
Terapia comunitária, fundamental para a saúde mental - créditos: Arquivo pessoal
Getting your Trinity Audio player ready...
|
04-05-2025 às 08h38
Por Marcos de Noronha
Em 1983, enquanto eu aguardava o desenrolar da bolsa de estudos, que eu havia conquistado, para iniciar a pós-graduação no Colégio Americano de Orgonomia da Europa, visitei a reitoria da Universidade de Nice. Eu buscava vestígios do pesquisador francês Roger Du Teil, que havia passado por lá e que colaborou com Wilhelm Reich, no estudo sobre “bions”, a forma de energia estuda por eles. Ao final do encontro, o reitor insistiu que, sendo eu psiquiatra, deveria conhecer o Serviço de Psiquiatria daquela Universidade. Ao me perder no trajeto, em direção ao serviço psiquiátrico indicado pelo reitor, perguntei à pessoas pelo caminho, onde ficava a psiquiatria e elas me apontaram para uma abadia centenária. Não era exatamente aquele local, que o reitor se referia, para que eu conhecesse. Ele se referiu a um serviço psiquiátrico moderno, com diversas opções extra-hospitalares. Aconteceu que, no meio do caminho, eu me deparei com a Abbaye Psychiatrie, um serviço de Etnopsiquiatria, criada pelo professor Henri Collomb, que contou com a experiência da atuação que teve na África. Logo na entrada, algo me surpreendeu: a porta do hospital psiquiátrico permanecia aberta. No interior, era difícil distinguir pacientes de cuidadores “cuidadores”, como chamavam os funcionários. A dinâmica daquele lugar me cativou de imediato. Embora tivesse feito estágios em locais inovadores como a clínica Colina Verde, em Londrina, o que vi na abadia foi revolucionário. Decidi então mudar meu destino: abri mão da bolsa para a Escola de Orgonomia e a direcionei para o serviço de Etnopsiquiatria do Centro Hospitalar Universitário de Nice.
Foi então que, por força do destino, me especializei em integrar a cultura ao trabalho em saúde mental. Meu interesse por Reich me havia levado a Malinowski e à antropologia, mas foi em Nice que compreendi, na prática, o poder terapêutico dos contextos culturais. Collomb, falecido precocemente, deixou um legado profundo. No Senegal, onde coordenou a saúde mental nacional, implementou medidas ousadas.
No Hospital de Fann, em Dakar, determinou que pacientes só poderiam ser internados acompanhados de familiares. Mesmo com a redução de leitos, o resultado foi extraordinário: a presença de familiares reduzia o desamparo, acelerava a recuperação e prevenia recaídas. Outra experiência de Henri Collomb, no Senegal, foi ter criado Vilas Terapêuticas, num país tão carente de profissionais (em outros países como Angola e Moçambique, por exemplo, há uma carência de profissionais de saúde formados em faculdades). Nelas se contava com a atuação de curandeiros tradicionais, supervisionados, pela restrita equipe de psiquiatrias. O curioso, que desde o inicio de sua atuação no Senegal, Collomb contratou um antropólogo para lhe auxiliar a entender a cosmovisão dos autóctones e a função dos ritos sistemáticos que recorriam. Reproduziu também, estes ritos, no hospital de Dakar, e, posteriormente, em Nice, onde estudei. Fiquei encantado que o paciente, tanto podia contar com o apoio do psiquiatra, como também de um curandeiro, em plena França. Em 1985, de volta ao Brasil, iniciei a aplicação da etnopsiquiatria à minha prática, posteriormente enriquecida com a formação em psicodrama. No livro Terapia Social, faço uma analogia entre o psicodrama e a etnopsiquiatria. Ao criar espaços inclusivos em Florianópolis, utilizando esta técnica, e contando com a participação de estagiários e suas avaliações, aplicando questionários de pesquisas dentre o número significativos de pacientes, a medida que fomos ampliando estes serviços, durante décadas, a eficácia foi demonstrada. Trata-se de uma abordagem médico-psicológica que oferece diagnóstico, prescrição e atenção aos vínculos sociais, fundamentais para o prazer pessoal e a proteção emocional.
