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17-07-2025 às 10h00
Elizabeth Accioly
O respeito entre iguais à beira da falésia
Elizabeth Accioly
Quando eu era criança, ouvia frequentemente uma frase da minha avó sempre que algo a abalava ao ler as notícias no jornal: “É o fim dos tempos”, dizia ela, incrédula diante de cenários catastróficos daquela época. Passaram-se décadas desde então, o mundo continuou a girar, mas se ela estivesse cá hoje, creio que não hesitaria em repetir essa frase com mais convicção do que nunca.
De facto, parece que o mundo chegou à falésia da Nazaré, pois o fumo negro e estranho que, segundo a lenda, atraiu D. Fuas Roupinho e o seu cavalo até ao precipício, anda novamente por aí. Só que agora não ameaça apenas um cavaleiro solitário — ameaça a estabilidade de todo o sistema internacional. Hoje, vivemos esse “fumo negro e estranho”, entre o ocaso de uma era e o amanhecer incerto de outra. São novos e nebulosos tempos, que nos surpreendem a cada dia pelo desprezo às regras da comunidade internacional, ao ponto de ressurgir a discussão sobre o conceito de soberania — conquista sacramentada no Tratado de Vestfália, no século XVII.
As recentes decisões comerciais do presidente norte-americano impõem-se ao sabor da sua vontade, gerando apreensão entre os principais parceiros económicos. Se o “tarifaço” de 50% sobre as importações do Brasil avançar já em agosto, estima-se que até 75% das exportações alimentares brasileiras para os EUA sejam afetadas, com impacto direto no agronegócio e uma possível redução de 0,4% no PIB do país. A União Europeia enfrenta igualmente a ameaça de tarifas de 30% sobre as suas exportações, o que levou Bruxelas a classificar a medida como “absolutamente inaceitável” e a preparar uma resposta no valor de 72 mil milhões de euros. Mas para já, tanto o Brasil como a UE apostam na via diplomática, em busca de uma negociação que evite uma guerra comercial aberta. A ver vamos.
A situação torna-se ainda mais preocupante quando percebemos que os países afetados por estas tarifas desproporcionadas pouco ou nada podem fazer dentro dos canais institucionais existentes. A Organização Mundial do Comércio (OMC), que deveria ser o fórum natural para a resolução destas disputas, encontra-se paralisada — precisamente porque os Estados Unidos (ironicamente, os mesmos que impõem estas medidas) bloqueiam há anos — desde o primeiro governo Trump, passando também pelo governo Biden, é bom que se diga — a nomeação de juízes para o seu Órgão de Solução de Controvérsias. Esta obstrução deliberada mina o sistema multilateral de comércio e deixa os demais Estados à mercê de ações unilaterais, sem mecanismos eficazes de recurso. É uma contradição flagrante: quem rompe as regras impede que outros as possam fazer valer.
A crítica frontal do governo americano ao sistema judicial de outros países, como o Brasil, é outro exemplo evidente desta nova ordem, que confirma uma mudança profunda na forma de se fazer política internacional. Quando se ignora o princípio da igualdade soberana entre Estados e se desrespeita o princípio da não ingerência nos assuntos internos — pilares consagrados no artigo 2.º da Carta das Nações Unidas — não se trata apenas de violar protocolos diplomáticos: na verdade, estão a ser corroídos os alicerces da convivência pacífica entre as nações, que são a salvaguarda do equilíbrio entre iguais. E a resposta do presidente brasileiro face a essa provocação não podia ter sido mais clara nem mais pedagógica, ao recordar o verdadeiro significado de soberania: “Cada país cuida do seu nariz!”
No entanto, tudo indica que novos princípios vão tomando conta da cartilha internacional que se redesenha, distanciando-se perigosamente dos compromissos assumidos no pós-guerra — precisamente agora, quando se assinalam os 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. A arquitetura multilateral que então emergiu, fundada na igualdade soberana, na cooperação e na não ingerência, vê-se hoje fragilizada por práticas unilaterais e pela normalização da força sobre o direito. E a velha máxima latina “par in parem non habet imperium” parece estar a ceder lugar a uma nova doutrina informal, vestida na linguagem do poder contemporâneo: “equals have sovereignty over each other.”
E, por isso, talvez a minha avó tivesse mesmo razão. Se não for o fim dos tempos, é certamente o fim de uma era em que os iguais ainda se respeitavam.