
algumas pequenas aventuras de um cego, ou quase cego, em andanças por Belo Horizonte. CRÉDITOS: Reprodução
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15-04-2025 às 09h20
Henrique German*
A cegueira traz consigo óbvias limitações e dificuldades de toda ordem, impondo, naturalmente, à vida cotidiana, as mais comezinhas e básicas restrições, as quais exigem, tanto da parte do cego quanto de quem o auxilia, uma boa dose de paciência e resiliência, para lidarem com a inesgotável gama de múltiplas pequenas adaptações que, a todo instante, apresenta-se necessária.
É bem verdade, por outro lado, que as dificuldades que se levantem, porventura, em nosso caminho, não podem ser tão grandes a ponto de nos tirarem a alegria de viver, tampouco, de afastarem de nós o sempre salutar bom humor.
Desde que perdi a visão, ou, dizendo melhor, à medida em que a via diminuir, ao longo dos anos, tive a oportunidade de vivenciar as mais engraçadas situações, exatamente por causa da baixa, ou, se preferir, rastejante acuidade visual.
Dou, aqui abaixo, dois ou três exemplos de boas risadas que soltei diante de certos acontecimentos, das vergonhas bobas que passei e dos acidentes graves enfrentados, dos quais, porém, escapei incólume, pela Graça de Nosso Senhor.
Saí, em uma linda manhã de primavera, da clínica de testes ergométricos, que me haviam sido recomendados pelo cardiologista, o qual, então, atendia-me e enchia-me com toda sorte de pedidos de variadíssimos exames inúteis. Fiz o tal teste, correndo, com o peito ridiculamente depilado, sobre uma caquelética esteira, para, ao final, receber os parabéns do responsável, que me afiançou que eu tinha um coração de atleta.
Feliz e orgulhoso com o sucesso cardiológico, deixei o estabelecimento das esteiras com a indefectível roupa de ginástica: tênis, calção e camiseta de malha, tendo, sob o sovaco, o atestado da minha plena saúde. Com o peito mal raspado a coçar, atravessei, correndo (já que parecia atleta), a avenida Afonso Pena, pouco abaixo da Getúlio Vargas e, no canteiro central, olhando para baixo, na direção da rodoviária, avistei um táxi que subia.
Sempre atlético, com pose de campeão, atravessei também a outra pista, com vistas à calçada oposta, já fazendo, ao mesmo tempo, sinais ao táxi, para que parasse para mim, uma vez que eu tencionava tomá-lo para ir embora, porque, na ocasião, morava no bairro Santo Agostinho, caminhada longa demais.
Para minha imensa felicidade, mal pus o pé na calçada, o táxi encostou ao meu lado; sem solução de continuidade, abri a porta dianteira de passageiros e lancei-me para dentro, sentando-me, com surpresa e desagrado, no colo de uma senhora que lá se encontrava, e eu não notara. Conforme entrei e me sentei, saltei, como uma mola, para fora, desculpando-me, dando-me conta, apenas então, de tratar-se de um táxi-lotação, muito em voga nas avenidas Afonso Pena e Contorno.
Desculpei-me, ainda outra vez, atordoado ante a risada simpática da senhora e do taxista, e desci, novamente, correndo, a avenida até a esquina inferior, da rua Professor Morais, na qual entrei, à esquerda. Só parei de andar quando estava já bem longe, quase na rua Tomé de Sousa; ali, suado, ainda constrangido, com muito cuidado e atenção, finalmente, tomei um táxi para casa.
Noutra oportunidade, eu deveria encontrar a minha mulher em um edifício no bairro Anchieta, na rua Francisco Deslandes, bem em frente ao novo centro comercial que lá existe, no qual, habitualmente, as pessoas retiram os seus passaportes.
Saí do fórum, onde trabalhava, e apanhei um táxi, o qual me deixou, precisamente, defronte ao endereço indicado, contudo, na calçada oposta, qual seja, a do shopping center.
Eu vestia um belo terno novo, usava óculos de sol e, modéstia à parte, esbanjava charme e elegância. Atravessei a rua, que tem, bem no meio, uma elevação em concreto, a qual divide as duas pistas; parei sobre a elevação, aguardando que passasse um veículo que descia a rua, já próximo de mim. Após aquele carro, vinha outro, todavia, apertando o passo, dava para atravessar com segurança; foi, exatamente, o que fiz. Corri e, com duas pernadas boas, alcancei a calçada.
Ao atingir a calçada, bem em frente ao meu prédio de destino, saltei o meio-fio, normalmente, para, imediatamente, cair dentro de uma espécie de bueiro sem tampa, sem qualquer sinalização, como uma armadilha, um buraco tão fundo que a borda ficou acima da minha cabeça cerca de trinta centímetros.
Fiquei em pé, ali, um tanto surpreso, analisando a situação; em poucos segundos, no entanto, refeito do susto inicial, agarrei a beirada do buraco e me ergui, saindo do chão, muito bem-vestido, diante de uma pequena multidão que parara para ver-me, com grande espanto. Eu fiz que não fora nada e, verificando que não me sujara, por milagre, andei à portaria do edifício. O porteiro, chocado, porque a tudo assistira de seu camarote privilegiado, sequer perguntou-me aonde ia, franqueando-me a entrada, de boca aberta. Não tive um só arranhão, daquela feita.
Conto, ainda, mais um caso, de tantos que poderia narrar, acontecidos comigo, em virtude da baixa visão.
Certa manhã, desci à área de lazer do condomínio no qual moro, a fim de dirigir-me à academia de ginástica, que tenho o costume de frequentar. No caminho, o meu telefone celular chamou, sendo uma querida amiga que precisava falar-me, e, obviamente, começamos a conversar.
Todos que me conhecem sabem que gesticulo bastante, ando e falo, caminho e converso, em constante deambulação, especialmente quando ao celular.
Enquanto conversava, animadamente, com a amiga Silvia, aproximei-me, de forma inadvertida e perigosa, da orla da piscina, onde fiquei, de lá para cá, segundo soube mais tarde. Não demorou muito, e, de repente, notei que estava submerso.
Nos poucos segundos que fiquei sob a água, sempre com o telefone ao ouvido, percebi tudo que ocorrera e, ainda, tudo que deveria fazer para mitigar as consequências, mormente aquelas ligadas ao escárnio de um vizinho, muito meu amigo, que já se encontrava na academia, o qual, sem dúvida alguma, não me perdoaria, jamais, o erro, passando, o resto da vida, a rir de mim.
Com tal pensamento em mente, levantei-me, pondo meio corpo fora d’água, sempre ao telefone, que não cessara de funcionar, e, vestido como estava, andei pela piscina, conversando com a amiga, ensopado, de tênis, até sair, completamente, do campo visual do outro, que nada percebeu.
Realizada a manobra, saltei fora da água, diante do olhar incrédulo da faxineira do condomínio, a quem cumprimentei, normalmente, fugindo, em seguida, de volta a meu apartamento, para colocar roupas secas.
Mais tarde um pouco, fiz a minha sessão de ginástica, como se nada houvesse se dado.
São essas algumas pequenas aventuras de um cego, ou quase cego, em andanças por Belo Horizonte.
* Henrique German Promotor de justiça aposentado e autor de mais de duas dezenas de livros de literatura.
É candidato a uma vaga na Academia Mineira de Letras (AML).