
Festa portuguesa da colônia de Juiz de Fora - créditos: Tribuna de Minas
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01-06-2025 às 09h29
(*) Wilson Cid
Ora pois. Pode ser que um imigrante português, vindo de Lisboa ou de Trás-os-Montes ou de qualquer aldeia banhada pelo Tejo, enfrente dificuldades em outras partes do mundo, menos no Brasil; muito menos ainda em Juiz de Fora, onde milhares deles têm aportado desde longos tempos. Por que aqui o futuro a eles se abriu mais promissor? Antes de tudo porque, tanto os que chegavam como os que os esperavam, falavam a mesma língua; e nada mais venturoso que isto, para os que desejam se entender. O idioma comum aos dois povos, salvo algumas diferenças de expressões logo substituídas ou interpretadas, removia o obstáculo natural para quem quer se fazer entender. Percebe-se que estava aberto o campo para o rápido estreitamento daquela cultura estrangeira, esta longe de constituir novidade para a nossa História.
De fato, o falar idêntico, desde o tempo dos reinóis, ajudou muito os dois povos a não se considerarem estranhos, e seria também, em épocas seguintes, o que daria aos lusitanos capacidade para fincar aqui seus valores étnicos, sem impedimentos, mesmo diante de uma natural resistência brasileira aos colonizadores vindos do além-mar. Vale citar neste ponto uma constatação de há muito conhecida da história: geralmente povos de língua comum só digladiam quando lutam pela independência, tal como se deu entre Brasil e Portugal. No campo do patrimônio étnico, quando transmitido de igual para igual, isto é, gente livre para gente livre, há de se admitir que o tempo fez com que se fundissem, numa única entidade cultural, as gerações que se seguiram aos dias negros do feitor sobre o colonizado.
Para insistir em que o idioma é valor de primeira ordem e de grandeza insubstituível, vale o que disse o poeta Virgílio Ferreira: “A língua portuguesa é um bem precioso que une povos, une o que a afetividade aproxima”. Sendo uma facilitadora do entrosamento entre portugueses e juiz-foranos, fácil é sentir que ela vai colocar a contribuição lusa como algo capaz de construir e consolidar, mais rapidamente que em relação a outros povos, ao lado de uma convivência marcada por singulares afetos. Diria alguém, mais tarde, que, no caso dessa comunidade imigrante que veio conviver conosco, a arte de falar, aliada a outras virtudes intrínsecas, mostrou que aqui, quando muito, o que separa não é o mar; mas, diríamos, as calmas e estreitas águas do Paraibuna… Na margem esquerda, ela foi entusiasta do progresso de Vitorino Braga e Costa Carvalho. Na margem direita, incontáveis suas realizações no comércio. Não há, nesta cidade, quem não tenha à mão provas numerosas disso.
A aventura de todos os imigrantes escreveu-se com as mesmas cores. Os portugueses do fim do século 19 e primeiras décadas seguintes, que vieram para Juiz de Fora instruídos e animados por cartas e convites dos parentes que os antecederam, não se lançaram em condições muito mais confortáveis em relação aos antigos desbravadores, embora já navegassem com a segurança que era desconhecida no passado. Pouco, quase nenhum conforto, como lembra Adérito Rodrigues, 16 dias no mar. Centenas não tiveram sorte diferente.
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Vejamos agora como são antigos esses laços. Na verdade, foi em nossa vila-menina, depois cidade, que começam os vínculos com os portugueses. Um juiz de fora português, Luiz Forte Bustamante Sá, em 1713, passando por aqui, decidiu comprar de João Oliveira uma légua de terra no Caminho Novo, e foi ali que construiu sua fazenda. Um pioneiro bastante complicado — diga-se de passagem —, que a própria Coroa depois declararia indesejável. Muito mais desejáveis e respeitosos foram os portugueses que vieram depois dele.
