
Atacar sem ferir o adversário, tanto quanto possível salpicar uma dose de humor, além da capacidade de desviar obstáculos e inconveniências. CRÉDITOS: Reprodução
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14-04-2025 às 09h20
Wilson Cid*
Não há como ignorar que a política e os políticos brasileiros, sem faltar os daqui entre eles, têm espaço no vasto manancial de casos folclóricos, o que muitos, equivocadamente, ainda imaginam ser exclusividade dos velhos coronéis e chefes dos sertões do Nordeste. Não é bem assim, pois de todo o Brasil casos há que autorizam afirmar que o folclore político é desses produtos nacionais que não se comprazem com limites regionais, com épocas ou partidos.
O que fica como duvidoso, para lembrar lição do professor Antônio Weitzel, é que folclore é cultura sem erudição. É popular. No caso dos políticos, pode haver simplicidade, mas se vê, essencialmente, certo toque da erudição. No conflito entre o erudito e o popular, reconheçamos, contudo, que a política e o pitoresco, quando caminham juntos, entram no campo do humor, e sobre isso há o que contar.
Muitos dos casos celebrizados nas páginas da cultura popular envolvendo o homem público resultaram de seu apego ao poder. Pois ele pode abrir mão de tudo, menos da capacidade de mandar e decidir. Na zona rural de Juiz de Fora, conta-se que se for velório, ele tem de ser o defunto; se for festa de casamento, tem de ser a noiva; se for procissão, tem de estar no andor.
Estando no poder, faz o possível e o impossível para não perdê-lo. Daí o poeta Amaro Nervo concluir que “é mais fácil convencer uma mulher a envelhecer do que um político a sair de cena”. Muito antes de Nervo, longe dele, Nietzche já observava que a sede do poder é o demônio do político. “Não é a fome, não é o desejo, é a sede do poder”, escreveu.
Na arte de saber mandar e, tanto quanto possível, eliminar as contestações e a vigilância dos contrários, ele lança mão de outro ofício de sua arte, a dissimulação. Não dizer exatamente o que quer dizer, mesmo dizendo. O mineiro, nesse particular, tem um especial talento, como revelou o jurista e ex-ministro Saulo Ramos em suas memórias, sobre o lidar com a gente de Minas:
“O mineiro diz, mas não diz exatamente o que quer dizer, de tal modo que somos levados a afirmar o que ele disse (…) A ciência está em aferir que o mineiro não diz quando está dizendo, ou entender a outra coisa que ele está querendo que você saiba”.
É igualmente aconselhável nas reuniões partidárias cuidar que ao dizer “vou chegando”, nosso político está querendo afirmar que está saindo…
A dissimulação não escapou entre os muitos expedientes para enganar indesejáveis, principalmente caçadores de benesses do governo. Sobre João Goulart, sabia-se que a nomeação ou o atendimento a um favor político só devia ser considerado se sua assinatura fosse J. Goulart, não com o prenome por extenso. Contam excelentes jornalistas, como Carlos Chagas e Sebastião Nery, de quem são extraídos alguns casos aqui contados, que no sentido de Sergipe o coronel Leite Neto, que mandava muito e nomeava quem queria, instruiu seu pessoal a só cumprir a ordem emanada se a letra “I” tivesse o pingo em cima. A paternidade dessa enganação está em dúvida, pois o presidente Antônio Carlos dela também teria feito uso, e com ela instruído setores administrativos sobre o destino a ser dado aos postulantes a cargos no governo.
Há uma sutil diferença entre dissimular e mentir. Uma mentirinha nunca deixou de ser pecado frequente no evangelho da política, principalmente quando estão em tela as campanhas eleitorais. É de Von Bismark:
“Nunca se mente tanto como antes da eleição, durante a guerra e depois da pescaria”.
Em relação às campanhas eleitorais, vale lembrar que o acesso ao sofisma é largo para os slogans, muitas vezes recheados de esplendoroso mau gosto, como aconteceu na campanha do Marechal Lott à presidência da República em 1960. A prudência teve de andar ligeiro para tirar das ruas o “Lott, bonito, herói, criatura cheirosa”. Em Minas, semelhante imprudência quase coroou a candidatura de Magalhães Pinto, candidato a governador pela UDN. Não faltou quem quisesse
“A vida tá cara, o povo tá faminto. Vote no Pinto”.
Sem sair do campo dos absurdos mineiros, ainda é possível lembrar Tancredo Neves. Quiseram que ele se apresentasse ao eleitorado com o slogan “Conheça o gigante pelo dedo. Tancredo”. Era preciso rimar, quaisquer que fossem os desastres.
Originalidade e sinceridade contemplariam, nessa mesma época, a campanha de Nélson Brandi – Bacuri – que se lançou candidato a vereador em Juiz de Fora, apresentando-se como “um candidato apenas razoável”. Peregrinou pela rua Henrique Vaz, sede da alta prostituição. Ao discursar para aquelas damas, que o ouviam com certo tédio, e ele, percebendo, achou conveniente advertir, como veterano frequentador do local: “Se vocês não me conhecem, a mãe de vocês me conheceu” … Não precisava dizer que passou a vida como boêmio, sem nenhuma intimidade com a tristeza.