Quero destacar, nesta coluna, o que tornou a Terapia Social tão atraente e eficaz, para, justificar sua existência em cerca de 30 anos e o aumento de oferta de grupos psicoterápicos, considerando a demanda crescente e a insuficiência dos serviços públicos oferecidos pelo SUS, mesmo no desenvolvido sul do país. Trata-se de uma abordagem médico-psicológica, onde sua amplitude, permite ao paciente contar tanto com os recursos de diagnósticos e prescrições, como a atenção para seus problemas psicológicos. Mais que ensinar a importância dos vínculos, precisávamos treiná-los. Criamos espaços onde os pacientes pudessem desenvolver empatia e perceber o outro, recuperando sua capacidade relacional. O reconhecimento dos aspectos socioculturais na psicopatologia é hoje amplamente aceito, e nomes como Malinowski, Mead, Benedict e Bastide ajudaram a consolidar a psiquiatria cultural, cuja paternidade é atribuída a Devereux. Ao retornar ao Brasil, publiquei diversos artigos, em periódicos brasileiros e internacionais, sendo também uma forma de encontrar interessados no tema etnopsiquiatria.. Comecei a participar dos congressos mais importantes, aqui e pelo mundo. Quando consegui reunir alguns, procurei contar com o apoio das organizações internacionais, uma delas a Secção de Psiquiatria Transcultural da Associação Mundial de Psiquiatria, segmento da Organização Mundial de Saúde, para, finalmente, criarmos, em 1998, a Associação Brasileira de Etnopsiquiatria.

. Um dos grandes nomes brasileiros nessa jornada foi Adalberto Barreto, criador da Terapia Comunitária Integrativa em Quatro Varas, favela de Fortaleza. Sua experiência é tema do livro Un Psychiatre dans la Favela, de Eliane Contini. Michel Boussat, colaborador de Collomb, contribuiu na compra de um terreno, para implantar a Terapia Comunitária no Ceará, e me estimulou a encontrar Adalberto Barreto. Um dia, finalmente pude participar das Rodas de Terapia Comunitária Integrativa de Barreto, na Favela e fiz formação em Morro Branco, para depois ajudar na sua multiplicação, também em Santa Catarina. Esta prática, criada na década 80, espalhou-se pelo Brasil, principalmente no pós-pandemia e hoje está presente em cerca de 40 países. O que há de tão atraente nas Terapias Comunitárias? Também são voltadas ao fortalecimento de vínculos nas comunidades e entre elas, ajudando, sistematicamente, os participantes a lidarem com quadros depressivos e ansiosos. Na fala de Barreto, sobre as Terapias Comunitárias: “A promoção da saúde mental é gerada por meio de redes afetivo-relacionais-dialógicas e não “medicaliza” o sofrimento, a miséria e o empobrecimento. Integra profissionais e usuários em um mesmo espaço, como atores da promoção da saúde, em contraposição aos modelos clássicos e universais de saúde mental, que estabelecem relações verticais de poder.”
Outro exemplo notável está em Bom Jardim, bairro pobre do Ceará, onde o padre, Missionário Comboniano, e psiquiatra Rino Bonvini, influenciado por Barreto, criou o Movimento Saúde Mental Comunitária. Reconhecido internacionalmente, o projeto capacita pessoas vulneráveis, articula ações com os Pitaguary e promove o Toré, ritual que une tradições indígenas, de umbanda e o uso da jurema. Em 2017, este trabalho ganhou o prêmio de “inovação em saúde mental”, oferecido pela Mental Health Innovation Network. O padre Rino, como é conhecido, faz sua socioterapia e muito mais, mobilizando a sociedade local, principalmente pessoas desprivilegiadas, para atividades inclusivas e auto sustentadas. Criou escolas de formação, possibilitando pessoas carentes a desenvolverem atividades vocacionais e é um grande articulador de atividades com os Pitaguary, etnia local, dos municípios de Maracanaú e Pacatuba. Embora pequena, esta etnia pode contar com cerca de 6 mil indígenas e sua rica cultura dá vida aos eventos, na região, onde dançamos o Toré, um ritual que combina sincretismos indígenas, de umbanda e a bebida jurema. Rino, com seu pós-doutorado em etnopsiquiatria na Universidade Intercultural de Michoacan, no México, acaba de lançar seu livro “Abordagem Sistêmica Comunitária: uma socioterapia de múltiplo Impacto”.
