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O bólido mágico de dois feiticeiros

O bólido mágico de dois feiticeiros

Ponha no caldeirão pó de terra vermelha do Sertão, cognominado Cerrado, para dar a impressão de sangue e da terra mesmo, pra donde nós tudo vamos voltar um dia; dê uma esparjizada de boas pitadas de pequi, araticum

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27-09-2024 às 08h:11

Alberto Sena

Quer fazer um bólido mágico especial e espacial do Sertão Biblico? Siga a receita: contrate dois magos feiticeiros famosos. Dê a eles um caldeirão, grandão mesmo, de ferro, daqueles “do tempo do onça”, com uns pinos embaixo de apoio, dotado de alça para segurar a fim de levar e tirar do fogo.

Os dois, os melhores encontrados no Sertão de Guimarães Rosa e nosso, Ucho Ribeiro* e Silvana Soriano**, cada um na sua especificidade em matéria de magia, de mexer e remexer caldeirão, enquanto trocam vocabulário catrumano.

Ponha no caldeirão pó de terra vermelha do Sertão, cognominado Cerrado, para dar a impressão de sangue e da terra mesmo, pradonde nós tudo vamos voltar um dia; dê uma esparjizada de boas pitadas de pequi, araticum, pitomba, cagaita, cajuzinho, mangaba, baru, murici, buriti, guabiroba, umbu, coquinho azedo, araçá e ponha tudo dentro do caldeirão.

O mago feiticeiro Ucho vai com a colherona dele em forma de pena de pavão usada para escrever com tinta do tinteiro de Nanquim, lá da China, hoje Nanjing; e outra, também grandona, na mão da maga feiticeira Silvana, para ela misturar tintas e pincéis no caldo grosso, denso, porém cheiroso.

E os dois, numa coordenação planejada, um mexe para cá e o outro mexe para lá e vão mexendo e remexendo essa mistura mágica, e eis que dela sai um feitiço daqueles, dos bons.

Da parte do mago feiticeiro Ucho, o caldo produzido é remédio para quem sofre de mandinga cerebral, combate tanto a burrice crônica quanto o estoicismo exacerbado.

Da parte da maga feiticeira Silvana, o caldo dos seus pincéis e tintas tem o poder de fazer quem dele toma passar por uma transformação que serve para ilustrar e lustrar o interior das cabeças, assim como a imaginação, a memória, e a alma de quem porventura esteja no purgatório na iminência de ir para o céu do Sertão, nosso e de Rosa.

Brincalhão como é feito menino traquinas, o mago feiticeiro Ucho joga o seu caldo para cima e na medida que cai no chão do Sertão se transforma em letras, e, visivelmente vamos assistimos as letras se juntarem para formar ao final um livro de capa preta e branca, com uma gravura saída do caldeirão da maga feiticeira Silvana, intitulado “Escrituras Catrumanas”.

Livro com passagens catrumanamente explicadas da Bíblia Sagrada, sem com isso significar sacrilégio. E mais, com as bênçãos do santo ainda não canonizado pelo papa, chamado João, de sobrenome Guimarães Rosa, um camarada nascido em Cordisburgo, famoso nos sertões do mundo inteiro, porque o Sertão está em todo lugar, né, mané?

E o caldeirão ganha vida, repentinamente, e as citações bíblicas vão circulando no ar para que toda gente veja é passe a cantar loas ao feiticeiro mago que então começa a bailar ao som das imagens feitas pela feiticeira maga Silvana, uma a uma, paralela e ao mesmo tempo integrada à genialidade do que brota do caldeirão do Ucho, em borbolhas mil, de um esplendor brilhoso como o fogo espargido do Sol do Sertão reseano para tornar a nossa vida mais pródiga e feliz.

Neste instante escrevo movido pelo feitiço dos dois magos feiticeiros, que não são forjados por nenhum ferreiro dessa terra, mas não têm como negar, são frutos da herança de si mesmos, porque acabaram de lançar, numa caldeirada só um livro genial.

Vou deixar aqui para os leitores do Diário de Minas algumas doses do feitiço dos dois. E começando do princípio, vamos de Gênesis: “Antes do ovo e da galinha, num dia parado sem vento, só o mormaço, Deus, que andava acabrunhado, num enfado medonho, deu no bistunto e arresolveu criar os céus e a terra. Antes, fora as águas do rio, a terra era toda toá e areia, quando não abismo e breu. Num existia nenhum pau, quanto mais fulô, pé de pequi e pasto. Num sopro, como um arroto, Deus trovejou: - Clareia aaí! E houve luz formosa, luminosa, de apartar a treva para de noite e o sol para de dia.

“No amanhecer adispois, já tudo tilintando de claridade, o Poderoso fez um risco grosso e tortuoso no meio das terras, de perder de vista, e o encheu de água e peixes. Estirão de muitas léguas, que batizou com a alcunha de Chico, seu cumpadre. O ermo resto, que era chão Cerrado dum lado e do outro, titulou de Sertão. Daí, passou mais uns dias a brincar de inventar tudo quanto é tipo de coisas, animais, lumbriga, brabuleta e... inté caxinguelê. Quando Deus viu que tava bão, pois tinha variedade de bichinhos e bichões, carrapatos e tamanduás, pitombas e pitangas, árvores de tudo quanto há, dedicou um tempo maior pros pormenores e embonecou e enfeitou com rama, cabaça, fulô e muito inseto aquele despovoado universo”,

E num sarto, digo eu, já indo para o Novo Testamento: “Jesus enfarou-se de tudo, pediu a bênção à Virgem Maria e ascendeu ao céu, mas voltou três dias adispois para despedir de uns chegados, tomar a saideira e inspirar e mostrar a bondade e a esperança para o povo do Sertão, tão desrespeitado e perseguido. Evangelizou todos para serem acirrados contra a seca e pirracentos contra os que oprimem o povo humilde e mais carente. Praguejou a quem usar o nome dele em vão, mormente os que pregam o ódio, a tortura e o desamor. Clamou para só citar o seu Pai quando se propagar a fraternidade e a caridade, que é o amor semeado. Catequizou com insistência que devemos amor o próximo, ao invés de odiar, e que temos de respeitar as diferenças, pois Ele fez o universo sortido, colorido, e tem lugar para todo mundo. Por arremate, alertou que os artistas são os passarins do mundo, são sua criação mais quista, e que devemos protegê-los e deixá-los alegrar, poetizar, cantar e pintar, para que o povo possa suportar os tempos difíceis e de carestia. Dado o recado, profetizou que amanhã será um novo dia, e voltou de vez para as espumas do firmamento”.

*Ucho Ribeiro é escritor, ex-vice prefeito de Montes Claros e funcionário aposentado da Receita Federal. Vive em um paraíso chamado Rio Preto, na Zona da Mata. Ele é peregrino do Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha

**Artista brasileira, Silvana Soriano é Professora de Artes Visuais em Miami - Dade County Escolas Públicas Key Biscayne, Flórida, Estados Unidos. Ela trabalha em séries, explorando histórias, poemas para compreender o que está por trás das narrativas

 

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