Passaram-se os tempos, já na União e Indústria vamos ver o lisboeta Américo de tal queixando-se de ter de pagar 4 mil réis para viajar em terceira classe de diligência entre Petrópolis e Juiz de Fora, e ainda sob a exigência de ter de tirar os sapatos…
Essas recordações servem para mostrar como é anciã nossa convivência com os portugueses. Porém, mais que o tempo, melhor é registrar o que se nos afigura importante para os sinais marcantes de sua presença. Alguns poucos, em número muito menor que os italianos, foram inicialmente levados para a Hospedaria Horta Barbosa, esperando sua instalação nas fazendas da região. Não revelavam aptidão para o campo, embora para isto a maioria tenha sido atraída e convidada. Não foram. Bateram o pé. E resistiram mais que os italianos, jogados pelo destino naquele mesmo lugar da Tapera.
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Formula-se uma tentativa de explicação, mera tentativa, até que alguém se disponha a estudar,o que neles é a natural tendência para promover o relacionamento entre as pessoas, não apenas entre patrícios. Talvez isso também possa explicar a vocação para o comércio. Antes de qualquer outra atividade, esta é que iria inspirar mais os imigrantes, com a singularidade de apostarem muito nos bairros para os seus negócios. Como se viu acima, para tanto não hesitaram em passar para a outra margem do rio. Logo o bar, o restaurante, a pousada, os pequenos e grandes serviços se revelariam mais atraentes. Falaremos mais sobre isso.
É preciso ir adiante, sem deixar que escapem os sinais civilizatórios mais profundos. É o caso do acendrado sentimentalismo que têm quanto à perda de bens afetivos. O português sempre teve ciúmes de tudo que o rodeia, sobretudo em relação à casa e à família. O que, aliás, vem de longe, pois já no século 18, um conto de Júlio Dantas, “O Amor em Portugal”, fala sobre o zelo masculino dos patrícios daquela época. As famílias foram e ainda são para eles tais, que nenhum outro valor delas se aproxima. Mas, para constituí-las, e aqui vem à lembrança um detalhe que de certa forma os diferencia de outras organizações imigrantes, é que o português nunca discriminou a mulher brasileira, de que origem for. A não ser quando as saudades insuportáveis o levam a trazer a cachopa que ficou na Terrinha. Há casos contados em prosa e verso em que, tão logo se considerava instalado, ele escrevia pedindo que embarcasse a amada no próximo navio.
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Não é demais insistir. O primeiro entre os valores étnicos dessa gente é a língua. Provam-no o esforço de velhos imigrantes e descendentes para a criação de uma entidade que a cultivasse. Foi como nasceu a Associação Cultural Luso-Brasileira, antecedida de uma Auxiliadora, que fez do idioma primeira inspiração. Depois vieram bem sucedidas iniciativas nos campos assistencial e artístico. Em 1894, eram 522 associados, todos portugueses natos. No ano seguinte já seriam 638, como registrou Ruy do Brasil Leal em seu livro de genealogia.
O cultivo do idioma, com as peculiaridades trazidas, tornou-se também a forma de manter a pátria viva na alma e no coração, embora distante. Haveria outra forma mais adequada para tanto? Não foi outro o propósito da colônia ao erigir no coração do Parque Halfeld o busto de Camões, o vate da nacionalidade. E ali, com ele, celebra-se o idioma no seu monumento maior, “Os Lusíadas”. Por muitos anos, chegado o Dia da Nacionalidade, cantores, poetas e prosadores, como Almir de Oliveira, Francisco Fernandes Sobral, Manoel Costa e Cleonice Rainho, falavam e desciam flores ao pé do busto. Hoje nem tanto.
Em Juiz de Fora e em muitos outros lugares, felizmente o idioma comum haveria de vencer heroicamente o modismo das primeiras décadas do século passado, quando era chique nos salões e saraus usar e abusar do francês. O mesmo hoje se espera que o bom português elimine o modismo desse inglês serviçal da atualidade.
Digamos agora que os hábitos por eles trazidos a esta região são tão antigos como a ocupação do espaço geográfico. Se a gente remove a terra que sepultou o século 18 ou talvez até um pouco antes, vamos vê-los entre os encarregados da administração do Registro do Paraibuna, onde eram fiscalizadas as atividades de entrada e saída das riquezas e a passagem de viajantes. Ainda longe a Independência, a quem mais teria sido confiado esse controle?, do que dependeu boa parte dos interesses da Coroa.