Em junho, os fundadores da ABE, sigla da Associação Brasileira de Etnopsiquiatria, hoje Psiquiatria Cultural, se reúnem em Morro Branco, cidade turística, não muito distante de Fortaleza, para celebrar 30 anos da experiência em saúde mental comunitária. Fundada em 1998, durante o Seminário Internacional de Psiquiatria Cultural realizado em Florianópolis (podem conferir detalhes no site www.abe.org.br), hoje a associação conta com as atividades exercidas pelos seus criadores, cada qual, num canto do país. O evento ocorrerá no Hotel Ocas do Índio (veja o folder) e deverá contar com outros fundadores da associação, como Geraldo Sales, cuja Terapia Comunitária Perambulante, realizou no sul do Pará. Para o Seminário de um dia, na turística cidade cearense, como de praxe, diversas vivências estão previstas e com a participação dos Pitaguary. Este encontro apresenta práticas psicoterápicas contando com os recursos socioculturais, e revelará a essência do que consiste tais atividades, depois de décadas de aplicação. As últimas obras, dos palestrantes, serão apresentadas durante o evento, cujo tema, na academia, somente agora se destaca, com a oferta do curso de pós graduação em Terapia Social. Será lançado, ainda este ano, a partir do Centro Universitário Unicesusc, online, para todo o Brasil (veja o folder).
O mundo atual passa por transformações inimagináveis, alterando de forma significativa, o comportamento humano. O vínculo entre pobreza e saúde mental é inequívoco, mas não se tratada de um quadro restrito a países pobres ou sub desenvolvidos. Mesmo países ricos, como os do norte da Europa, com maiores níveis de segurança financeira, social e melhores avaliações da vida, por razões ligadas ao fato de sua população ter menor expressão de sentimentos e satisfação nos relacionamentos sociais, também apresentam quadros mentais. O Global Flourishing Study, que avaliou 200 mil pessoas em 22 países, mediu seis domínios da qualidade de vida: felicidade e satisfação com a vida, saúde mental e física, significado e propósito, caráter e virtude, relacionamentos sociais próximos e estabilidade financeira e material. O Brasil, mesmo com caos enfrentado por questões éticas e o sucateamento dos serviços de saúde, tem a seu favor, maior sociabilidade, em comparação com os países ricos. A espiritualidade, de forma ampla, parece ser um elemento de proteção, principalmente para aqueles frequentadores de grupos religiosos. Os empregados, ou aposentados, os casados e os de maior escolaridade, estão sob vantagens na saúde mental, considerando seus opostos.
