
CRÉDITOS: Divulgação
09-08-2025 às 10h05
Gisele Bicalho*
A reforma da casa dos meus pais era um sonho adiado infinitas vezes. Os motivos variavam conforme a época. De dinheiro escasso, à falta de planejamento ou até mesmo, é preciso confessar, à preguiça de conviver com a bagunça. Qualquer obra, por menor que seja, provoca o caos. E isso não é de hoje. Esse adiamento tem até nome. Mamãe, especialista em nominar o inominável, apelidava a inércia de “Projeto Urubu”. O apelido pegou.
• Seu pai é especialista em Projeto Urubu, Mamãe reclamava sempre que alguém comentava sobre a tal reforma.
• Mas, por que “Urubu”? Não temos a menor ideia. Coisas da nossa mãe.
Encerrada a trajetória terrena – cumprida com louvor, diga-se de passagem – Mamãe e Papai vazaram para a Casa de Deus. Nós continuamos por aqui com múltiplas tarefas (ou seriam missões?). Uma delas, a reforma da casa tantas vezes adiada.
O tempo passou. Ora devagar, ora rápido demais, até que Lulu, Gilda e Jacq decidiram:
• Que Projeto Urubu, que nada! Já estava passando da hora de botar a mão na massa.
Economizaram daqui, rasparam o tacho dali, até que as três conseguiram juntar a quantia necessária para a obra (ou obras, porque era coisa demais a se fazer). Afinal 50 anos não são 50 dias. Aconteceu conosco e não foi diferente com a casa. O tempo pesa. E como pesa. Detalhe importante e necessário: tudo poderia ser mexido, menos os azulejos, xodó da nossa mãe.
Foram muitos os desafios. Mão de obra difícil e escassa, material de construção pela hora da morte. Mas nada que desanimasse as três mosqueteiras. A obra finalmente começou. Um caos. Meses depois, para a felicidade geral da família, foi concluída. Ou quase? Faltava a área externa. Era preciso reformar o piso e dar um jeito na mesa do quintal que andava meio feinha. Com sol e chuva no lombo, o desgaste era evidente.
Dessa vez quem ignorou o Projeto Urubu foi o cunhado João Cabral. Durante três dias o nosso querido se dedicou a pintar o piso e a envernizar a mesa e o banco. Nem as mãos em frangalhos e as costas doloridas desanimaram o João. Trabalho concluído, palmas para ele. Ficou perfeito.
Dito isso, vamos ao momento reflexão:
• Por que adiamos o inadiável? Por que postergamos o que não pode ser postergado?
Defendo uma tese que talvez você discorde. No meu caso o Projeto Urubu vale para aquilo que não me dá prazer. Se a tarefa é prazerosa não há porque adiá-la. Caso contrário, só Jesus na causa.
E isso vale para o meu Pai e para os meus irmãos. Lembro do Beto comentar que na hora de consertar o curral ou a cerca, ele sempre sabia o que tinha sido obra do Papai. O trabalho era tão perfeito que arrancar os pregos, soltar as tábuas, arrancar os mourões ou esticar o arame da cerca exigiam horas de sacrifício.
• Pai, isso só pode ter sido obra do senhor, né? Tá perfeito demais.
Ou seja, fazer o curral ou a cerca era algo que Papai gostava e quando punha mãos na massa o resultado era a perfeição. Vivia reformando o lugar.
• Tá na cara que isso não foi construído pelo Vovô, dizia o Beto para alegria do Velho Osvaldo.
Papai não escondia o orgulho de ver o seu trabalho valorizado. Sorria de orelha a orelha.
Hoje, vejo muito do meu pai nos meus irmãos. Beto e Ricardo, cada um a seu jeito, reproduzem gestos, gostos e atitudes do nosso pai. Nós, as meninas da “Casa da Sete Mulheres”, temos um pouco da Mamãe e um pouco do Papai. Somos a mistura dos dois. Proativas, metemos a mão na massa e lideramos processos quando necessário. Umas mais, outras menos. No meu caso, confesso, se me dá prazer sigo em frente. Caso contrário … aí você já sabe. Projeto Urubu na veia.
A verdade é que somos feitos de várias camadas. Muitas, quase sem querer, carregam as marcas dos nossos pais. Há padrões que escolhemos repetir com orgulho, e outros que nos empenhamos em transformar. Nessa dança entre herança e escolha, aprendemos lições valiosas: paciência para começar do zero e força de vontade para não desistir no meio do caminho. Porque o que se constrói com as próprias mãos, mesmo que demore, tem outro sabor e outro valor. Vida que segue.
Por falar nisso, precisamos reformar o nosso lugarzinho em Beagá. E mais uma vez, a história se repete. Qualquer dia desses a gente começa a trocar o piso, a pintar as paredes. É preciso também plotar a geladeira. Quando? Só Deus é quem sabe. Alguém se oferece para começar?
*Gisele Bicalho é jornalista