Isto posto, cronistas mais abalizados, como Albino Esteves e Oscar Gama, acham que a marca da personalidade, da cultura e da maneira de eles estarem entre nós é remotíssima; e com todos os sinais, que facilmente se estenderam, passando a ser parte de nossa organização social e produtiva. Admitem aqueles e outros comentaristas que os fiscais da estrada certamente foram também os primeiros a cuidar das roças e das vendas próximas, que serviam aos tropeiros no trecho que se estendia de Paraibuna ao Morro da Bolada.
Interessante uma referência de época, 1811, atribuída ao comendador Pinto Soares, que vinha de Parati rumo a Juiz de Fora e depois Vila Rica: “As alimárias já não suportavam mais a carga e tivemos de interromper a marcha e buscar pouso na pequena roça que nascia junto ao Registro. Foi um português, Vasco de tal, que permitiu a breve pousada, removendo desconfortos e estendendo ao chão peles de boi sobre as quais nos deitamos”. Esse Vasco, que apenas pelo prenome ficou na história, pode ser entre nós um dos primeiros embaixadores do bem receber, a sempre celebrada virtude lusitana. O comendador já havia residido nas províncias do Rio de Janeiro e São Paulo, lembrando que outros viajantes que por aqui haviam passado deixaram a mesma impressão.
Mais ainda, em nome da velha amizade que prosperava: em 1888, Portugal já tinha instalado aqui um vice-consulado, tendo como titular Joaquim Dias da Silva, que chamava os patrícios a não descuidarem dos valores da nacionalidade, o que depois muita vezes repetiria outro titular, Manoel Costa.
Leonildo Regado, português de nascença, meio século trabalhando em Juiz de Fora como representante de grandes empresas, explicou, de certa feita, a vocação dos imigrantes seus patrícios para a atividade do comércio. Devia-se, afirmava, ao fato de, em chegando e logo tendo de cuidar da sobrevivência, a opção era a atividade de renda imediata, o que não se podia esperar da indústria, da qual os resultados demandavam espera e paciência. Portanto, uma loja, um pequeno mercado, o serviço de garçom e as feiras eram o caminho da primeira hora, e por onde haveria de transitar a semente de outro produto da bagagem étnica do português, a cortesia, muitas vezes escondida sob uma rudeza meramente de fachada e de superfície.
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Visto, em apoio à evidência histórica de que os primeiros dos nossos imigrantes estavam comprando e vendendo na margem do Caminho Novo, precisamente no Registro do Paraibuna, louve-se então a citada tendência para o comércio, um campo no qual é reconhecida sua habilidade. Na verdade, quando se mergulha na etnia de que tratamos, e os fundamentos da prosperidade que eles alcançaram, o que vemos são pessoas capazes de bem administrar o dinheiro, sendo este escasso como antes ou farto como hoje.
Para insistir nessa atividade, lembremo-nos de que, se foram predominantes os sírios e libaneses na parte baixa da Marechal Deodoro, no resto, nas demais ruas do centro, ganhando os bairros mais adiantados, eram as portas dos portugueses que se mantinham abertas. Oscar Lopes, do Instituto Histórico e Geográfico, publicou pesquisa sobre os estrangeiros e brasileiros nas lojas centrais. A predominância lusa é indiscutível.
Aqui observado com insistência que a língua é de primeiríssima ordem para explicar o fundamento dessa cultura que importamos, sendo ela o grande veículo que a ligou e a faz conviver com os costumes locais, cabe considerar também outros elementos que a compõem. É o caso da inquestionável afetividade em relação à terra distante. Português não deixa de ser português, mesmo quando do chão pátrio há tanto se distanciou.
Em Juiz de Fora, ficou marcado um caso interessante para confirmar esse amor à raiz. Tão logo se proclamou a República, em 1889, um dos tropeços do novo regime nunca suficientemente justificado, foi a exigência de que estrangeiros não podiam exercer função pública municipal, a menos que renegassem sua nacionalidade. Pois bem, chamados a optar pela identidade brasileira, 329 portugueses reagiram e preferiam perder o emprego.
