
CRÉDITOS: Divulgação
19-07-2025 às 10h21
Sebastião Carlos Martins*
Com o avanço da transição energética global e a pressão por soluções sustentáveis, o Brasil começa a investir com mais firmeza em tecnologias capazes de dar um novo destino aos resíduos sólidos urbanos (RSU). As chamadas Unidades de Recuperação de Energia (URE) são parte essencial dessa virada — permitindo transformar lixo em energia elétrica ou hidrogênio, dois produtos com potencial estratégico e valor crescente no mercado internacional.
A decisão entre as duas rotas, no entanto, vai além da tecnologia. Envolve fatores financeiros, operacionais, ambientais e de posicionamento geopolítico. Ambas são viáveis, mas cada uma possui características próprias que impactam a atratividade de investimentos e o alinhamento com as políticas climáticas globais.
Hidrogênio verde: aposta ousada para um Brasil mais competitivo
A produção de hidrogênio verde a partir de resíduos urbanos tem ganhado destaque por sua flexibilidade de uso e por posicionar o país na vanguarda da transição energética. O hidrogênio pode ser aplicado em setores estratégicos como transporte coletivo, mobilidade urbana, indústrias de base, geração elétrica descentralizada e até como vetor de exportação de energia limpa.
No entanto, essa rota exige tecnologia mais sofisticada, controle operacional apurado e maior integração com cadeias logísticas e regulatórias ainda em desenvolvimento no Brasil. O mercado de hidrogênio está se consolidando, mas a comercialização em larga escala ainda depende de avanços normativos e da estruturação de corredores de distribuição.
Apesar disso, o investimento se justifica: ao viabilizar a produção nacional de um insumo energético globalmente valorizado, o país reduz sua dependência de combustíveis fósseis, amplia sua presença em mercados verdes e contribui para o cumprimento de compromissos climáticos internacionais.
Energia elétrica: caminho consolidado, mas com gargalos estruturais
Por outro lado, transformar RSU em energia elétrica continua sendo uma solução mais direta e consolidada. A tecnologia de conversão é amplamente dominada, o investimento é menor e a operação é mais simples. Entretanto, esse caminho enfrenta dificuldades importantes no Brasil: a inserção da energia gerada na rede nacional está sujeita à limitação da infraestrutura de transmissão e distribuição, bem como à morosidade nos processos de autorização pelas concessionárias.
Além disso, os projetos de geração WTE (waste-to-energy) competem diretamente com fontes renováveis já maduras e altamente competitivas no país — como a energia solar fotovoltaica e a energia eólica —, cujos custos de produção vêm caindo ano após ano. Isso pressiona os preços da energia e pode comprometer a rentabilidade de projetos que dependam exclusivamente da venda de eletricidade.
Benefício ambiental direto: menos aterros sanitários
Tanto a rota do hidrogênio quanto a da energia elétrica oferecem um benefício ambiental comum e crucial: a redução drástica da dependência dos aterros sanitários. Ao utilizar os resíduos como insumo energético, evitam-se problemas graves como a emissão de metano, a contaminação do solo e da água subterrânea, além do uso descontrolado de áreas urbanas para deposição de lixo.
Esses ganhos ambientais são equivalentes nas duas rotas. Contudo, a rota do hidrogênio verde prepara o país de forma mais eficiente para a transição energética, ao conectar a gestão de resíduos com a mobilidade sustentável, a descarbonização industrial e a entrada do Brasil no mercado global de hidrogênio — um dos pilares da economia verde do futuro.
Modelo de projeto: duas rotas, um mesmo insumo
Estudo realizado pela DBEST PLAN avaliou duas UREs com capacidade de processar 200 toneladas/dia de RSU, utilizando a técnica de gaseificação. A diferença está no destino do gás de síntese:
- Na Rota 1, o gás alimenta uma unidade de eletrólise para produção de hidrogênio e oxigênio.
- Na Rota 2, o gás é direcionado à geração de energia elétrica.
Em ambos os casos, a Taxa Interna de Retorno (TIR) anual estimada é de 24%, indicando que ambos os modelos são financeiramente viáveis. O diferencial está no perfil de risco e nas perspectivas de receita.

