
Há que se ter atenção redobrada com as curvas de nosso labirinto cultural, com nossos incipientes protagonistas da luta social. CRÉDITOS: Reprodução
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15-04-2025 às 09h58
Edmundo Lima de Arruda Jr*
A opressão não começa com tanques, bombas e baionetas. Pressupõe um longo caminho de versões, mentiras sistemáticas, narrativas obscuras, suprimindo dúvidas e reflexões críticas. A referência concreta neste artigo é o 8 de janeiro de 2023, podendo servir de base para a crítica a todas as formas populistas que incursionem em atos de desmemorialização histórica. A falsificação da história não é só obra da direita. Conhecemos muito das desventuras da esquerda nos socialismos reais, lá fora e aqui nos trópicos.
A tortura não dá início à ditadura, seja qual for. Ela imprime continuidade à certos desejos prévios de concretizar, ampliar e legitimar a dor imposta a todos os Outros diferentes no pensar, viver e escolher diante da vida cada vez mais plural (por decorrência de muitos fatores).
A vontade de uniformizar os outros – de tribos distintas (esmagando a alteridade em territórios físicos e simbólicos) segundo a régua moral dos que se julgam no topo da hierarquia dos juízos (e virtudes), coincide com a condição fragilizada de milhões de indivíduos vulneráveis, desorientados, dispostos a sujeitar-se a formas de obediência total.
Alimentar ressentimentos e ódio faz parte da construção do bode expiatório. Atualmente a política transforma adversários em inimigos. Nesse clima a sujeição a promessas de combater e exorcizar demônios, uma prática antiga, reaparece no ritmo algorítmico. Nos dias atuais esse estranho e extemporâneo (?) retorno ao Medievo, municiado por altas tecnologias vem confluindo – no ambiente de fomento do medo, com a ampliação da força de certas práticas religiosas tradicionais (em vertiginoso crescimento) no mundo evangélico, principalmente, mas não exclusivamente.
E essa força objetiva das “igrejas da prosperidade” e de outras num sentido politicamente ultraconservador, de influenciar, partilhar, mesmo de tornar-se um braço direto do Estado, é fato. Daí se pode entender a tendência anti-republicana de religionalização (aumento de regiliões e de religiosidades novas) das esferas públicas, estatais e não estatais e mesmo de domínios privados outros que não os tipicamente afetos às instituições religiosas. Nunca se viu tanto jogadores de futebol entrando de mãos erguidas para o céu, lutadores de artes marciais agradecendo a Deus após destruir seus oponentes, coaches de filosofia apostando em novas crenças para atingir a divina glória no amor, na empresa etc.
A barbárie não nasce num líder populista à frente de governos ou de igrejas, seitas, partidos. A bipolarização escancarada na política eleitoral é apenas a ponta visível do aicebergue. Ela apenas indica uma longa acumulação de desconexões típicas de países sem tradição e densidade democrática (precariedade das culturas liberal socialista).
A barbárie nesses contextos adversos e convulsos vai sendo gestada em pessoas de carne e osso, distribuídas em “ninhos” religiosos, familiares, corporativos, e em outros nichos de sociabilidade (por pertinência e agregação) mais suscetíveis ao que estado de regressão provoca (insegurança e desesperança). Ali onde aparentemente ocorrem liames amorosos e fraternos o seu avesso subjaz, naturalizando as boas-vindas aos cantos da sereia. Ou aos encantos dos ovos da serpente.
Assim numa sociedade cada vez mais adoecida, intoxicada e sob efeitos de uma certa paralisia afetivo-cognitiva, as elites comprometidas com o poder dominante (amparadas numa rica e heterogênea pirâmide seletiva de cooptação de amplos setores intermediários) tendem a dar sua contribuição silenciosa, por regra, transformando o progresso das patologias no seu contrário, a normalização. A revolução digital amplia o alcance dessa reprodução social nesse tempo informativo/desinformativo em todos os espaços (privados, em públicos).