Vem em socorro à constatação desse patriotismo, este um dos sólidos pilares do povo de que estamos tratando, o que podemos ler em relatório da Sociedade Auxiliadora Portuguesa, criada em 1891 para apoiar patrícios em dificuldades e famílias de falecidos. Está lá: “Todos sabem que nos espíritos portugueses jamais se infiltra o veneno do olvido; jamais um português trai a nacionalidade pela conveniência; jamais a conveniência inspirou a português o esquecimento absoluto do seu berço”. Para não ferir melindres locais, o relatório é assinado “em Juiz de Fora, torrão abençoado”…
(Naqueles dias, ia-se aos salões da Sociedade dançar o vira. Agora, anos passados, na Associação que a sucedeu só raramente se baila; mas há sempre alguém cantarolando um fado de Amália Rodrigues).
Seu João Monteiro, do Porto, proprietário da Padaria Linda, é uma das figuras mais prestigiadas desse mundo português. Viera à cidade, onde chegou em 1958 para a lua de mel com dona Linda, e aqui mesmo comemorou as bodas de ouro. É quem vem para abonar as vozes que proclamam amor a esse inesquecível Portugal, que o tempo e a distância são incapazes de apagar; digamos, uma bandeira permanentemente hasteada, mesmo quando na dupla nacionalidade, que é o caso dele. Observe-se, contudo, que esse é um sentimento tão do âmago, tão pessoal, que dele não se faz alarde nem festa. É como se cada coração deles fosse o nicho para guardar uma riqueza em memória. Patriotas sem patriotadas, porque a estas eles não são afeitos.
Hoje, para impulsionar o desejo de rever e não esquecer o solo pátrio, muitos se servem das facilidades para atravessar o oceano em sete ou oito horas de voo. Pisam a terra-mãe, reveem parentes e amigos, numa viagem em que o “sacrifício” nada tem dos velhos tempos das naus e dos vapores que mergulhavam no Atlântico para dias intermináveis, sob o céu e sobre as águas.
Eles construíram nossa intimidade com o bacalhau. Já estamos tratando da culinária, saboroso campo do qual não escapa a essência de sua cultura gastronômica. Nada mais português que esse prato, quando nos chega com a originalidade não corrompida. Original é quando vem servido com batatas cozidas, azeitonas pretas, cebola, o pimentão discreto, sem qualquer compromisso com a fácil digestão; tudo nadando no azeite farto. Está no sangue desse imigrante, mesmo quando não trabalha em restaurantes. Adérito Rodrigues, que antes de vir era caixeiro e quase foi prestar serviço militar nas colônias africanas, e aqui se dedicou ao comércio de ferragens, ficou conhecido no Clube Juiz de Fora como um craque no preparo do bacalhau à moda.
À mesa, de novo com a palavra, o panificador João Monteiro, nos seus mais de 50 anos na cidade. Neste ponto, ele explica que entre os caracteres da colônia a que pertence a coisa que melhor se cultiva é mesmo a cozinha e o gosto pela preparação dos pratos. Aplaude e confirma a bacalhoada como símbolo, mas sem lhe dar exclusividade no cardápio do seu povo. Há lugar cativo, por exemplo, para os pastéis de nata, as queijadinhas de Cintra e as sardinhas assadas. Quem provou aprovou.
A intimidade e a fidelidade à cozinha anciã levariam esses nossos amigos a gerir bares e restaurantes, onde apreciam a féria diária e imediata, o que seguramente não alcançariam em outra ocupação. Gabam-se de deter o segredo de comprar bem e vender bem; segredo veraz, porque um bom negócio está no sangue, é da raça. E é também nas casas de comidas que vão elaborar o lastro e as normas da sucessão familiar. Filhos e esposos trabalham reunidos num clima de extensão do lar. Cuidadosos e desconfiados, quando delegam tarefas e confianças, elas resultam de decisão comum entre eles, muitas vezes sem que isso se possa perceber claramente.
Fácil é compreender, portanto, que à vocação portuguesa pertenceram ou ainda pertencem alguns dos mais conhecidos restaurantes da cidade, como Gato Preto, Pigalle, Petisqueira, Chave de Ouro, Salvaterra, Primavera, Kilinho, Casa Modelo, Sereia, Duas Pátrias, Belas Artes, para citar apenas alguns. O dono sempre à frente, estafando-se, gastando o avental que rala ao balcão.
Diante de sabores nacionais diferentes, a professora Maria do Céu, em depoimento que prestou à Funalfa, lembrou, simpaticamente, as primeiras experiências da família lusa com o tutu de feijão, que ela veio a conhecer melhor aos 21 anos, quando aqui chegou, depois de morar algum tempo no Rio. Da mesa deles salvou para o juiz-forano, além do bom apetite, uma antiga história de amor ao copioso vinho do Porto, jamais ausente nos almoços especiais e nos coquetéis. Herança que vem de longe, orgulho dos primeiros imigrantes, quando também desencaixotaram os sabores gastronômicos. Rigorosos defensores da legitimidade do seu vinho importado, quando chegava notícia de falsificações criavam um caso dos diabos, resultando até em rigorosa diligência de correição do desembargador Campos Paz, como narra Eduardo Frieiro no livro “Feijão, Angu e Couve”.
Deveu-se também a esses imigrantes o hábito de levar o vinho do Porto aos antigos velórios, quando realizados nas salas dos solares, coisa que as capelas mortuárias fizeram desaparecer. Mas havia mesmo esse costume. Pedro Nava não esqueceu em suas memórias de infância em Juiz de Fora das “conversas vertiginosas dos velórios esquentados a café forte e vinho do Porto, enquanto os defuntos se regelavam e começavam a ser esquecidos”.
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Algo a dizer sobre a religiosidade como um capítulo fervoroso de seu patrimônio? Certamente. A começar — e seria preciso dizer algo mais? — pelo fato de que já veio com sangue português o padroeiro da cidade, Santo Antônio, a cuja veneração deveu-se o nome da vila primitiva. Esse culto ao santo, aclamado doutor da Igreja, foi que levou Antônio Vidal a pedir à Coroa, em 1741, autorização para erguer uma ermida em honra do santo.
Gente essencialmente católica, se são poucos os que professam outros credos, cabe exceção devida ao Espiritismo, muitos deles eméritos divulgadores da doutrina kardecista e de seus projetos de caridade cristã. Mas predominam os católicos. Nos últimos 90 anos muitos lusitanos vestiram a opa da Irmandade do Santíssimo Sacramento. Em 1956, com a Catedral reformada, foram os primeiros a oferecer um altar em honra de Nossa Senhora de Fátima para perpetuar as aparições de 1917 na Cova da Iria. O altar tem as bandeiras dos dois países, e a bênção inauguratória ficou registrada pela câmera de João Carriço, outro filho de imigrante.
Voltemos à família e às suas raízes em Juiz de Fora nos estertores do Império, para falar de fé. A primeira mesa portuguesa, com certeza, que veio cedo e trazendo marca registrada, encontra citação em Eduardo Frieiro na referida obra, definitiva para a cultura mineira, onde o autor abre aspas para tratar da “festa tradicional da família luso-brasileira, que é vernacularmente a consoada, uma ceia de Natal, a Missa do Galo, o presépio do Menino Jesus, as pastorinhas, a troca de obséquio (quitandas, pratos de arroz-doce, rabanadas, condessas de pastéis, partes de leitão ou cabrito, vinhos e licores); uma festa que se veio a corromper por via francesa depois da República”.
Eles e as famílias primitivas mantiveram, por longo tempo, o entusiasmo pela Semana Santa. Os homens ajudavam naquelas procissões matinais, como cantou o cancioneiro da Lisboa Antiga. As mulheres, diz Gilberto de Alencar, em “Misael e Maria Rita”, dedicavam-se às amêndoas brancas em tachos de cobre para encher os cartuchos dos leilões da Páscoa. Eram os católicos apostólicos. Por onde andam aqueles dias tão serenos e tão devotos?