Em qualquer que seja a região do planeta, o fenômeno exclusão social, é alarmante. Aqueles que sofreram uma doença emocional, mesmo se acolhidos pelo serviços de saúde, o abandonado pela família e amigos, é cruel e dificulta, em muito, a recuperação. No passado, por exemplo, eram encerrados em manicômios e se tornavam segregados. No presente, a demanda de casos psicopatológicos cresce, independente do desenvolvimento. Atividades preventivas e promotoras de saúde mental, pode ser a melhor solução, mas é urgente a necessidade de aperfeiçoarmos técnicas para acolher, a demanda, cada vez mais crescente. Vejam que a contribuição tecnológica, que por um lado, vinculou as pessoas, uma com as outras, através das redes virtuais, por outro lado, nos afastou-nos, um dos outros. Nossa história tribal nos moldou para a convivência coletiva; a “teia virtual” não substitui a teia social. Vivemos na era das relações líquidas: provisórias, voláteis, descartáveis. Valoriza-se o que se possui, não o que se é. O vínculo baseado na essência do outro oferece uma satisfação mais duradoura. Passamos a ser consumidores de objetos e número de relacionamentos. Quantos fazem parte de sua rede de relacionamento no Instagram? São frequentes as dissoluções de relacionamentos sociais e cancelamentos, muitas vezes, isso tudo, ocorrendo nas redes virtuais e de forma ampla. Os valores se alteraram, inflacionando o que cada um possui materialmente, ou pelo poder que acumula, ou pela atenção que conquistou, em detrimento de outro valor, de quem ele é. Ser uma boa pessoa, desperta um interesse diferente, nos outros, comparado ao vínculo que se estabelece com aquele, cujo atrativo é seu poder, qualquer que seja ele. O vínculo entre pessoas, contando com a essência de cada um, tem como resultado um tipo de satisfação e sensação reparadora.

A cultura tem função essencial na saúde mental e deve ser incorporada às práticas terapêuticas e compreendidas por gestores de saúde. Os espaços coletivos das terapias citadas, a princípio, chocam os pacientes quando direcionados a ela, no compreensivo medo de aproximação com demais pessoas e a estigmatização, mas revelam-se potentes para formar redes de apoio. Muitos pacientes, após anos de tratamentos individuais, encontram nessas rodas o que antes lhes faltava: acolhimento, empatia e esperança. Algumas, as vezes em vão, buscam nos espaços impessoais da web, seus pares, num peer-to-peer, das comunidades on-line. Nestes espaços, um certo conforto acontece, mas o que determina que, mesmo frequentando tais espaços, ainda buscamos o acolhimento das relações presenciais, superando os temores de aproximação, próprio do início do tratamento? Ao frequentarem as Terapias Sociais, além das contribuições medico-psicológicas, um aspecto a ser ressaltado é a presença do outro paciente, portador de quadro semelhante ao do iniciante. É notório a gama de oferta, nos testemunhos em primeira pessoa, dos participantes das sessões, criando melhores condições de comunicação, para pacientes, muitas vezes desgastados em seu meio, por conselhos. Um serviço oferecido a custos baixos, é capaz de ofertar uma maior riqueza de possibilidades, e despertar esperanças nos participantes, muitos deles, portadores de quadros depressivos, mesmo após terem percorridos grandes jornadas, em tratamentos onde, não houve, nem integração com a família, ou sequer, conciliação de seus aspectos biológicos e psicológicos. O esforço da ciência para encontrar biomarcadores deveria ser substituído pelo reconhecimento dos fatores socioculturais ligados a doença mental, e uma inteligente e solidária rede, preventiva e de apoio, envolvendo serviços e segmentos das sociedade. Comunidades saudáveis são construídas não por gestão autoritária, mas por vínculos de respeito, aceitação e solidariedade.

Uma formação interdisciplinar para quem deseja atuar no cuidado com a saúde mental!
Em um mundo que demanda novas formas de cuidado com a saúde mental, este curso oferece uma abordagem inovadora para profissionais que desejam atuar com sensibilidade e eficácia diante das complexidades contemporâneas.
Com uma visão interdisciplinar, a formação integra conceitos da Antropologia, Sociologia, Psicologia e Medicina, preparando você para atuar em contextos individuais, familiares e comunitários. Mais do que uma especialização, é uma experiência transformadora para quem quer fazer a diferença no cuidado emocional e no bem-estar social.
Matrículas abertas! Confira no link http://wa.me/554891408402—
Marcos de NoronhaAutor dos livros Terapia Social e O Cérebro e as EmoçõesPsiquiatra e Psicoterapeuta de FlorianópolisMembro da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural