
Sala de aula. CRÉDITOS: Freepik
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15-04-2025 às 09h36
Caio Brandão*
Joãozinho não é fácil. Menino travesso, não faz o dever de casa, não escova os dentes e furta o lanche dos colegas de escola. Na turma é sempre o último a chegar e o primeiro a se levantar para ir embora. Mas, Joãozinho também é “safo”, como dizem os engajados no Exército e na Aeronáutica, que de “safo” chamam o incorporado inteligente, esperto e malandro, que consegue resolver desafios e se livrar sem penalidades.
Dona Julieta, a professora, fica indócil face à presença de Joãozinho. Se ela diz sim, ele diz não; se ela espirra, ele tosse, mas Julieta vai levando a aula, medindo as palavras e minimizando a possibilidade de rimas, porque Joãozinho é mordaz nos versos e feroz nas estrofes.
Dona Julieta preparou cardápio especial para a aula de Educação Moral e Cívica. A figura central é a de um presidente de república, um qualquer, de algum lugar alhures, para evitar mal-entendidos e comentários maliciosos. Mas, Joãozinho foi logo apontando o dedo para Donald Trump, seu herói predileto, para quem Bolsonaro, subserviente, presta continência.
Dona Julieta agradece a sugestão de Joãozinho e pergunta à classe se os alunos já ouviram falar do presidente dos Estados Unidos. A meninada responde, em coro uníssono que sim, entremeando o vozerio com guerra de bolinhas de papel e até de cuspidas trocadas, desde as mais secas e esbranquiçadas, até aquelas de cor esverdeada, resquícios de resfriados do período invernal.
Na primeira fila, desperta e vigilante como sempre se encontra, Soninha pergunta se ele é gay. A turma, eufórica, entona vozerio de uma nota só, e todos ao mesmo tempo:
-“ Biiichaaa!!! Biiichaaa!!!! Biiichaaa!!! . “
Julieta, experiente e sem alterar a voz, mas batendo na mesa com o apagador de lousa empapuçado, controla a algazarra e arremessa, sem esforço e contra Joãozinho um pedaço de giz, intimando-o a desviar das pernas de Judith os olhares maliciosos aguçados pela curiosidade sacádica precoce.
-Turma, classe, meninos, silêncio por favor, disse Dona Julieta. Vamos escolher outro nome, ao que a turma responde também em coro:
-“Laadrãao!!! Laadrãao!!! Laadrãao!!! “
A professora, virando-se de costas para a turma, escreve na lousa:
“S o r t e i o”.
- De que, pergunta Soninha, de um iphone?
- Só digo no final da aula e se todos se comportarem. Vamos ignorar nomes e falar de presidente e de primeiro-ministro e da diferença entre eles.
- Quem sabe o que é ser presidente de um país democrático?
- Essa é mole adiantou-se Joãozinho, explicando tratar-se de um sujeito sem escolaridade, que tomou pau no concurso público para coveiro da Prefeitura, ganhou o apelido de Zezinho da Ambulância e conquistou dois milhões de seguidores nas redes sociais. Ganhou visibilidade e virou populista. Empreiteiros e lobistas bancaram a sua campanha, ele se elegeu deputado e depois senador. Não apresentou nenhum projeto de lei e só fez um discurso em oito anos, cujo teor ninguém entendeu, até porque ninguém nele prestava atenção. Virou personalidade, cercado de assessores, seguranças e de mimos de gabinete -secretárias, bolachinhas e chá de hortelã – e assédio de eleitores. A imprensa o adulava, ele sorria com delicadeza e recebia jornalistas para café da manhã, fazendo promessas de verbas para Ongs e cargos para amigos e parentes. Foi várias vezes ao Exterior, com diárias polpudas e viajando de primeira classe, mas sem resultados práticos, porque era monoglota.
- E então, Joãozinho, como o presidente eleito trabalha?
- Primeiro, ele muda o número do celular para não ser incomodado. Faz reuniões intermináveis com as lideranças da Câmara e do Senado e chama os presidentes dos partidos políticos para conversar. Para garantir o apoio dos congressistas, que o presidente denomina governabilidade, aumenta em dezenas o número de ministérios e pede indicações de titulares para os novos cargos. Distribui a nomeação de membros de conselhos de administração e fiscais, para engordar os salários da turma, e abre os cargos nas estatais para a coleta de sugestões de outros tantos nomes de apaniguados de todas as bandas, com ou sem qualificação. Feito isto e mediante promessas de parte a parte, o presidente viaja ao Exterior para contatos com países amigos, em missão de negócios, como dizem, levando na bagagem, de centenas de bajuladores e financiadores de campanha, empresários de vários matizes e políticos garantidores de apoio no Congresso, além de pastores evangélicos, para garantir a espiritualidade da jornada.