A Unidade de Recuperação de Energia (URE) com capacidade de processamento de 201,05 toneladas/dia apresenta duas rotas tecnológicas comparativas: uma voltada à produção de hidrogênio e outra à geração de energia elétrica. A análise dos resultados econômicos mostra que a rota com produção de hidrogênio gera uma receita total anual de R$ 33,83 milhões, enquanto a rota de energia gera R$ 27,96 milhões, resultando em um ganho adicional de R$ 5,87 milhões/ano a favor da rota do hidrogênio.
Esse ganho ocorre principalmente pela venda de hidrogênio, que soma R$ 12,54 milhões/ano na rota dedicada, valor inexistente na rota de energia. Ambas as rotas possuem receitas idênticas com a venda de oxigênio, créditos de carbono e GATE FEE, enquanto a rota de energia é superior apenas na venda de eletricidade (R$ 11,87 milhões contra R$ 3,15 milhões na de hidrogênio).
No entanto, esse aumento de receita na produção de hidrogênio implica também maiores despesas operacionais. O CAPEX necessário é de R$ 97,02 milhões, R$ 15,12 milhões a mais que na opção energia. Da mesma forma, o OPEX anual é superior em R$ 3,03 milhões.
Mesmo com maior receita bruta, a TIR anual da rota de hidrogênio é ligeiramente inferior à da rota de energia (24,05% vs. 24,06%), praticamente equivalentes. Essa diferença de -0,01% indica que, apesar da maior geração de valor bruto, o investimento adicional necessário para viabilizar a produção de hidrogênio anula o benefício marginal gerado, tornando as rotas similares do ponto de vista da atratividade financeira.
Como visto acima, destacamos que a rota do hidrogênio gera quase R$ 6 milhões a mais por ano em receitas, com destaque para a venda de hidrogênio (R$ 12,5 milhões/ano) e oxigênio (R$ 2 milhões/ano). O investimento inicial, no entanto, é R$ 15,12 milhões mais elevado, e os custos operacionais são R$ 3 milhões/ano mais altos.
Comparativo direto: vantagens e desafios
Hidrogênio Verde – Vantagens:
- Receita superior e maior diversificação;
- Contribui diretamente para descarbonizar transporte e indústria;
- Viabiliza uso do RSU como vetor de exportação de energia limpa;
- Alta resiliência financeira (95% de chance de TIR entre 20% e 28%);
- Preparação estratégica para inserção no mercado global de H₂.
Hidrogênio Verde – Desafios:
- Maior CAPEX e OPEX;
- Necessidade de controle técnico rigoroso;
- Mercado emergente e logística ainda em fase de estruturação.
Energia Elétrica – Vantagens:
- Menor investimento inicial;
- Operação mais simples e conhecida;
- Receita estável quando existem contratos de fornecimento firmados.
Energia Elétrica – Desafios:
- Receita total menor;
- Menor impacto estratégico e tecnológico de longo prazo;
- Dificuldade de conexão à rede e concorrência com fontes renováveis baratas.
Tendência mundial: convergir resíduos e energia limpa
No contexto internacional, cresce o interesse por soluções integradas de gestão de resíduos e transição energética. A Europa lidera com mais de 2.500 UREs em operação. Países como Japão, Coreia do Sul, Emirados Árabes e Chile já estruturam políticas específicas para produção e uso de hidrogênio verde.
No Brasil, a combinação entre alta geração de resíduos, carência de soluções sustentáveis de descarte e crescente demanda por energias limpas cria o ambiente ideal para projetos inovadores. A inclusão desses projetos em programas de financiamento climático, como o Fundo Verde para o Clima e mecanismos de crédito de carbono, pode acelerar sua implantação.
Conclusão: decisão entre presente viável e futuro estratégico
A análise da DBEST PLAN, baseada em Simulação de Monte Carlo, mostra que ambas as rotas são rentáveis e viáveis sob diferentes condições. No entanto, a rota do hidrogênio verde representa um passo além: prepara o país para o futuro, alinha-se às tendências globais, amplia o impacto ambiental positivo e abre novas oportunidades econômicas.
A escolha entre uma ou outra dependerá do perfil do investidor, do grau de inovação pretendido, da estrutura de financiamento e do papel estratégico que cada projeto deseja desempenhar na nova economia verde.