O acirramento da conflituosidade em várias dimensões e graus a todos atinge. Professores universitários, políticos, cientistas, jornalistas. Estes, os homens das mídias em particular seguem a tradição confessada por Samuel Weiner em sua biografia: a da venalidade como tendência dominante. O espaço público de formação de opinião pública é cada vez dilapidado como res pública. Transforma-se progressivamente em lugar de privilégios, troca de favores e prendas. No plano mundial é surpreendente o fato do engajamento das maiores empresas High-tech da informação pautando a ideologia da direita extremada de Trump.
Nesse mundo enlouquecido todos estamos imersos e todos damos de alguma forma uma mãozinha para ampliar a areia movediça. Mas até os especialistas no mal estar da alma encontram-se confusos nesse lamaçal. Um certo uso político da psiquiatria tradicional e terapias múltiplas de autoajuda é real, quando desprovidas de capacidade de compreender e situar as mutações da droga maior, a Sociedade, suas forças heterônomas. Elas potencializam projetos autoritários e, talvez, totalitários. Estes rondam o planeta em vários planos (ideológicos, religiosos, étnicos, afetivos), ampliando e (re) produzindo doentes e doenças.
Entre nós, países de democracia tardia, ainda infantil, o buraco é mais embaixo. É dizer, o entorpecimento retroalimenta-se das conexões cooptativas entre os “de cima” com os variados estamentos médios que permitem a submissão e subalternidade sociais de um Outro imenso, em muitos níveis (condições de acesso e permanência no trabalho, grau de inserção no consumo, escolha ou condição afetiva-sexual, situação étnica, entre outras). Esse quadro social assimétrico é antigo, sabemos, mas hoje agravado em tempos de crise no paroxismos da regressão social.
A exemplo da eleição de Bolsonaro temos um retrocesso nos direitos humanos, com desconsideração crônica com a misoginia, homofobia, memória da tortura (Brilhante Ustra era saudado como herói pelo ex-presidente). Amplos setores medianos permitiram o surgimento de catatônicos movimentos de enaltecimento e destruição da Lei e das instituições, a título de um futuro marco zero, de uma nova ordem, definitiva, conhecida… Uma ordem com as características de um neofascismo tendendo a um neonazismo …
Outras tendências totalitárias não morreram, como a Peste stalinista, num bom pseudônimo para certo marxismo-leninismo. As esquerdas brasileiras também devem uma autocrítica no que contribuíram ontem e hoje para a emergência ultraliberal e retardamento de um estado de Direito mais robusto. Questão para outro artigo.
As doenças da alma e seus curandeiros modernos não se encontram fora desse caldeirão chamado Metamorfose do mundo (objeto do livro póstumo de Ulrich Beck), tampouco as vanguardas, mais ou menos esclarecidas. Elas não escapam desse processo alienante no qual instiga-se o amor a censores dispersos numa complexa espiral hierárquica, sob variados condutores (Duces) populistas da “pátria verdadeira”. E quando a mentira se institucionaliza, quando a falsificação vence, ela se torna agente infeccioso. E o povo inteiro adoece mais e mais.
Então, o final é outro para a estória no “O Alienista” de Machado: Simão Bacamarte amplia o tamanho do hospício e seus hóspedes, trancando-os a sete chaves e indo morar no Palácio.
Hoje, há que se enfrentar A Peste da vez, o perigo da fasticização geral em curso no Brasil e no mundo. Isso basta? Não. Há que se ter atenção redobrada com as curvas de nosso labirinto cultural, com nossos incipientes protagonistas da luta social (direita liberal e esquerda democrática), superando grandes ilusões que produzem gigantescas desilusões.
* Edmundo Lima de Arruda Jr possui graduação em Direito pela Universidade de Brasília (1978), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1981) e doutorado em Sociologia – Université Catholique de Louvain (1991), pós doutorado em sociologia do político na Universitè Paris 8 Saint Denis (1996), pós doutorado em sociologia na universitè Paris X Nanterre (2009) . Atualmente é professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina, membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, coordenador geral do Instituto de Estudos e Pesquisas, presidente honorifico – Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina e presidente do Instituto de Pesquisas Jurídicas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em sociologia do Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: sociologia do sistema judicial e sociologia da educação jurídica.