
O milho da pipoca e seu pipocar se assemelha a algo importante - créditos: Freepik
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20-04-2025 às 08h48
Marcelo Galuppo (*)
Tenho grande admiração por Rubem Alves, mineiro que exerceu longe de casa o dom de observar a realidade que subjaz por trás daquilo que se apresenta a todos e encontrar nela um sentido transcendente (somos meio platônicos, nós, os mineiros). Há uma crônica sua em que escreve sobre a pipoca, um milho que secou, tornando-se impróprio para a alimentação, que alguém ia jogar fora, mas que outra pessoa, morta de fome, resolveu comer. Provavelmente ele primeiro tentou transformá-lo com água, mas o resultado não foi muito bom. Ele então usou gordura, e a mágica aconteceu: o grão duro e amarelo se abriu e revelou um interior macio e branco. A transformação ocorre quando a pipoca passa pelo fogo. Isso acontece conosco também, são situações de crise que fazem com que nossa verdadeira natureza se revele, mas não se engane: a natureza de algo não é transformada pelo fogo, ela só é revelada por ele: se você colocar feijão na pipoqueira, ele nunca vai se transformar em pipoca, por mais que você o deixe por lá.
Mas há algo que Rubem Alves deixou de fora de sua crônica, e foi Rodrigo Mello, professor da Medgrupo, que despertou a minha atenção para isso. A gente coloca o milho na pipoqueira, fecha a tampa e a coloca no fogo, mas nada acontece. Quem nunca estourou pipoca antes acha que fez algo errado, ou que a pipoca está estragada, e por isso tira-a do fogo, joga o milho fora e se contenta em procurar por um pacote de bolachas na dispensa. Mas quem já estourou pipoca espera. E aí ouve uma pipoca explodindo dentro da panela: Pop! Um segundo depois, ouve de novo: pop! E aí dois grãos estouram ao mesmo tempo. Logo em seguida dez estouram juntos, e depois cem, depois duzentos, e a panela inteira, que estava só com um pouquinho de milho no fundo, que parecia não ser suficiente para alimentar ninguém, enche-se daquela delícia para ser compartilhada por muitos. Existe um limiar para a pipoca estourar. Um grão de pipoca nunca estoura sozinho. Quando um estoura, todos estão prestes a estourar. Há aqui duas lições, e ambas explicam como o sucesso ocorre, e porque muitos não obtêm a vitória no final da jornada.
A primeira lição é individual. Tenho um amigo que participa de bancas de muitos concursos para a magistratura, que me disse que algo interessante acontece com os concurseiros: eles levam de cinco a dez anos para serem aprovados em um concurso (segundo dados do site Consultor Jurídico) mas, quando passam, são aprovados em vários ao mesmo tempo. É como a pipoca: quando um grão estoura, estouram todos os outros. Acho que o mesmo acontece com vestibulares e com o ENEM: uma pessoa que quer cursar Medicina em uma instituição pública provavelmente tenta várias vezes, em várias instituições e, quando finalmente passa, é aprovada em muitas ao mesmo tempo. É que, em algum momento, acontece uma transformação dialética em quem está se preparando. Não se trata apenas de acúmulo quantitativo de informação: é também uma transformação qualitativa que ocorre, mas somente para quem persiste (Rodrigo me disse que percebe pelas perguntas quem vai passar na prova de residência médica, uma das mais concorridas do Brasil: elas também mudam de natureza). Mas sem persistência não há transformação (e nem sempre é fácil persistir, na maioria das vezes depende-se do apoio de outras pessoas). Por isso, antes de colocar a pipoca no fogo, é preciso saber se você tem condições (psicológicas e financeiras) de esperar pelo limiar.
A segunda lição é coletiva. Quando um milho estoura, todos os milhos em volta também estouram. Quando uma pessoa é aprovada para a residência médica, para o curso de Medicina ou em um concurso para juiz federal, não é só o sonho dessa pessoa que se realiza, são também os sonhos de seus familiares e amigos. Por isso a aprovação não transforma apenas sua vida: todas as vidas em sua volta são transformadas. Não é que a aprovação de uma pessoa muda as outras: é que estão todas sendo aquecidas juntas, e o limiar chega para elas ao mesmo tempo.
O problema é que nem todos têm uma boa natureza, o fogo pode trazer surpresas, e minha avó dizia que a mesma água fervendo que amolece a mandioca também endurece o ovo. Às vezes a espera revela o que as pessoas têm de melhor, às vezes revela o que elas têm de pior. E isso deve fazer você pensar antes de entrar na panela: você precisa saber se você é ovo ou mandioca, para não esperar que o ovo amoleça e a mandioca endureça. Quando se pensa não só no que se vai ganhar, mas também no que se vai perder, nem todo sucesso é uma vitória.
(*) Marcelo Galuppo é escritor