Os espiritualistas – o pioneiro deles em Juiz de Fora foi o casal Gouvêa Franco, que veio do Rio em 1898, sempre pregando e ajudando – passam pela história desta cidade como vocacionados para a caridade como extensão das reuniões mediúnicas. O coração dadivoso bate no peito deles. Provam-no, entre outras realizações, o Asilo João de Freitas, os Institutos Jesus e Maria para abrigar crianças desvalidas, além das ações caritativas que dezenas de Centros mantêm. E aí militaram inúmeras famílias portuguesas: Cardoso, Morais, Braga, Milagres, Monteiro, Gama, Barbosa, Rocha, os Esteves do historiador Albino, citados aqui entre muitos.
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Muitas vezes, os veteranos recatados se constrangem ao falar sobre algo de que verdadeiramente devem se orgulhar em Juiz de Fora. Pode ser que, de alguma forma, se orgulhariam em qualquer outro lugar, mas aqui, como costumam dizer, eles “assinam embaixo”. É a descendência, de onde viram florescer o prêmio compensatório do duro trabalho, preço que a vida cobrou aos que chegaram antes. Nesse particular, a professora Maria do Céu guarda a experiência da própria família e de quantas se preocuparam com a educação dos filhos, os trazidos e os aqui gerados.
No velho João Medeiros Silva não coube tanto contentamento, quando o filho juiz-forano Carlos Medeiros, que colheu as primeiras letras no Grupo Escolar Antônio Carlos, foi representar o Brasil na Conferência Internacional de Direito Administrativo, e depois tornar-se ministro da Justiça. Antônio Vidal, Antônio Dias Tostes, Paula Lima, o Manuel Vidal Barbosa, que construiu a fazenda Ribeirão das Rosas, João Borges de Mattos, pai de Moacyr, este duas vezes reitor da Universidade Federal. Filhos de portugueses também foram dois prefeitos, Pedro Marques e Agostinho Pestana. Descendente foi o poeta maior, Belmiro Braga. Valeu a pena, diriam aos que fosse dado enumerar estes e outros exemplos.
Antes da descendência, os natos já garantiam espaço na lista dos empreendedores que a cidade conheceu no século passado. Sem desconhecer o risco da involuntária omissão, lembremo-nos aqui de Bento Lyra Sotto Mayor, Dias Cardoso e o hoteleiro César Sampaio. No campo da cultura, não descendente, mas ele próprio nascido em Portugal, José Alberto Pinho Neves. E os que tornaram realidade o sonho da escola de pintura Antônio Parreiras.
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Mas sobre eles ainda falta pesquisar muito. Wilson de Lima Bastos recomendou que é preciso que se empenhe com entusiasmo em outros estudos sobre a contribuição do elemento português, “como num mosaico, juntando as partes formando um todo”.
Sem delongas, como diria Dom João, “a vida portuguesa entre nós tem se exercitado, décadas após décadas, princípios étnicos tão visíveis, o que sempre independeu de qualidades intelectuais, criativas ou de sensibilidades pessoais, porque quando se trata daqueles princípios de origem, os lusitanos nossos vizinhos são muito semelhantes. Divergem pouco. Os valores básicos revelam total identidade. Estão nesse nível o amor à organização familiar, a vocação para o comércio e atividades afins, a solidariedade gentil e atenta em relação aos patrícios, o patrimônio linguístico e o nunca renegado amor ao berço em que nasceram, ainda que de lá possam ter saído em tenra idade”.
Não haveria de ser de outra forma: tais virtudes, assim dimensionadas, tiveram ampla e profunda repercussão no cotidiano da vida do juiz-forano como procuramos demonstrar. Resultado de uma vivência, muitas vezes com espírito de partimento, que se ampliou generosamente ao ritmo do pêndulo do tempo. Direta ou indiretamente, pouco ou muito, todos aqui se deixaram influenciar por essa convivência. Não obstante, é um campo estimulante, como sugere o professor Lima Bastos, que requer o estudo de sociologia comunitária apurado.
(*) Wilson Cid é jornalista e escritor