulho em distrações viciantes, alienação e vulgaridades. Temos propagado o que, de nós? Consumido o que, dos outros? Fazendo o que, com o precioso tempo?

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Se refletirmos, sozinhos, por apenas alguns segundos, talvez constatemos que estamos numa trilha vazia e que isso favorece os maus e os aproveitadores e manipuladores.

A medicina nos deu melhores tratamentos e vidas prolongadas e isso leva a exacerbação das crises da previdência. Vivemos mais e encarecemos os custos de um sistema previdenciário que foi, pelo cálculo atuarial, estruturado para nos pagar aposentadorias e pensões por poucos anos. Paradoxo semelhante se faz presente em outras frentes, em cenários variados.

Estamos numa espécie de morte, como reflexo de uma certa perda de valor individual, de identidade e de opinião. Estamos dependentes dos demais, dos rumos traçados pelos poderosos de plantão, por dancinhas novas e por outros motivos de dispersão. Como impacta ler Nietzsche dizer que se deveria dar o que lhe é supérfluo, mas que não pode porque “o supérfluo” está em nós.

Deixamos de ter coisas supérfluas para ser cada vez mais a representação do supérfluo, do fútil, do passageiro.

Somos massas não rebeladas, não rebeláveis, distraídas nos jogos de poder e influência que circulam pelo mundo e estamos criticando quem age por seus altos padrões de exigência e firme propósito. Somos massa: “a” massa. Como tal, somos pesados de se sustentar e, sim, não tanto indispensáveis, porque somos muitos, somos comuns e somos objeto de atenção maior de tempos em tempos quando temos de votar ou por, plebiscitos ou aplausos, legitimar ações que nos são compartilhadas, dentre tantas outras que são mais próximas dos segredos que nunca conheceremos em vida.

Enquanto isso, às margens desse nosso cotidiano embotado e cheio de distrações, os poderosos fazem o que melhor sabem, somos apenas e cada vez mais levados a seguir o que nos for determinado e crescem e se fortalecem em força e capital os que estão livres para agir nas sombras da lei, nos vácuos de poder e com o vigor de quem não tem amarras legais para se movimentar.

*Rogério Reis Devisate é advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ.  Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.

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