Dona Julieta ruboriza, mas se equilibra e mudando o rumo pergunta à Soninha, a desperta:
- E você, Soninha, concorda com a resposta do Joãozinho?
- Sim, responde Soninha, acrescentando que Joãozinho não falou do plano de governo, divulgado na campanha, porque dele ninguém mais se lembra, nem o eleito.
No Congresso, informa Soninha, a tônica dos debates vai girar em torno de emendas impostas ao orçamento anual do governo, bilhões de reais sem termos de referência no tocante à aplicação do dinheiro, que tem destinação obscura e sem prestação de contas, com remessas instantâneas chamadas de Pix. Outro tema relevante, diz Soninha, será uma tal de anistia para quem ainda não foi condenado, excrecências jurídicas, completou.
- Então é uma zona, exclamou Olegário, aduzindo que, em família, primeiro justifica o pedido de mesada, depois negocia o valor e sempre presta conta, para manter o cofre aberto. Lá em casa é assim, “escreveu e não leu, o pau comeu”.
- Classe, silêncio!!!, disse Dona Julieta. E no parlamentarismo, o que acontece, perguntou à classe.
Joãozinho se antecipou aos colegas e disse empolgado:
- Acho melhor do que o presidencialismo, porque na maioria dos países, com esse sistema, o primeiro-ministro, escolhido por ser líder do partido majoritário ou da coalizão majoritária, é quem vai gerir o governo, sendo indicado pelo presidente. O presidente, que não tem função executiva, fica na espreita avaliando o ministro. Se ele não der conta de controlar os congressistas e tiver mal desempenho administrativo, será naturalmente substituído por outro, sem maiores traumas ou solavancos.
- Gostei disso, Soninha explicou, no Brasil, o eleitor para ser presidente basta ter 35 anos, saber ler e escrever e estar filiado a algum partido político. Agora para ser coveiro de uma prefeitura, precisa comprovar a conclusão do curso primário, dentre outras condições constantes de edital de concurso público, além de eventual prova prática de aptidão para manuseio de pá em abertura de cova.
A chance de um presidente qualquer dar errado é grande. Se ele perder o mandato assume o vice, de quem poucos sabem o nome completo e quase sempre escolhido por arranjo de última hora, de pessoa sem experiência e expressão. Pode acontecer de mesmo sendo inepto, o presidente tentar se perpetuar no cargo, como aconteceu na Venezuela. Vai cercar-se de militares espalhados em centenas de cargos no governo, nomear como assessores, para o seu gabinete generais reformados e frequentar quartéis e instituições militares em solenidades, aumentar o salário dos fardados e muitas coisas mais, além de escolher um alvo para combater e fazer valer a desculpa para permanecer no cargo. As alegações de ameaça estrangeira, perseguição pelo Judiciário e de eleições fraudadas serão sempre oportunas, em face de fácil cooptação de apoio popular, bem como apelos públicos à pátria-mãe, à religião e à família.
Esta é a receita, disse Soninha, que completou alegando que a fórmula se aplica tanto à direita, quanto à esquerda, passando às mãos de quem dela primeiro se apodera e, mais, benefícios escoltados pela farta distribuição de benesses populistas, cestas básicas, empréstimos consignados, quotas em concursos públicos, empregos e ingresso facilitado em universidades, além de portes de arma e a exclusão de vacinas e liberdade total para incursões nocivas e predatórias ao meio-ambiente.
Uma festa, acrescentou Soninha, referindo-se ao circo e ao pão atirados de presente à multidão afoita por defender e lutar por alguma coisa que lhe pareça, na sua baixa compreensão, justa e razoável.
- Um momento, aparteou Joãozinho e completou que tudo o que foi dito faz parte do cenário, mas existe uma figura central nessa história. O presidente inepto ou ambicioso, não importa a situação, pode enfeitar o bolo com todos os adereços, mas só terá sucesso em permanecer indevidamente no cargo com o apoio do comandante do Exército. A Marinha e a Aeronáutica são tempero, mas não dão sustança, porque fazem espuma e não são suficientes para segurar a onda, mas podem atrapalhar se ficarem de fora. A força de ocupação será sempre a do exército de qualquer país, mediante o seu efetivo e a presença estratégica distribuída no território nacional. Contudo, se o Comandante do Exército não tiver liderança sobre os comandantes da tropa, vai gorar. Felizmente esses profissionais, acostumados à caserna e à disciplina militar, não costumam ceder ao canto da sereia, senão em situações de grande aflição da nacionalidade, que são raras.
- Então, Olegário, gostou da explicação da Soninha e da opinião do Joãozinho?
– Me desculpe, professora, eu me distraí e não escutei direito, porque o Ricardinho soltou um pum fedorento.
- Aula encerrada, disse dona Julieta, enquanto apagava anotações em giz na lousa de cor verde-oliva.
* Caio Brandão é jornalista