
Ex-Presidente do Uruguai, morre aos 89 anos. CRÉDITOS: Divulgação
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16-05-2025 às 09h49
Cláudio Siqueira*
Pepe Mujica morreu. E com ele, o mundo perdeu um símbolo de persistência em tempos de descompasso. Perdeu uma síntese encarnada do que significa resistir com simplicidade, governar com ética e viver com coerência.
Um guerrilheiro que virou presidente e, ainda assim, seguiu morando no mesmo sítio, plantando flores com Lucía Topolansky, companheira que conheceu na cadeia, escrevendo cartas entre grades, sobrevivendo à tortura e à morte com uma paz que desarma generais.
Forjado nas entranhas do movimento Tupamaros (organização guerrilheira de esquerda no Uruguai, que combateu a ditadura nas décadas de 1960 e 1970), Mujica não aceitou os privilégios do poder. Não teve carrões, não teve mansão, não teve escolta luxuosa. Teve clareza. Teve um projeto de país com os pés firmes mirando a solidariedade.
E teve coragem para dizer o que a esquerda às vezes esquece: sem humildade, não há transformação; sem povo, não há governo legítimo.
O continente o reconhece porque nele viu o avesso do cinismo. Enquanto os tecnocratas medem PIB, Mujica media sofrimento. Enquanto os diplomatas falam em cúpulas, ele falava de trato, de vizinhança, de liberdade.
Não foi santo — e ele mesmo fazia questão de lembrar. Mas também não foi produto de marqueteiro. Foi carne da mesma carne do povo. E isso não se ensina em Harvard, nem se compra com lobby. Mujica existiu como farol ético num tempo de farsas.
Num momento em que a América Latina oscila entre o entreguismo e a reconstrução, lembrar Mujica não é luto. É afirmação. É compromisso com uma política que não humilhe para negociar, nem roube para sobreviver. Uma política que seja instrumento e não fim. Mujica foi essa política — uma que se planta. Não se herda — porque legado político não é um título, é um gesto cultivado no cotidiano.
E agora que ele se foi, o mínimo que podemos fazer é carregar sua herança com dignidade. Não idealizar, mas cultivar. Não canonizar, mas lembrar que ainda há espaço para gente como ele — que acredita que a esquerda só vale se caber no banco da praça, na caneca do trabalhador, no silêncio depois da luta. Porque Pepe não era uma exceção. Era um aviso.
Mujica partiu, mas seu corpo político continua vivo na consciência latino-americana
* Claudio Siqueira é jornalista