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Vou sempre andar na rua com uma botina amarela excessivamente gasta e folgada

Vou sempre andar na rua com uma botina amarela excessivamente gasta e folgada

O calçado do meu conforto suporta um corpo com os sinais claros de decadência mergulhando nas sobras da vida e até mesmo em ondas contrarias.

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01-10-2023 às 09:40h.

José Altino Machado *

Velhice.

Eu nunca trocaria a minha vida delirante, o recanto de minha família, os meus amigos surpreendentes, por menos cabelos brancos ou por uma barriga mais lisa. 

Enquanto fui envelhecendo, tornei-me mais amável para mim, e menos crítico de mim mesmo.  Tornei-me o meu próprio amigo... 

Eu não me censuro por comer uma feijoada mineira, peixada capixaba, leitoa assada com torresmos extras ou pela compra de algo supérfluo; nem mesmo pela preguiça de uso do meu corpo na rotina da noite. 

Eu tenho direito de dar-me ao desejo e vontades pessoais, assim como também entregar-me aos sabores e a ser desarrumado, ou algo extravagante, polemico, mas livre.

Quem vai me repreender se resolvo ficar lendo ou jogando baralho com amigos ou no computador até altas horas da madrugada e dormir até a idade me acordar? 

E mesmo não tão bonito, se dançar, ainda dançarei ao som daqueles sucessos arrebatadores dos anos 60/70, e ao mesmo tempo, se desejar chorar por um amor não reconhecido ou perdido.... Eu choro.

Vi muitos caros amigos deixarem este mundo cedo demais, antes de compreenderem a grande liberdade que vem com o envelhecimento.

 Vou sempre andar na rua com uma botina amarela excessivamente gasta e folgada, do meu conforto, já suportando um corpo com os sinais claros de decadência mergulhando nas sobras da vida e até mesmo em ondas contrarias... se eu quiser... apesar dos olhares contrariados ou de comiseração dos outros. Eles, também, haverão de envelhecer.

Sei que às vezes já esqueço algumas coisas... Mas, entre elas, existem também coisas da vida que devem ser esquecidas. Eu só me recordo das mais importantes e que boas diferenças fizeram.

Claro, ao longo dos anos meu coração vez por outra foi quebrado.  Como não quebrar o coração, quando se perde um filho ou um ente querido, se assistiu uma criança sofrer, quando companhias não lhe são leais, ou mesmo na simplicidade de algum estimado animal do afeto ser vitimado em um tolo acidente? Pesa muito....

Porém, corações partidos são que nos dão força, tolerância, compreensão e compaixão.  Um coração que nunca padeceu, é imaculado e estéril e nunca conhecerá a alegria de não ter sido imperfeito.

Sou mesmo bastante abençoado por na intensidade da vida haver feito troços inimagináveis, feito apenas o que queria, por ter vivido o suficiente para ter cabelos e barba grisalhos e tendo ainda aventuras, loucuras e os risos da juventude gravados para sempre nos sulcos visíveis de meu rosto. 

Ainda mais, que alguns ou muitos nunca chegaram a rir com a alma e ainda desapareceram antes de seus cabelos virarem prata.                             

E de alguns sinto falta, outros apenas desocuparam.

Conforme você envelhece, é mais fácil ser positivo.  Relevam tudo ou o dizem autêntico. Alguns até lhe dizem ser grosso ou principiante da esclerose. Você se preocupa menos com o que os outros pensam.

Assim, não me questiono mais.

Granjeei o direito de estar errado e às vezes incoerente... Minha vida pagou para isso.

Até gosto de ser idoso...  A idade me libertou... Gosto da pessoa que me tornei...   Não vou viver para sempre. Enquanto eu ainda estiver aqui, não vou perder tempo lamentando o que poderia ter sido, ou me preocupar com o que virá ou será.  Continuarei vivendo o dia pós dia admirando tudo de bom à minha volta, tempo tenho para isso. Até as mulheres, todas, ganharam beleza, inclusive as que não o são... e muitas delas já me olham sem me ver. Não importa, já que cultivei um novo prazer em apenas admirá-las e muito. 

Mais, vou viver e comer sempre tudo e de tudo, inclusive doçuras todos os dias! Se me apetecer... 

E que minhas amizades nunca se acabem, porque são diretas do coração! E sempre colhi o que semeei...

Afinal, a dádiva única natural da vida é morrer na velhice, jamais na mocidade, o que faz caber sempre o dito:

“Não morreu, descansou” ...

*José Altino Machado é jornalista

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