Virtude rara nas campanhas eleitorais, a franqueza de Bacuri faz lembrar o caso do coronel Ney Ferreira, candidato a vereador em Vitória da Conquista. “Me disseram que vou ter 1.500 votos aqui. Mas como eleitor é bicho muito safado, eu fico satisfeito com metade, 750 votos”, contou Nery.
Sobre os casos pitorescos de Juiz de Fora é certo que seria preciso escrever um livro em que figurassem as gafes, das quais ri-se hoje; mas não tanto no tempo em que foram praticadas. Os prefeitos, por exemplo, não raro criavam, voluntariamente ou não, situações constrangedoras para assessores chamados a representá-los em atividades públicas. Foi o que se deu, segundo o “Jornal de Estudos da UFJF”, com Paulino de Oliveira, vítima de uma situação embaraçosa em certo dia de 1937, quando foi à Praça da Estação representar o prefeito Pedro Marques no desembarque do ministro da Guerra, Góes Monteiro. Explicou ao visitante que o prefeito não estava presente por encontrar-se enfermo. Mas, ao chegar à prefeitura, Pedro Marques foi a primeira pessoa com quem o ministro deu de cara. Pedro Marques totalmente saudável. Embaraço geral.
No pretendido livro, não haveria de estar ausente o Neca Venâncio, fazendeiro rude, conhecido pelo descuido com que dava trato às palavras. Em 1935, Getúlio Vargas, na segunda das cinco visitas que faria à cidade, hospedou-se na fazenda São Mateus, recanto favorito para curtas caçadas. Neca presente, pediram-lhe opinião sobre o Ministério de Vargas, e, querendo ressalvar a figura do presidente, sentenciou que “o caçador é bom, mas a cachorrada não presta”. No elenco das expressões que saem descuidadas conta-se em Matias Barbosa, que já foi distrito de Juiz de Fora, o caso vivido por Gonçalo Martins, apelidado de “Tenório”, quando e simpaticíssimo, mas descuidado na construção de certas frases. Era vereador quando saudou sua veterana professora, proclamando que “tudo que sei veio de seus grandes lábios”. E prosseguiu sereno, com a alma da gratidão em flor.
Da campanha eleitoral de 1950, guardou-se um episódio que correu o Brasil, por obra e graças aos getulistas, em comício do PTB, na Praça da Estação. João Neves da Fontoura, orador, debochou do lenço branco, símbolo do candidato oposicionista, brigadeiro Eduardo Gomes. Milhares riram quando Fontoura gritou “esse lenço branco agitado é para dizer adeus, presidência, adeus” …
Muitas vezes, a graça vinha mesmo em forma de rima, e nisso o talento de Belmiro Belarmino Braga navegou em velas pardas. Cáustico e irônico, investia sobre o político que não gozasse de sua estima, como João Penido, a quem ele fulminou com esta trova:
“Penido, nome solene,
mas pedante como quê.
Cheira mal se perde o N
Ou se troca o D por C”.
A imprensa local não chegava a esse ponto, mas, não raro, também abrigava os leitores que quisessem espinafrar, em verso e rima, os políticos e a eleição da hora. Estava no jornal “O Pharol”:
“Na campanha de 1902
quem venceu?
Foi o Duarte de Abreu.
Quem foi vencido?
Foi o João Penido.
Quem foi pros ares?
Foi o Valadares!”.
Protegido pelo escudo do anonimato, certo bacharel e vereador não escaparia do bombardeio de um poeta irônico, este também com sinais da impressão digital de Belmiro. Apareceu num poste próximo à Câmara:
“Um certo orador maçante
das margens do Paraibuna,
ao falar, de instante a instante,
vai esmurrando a tribuna.
E quem o conhece sente,
por mais ingênuo ou simplório,
que os murros são simplesmente
para acordar o auditório”.
A rima pode vir com linguajar popular, e ainda assim, é eficiente arma da sátira. Em fevereiro de 1912, com a morte do Barão do Rio Branco, o carnaval foi interrompido para que se respeitasse o luto, mas com a promessa ao Rei Momo de uma compensação mais tarde. Andaram cantando no Milheiros, lá pelos lados onde nasceria a Turunas:
“Se com a morte do Barão
nós tem dois carnavá,
ai que bom, que bom,
se morresse o marechá”.
Naquele carnaval, a República sendo uma jovem cheia de problemas, os Rouxinóis, rapaziada insolente, sairiam com esta:
“Floriano, Floriano, que nome tremendo. Começa cheirando e acaba fedendo”.
Só aqui esse ataque feroz aos políticos? Claro que não. Já se disse que o humor anda atento nas pegadas deles, ainda que muitas vezes injustiçados. Ficou registrado o caso de Estrela do Oriente, onde o cantador de certa campanha eleitoral foi contratado pela Arena para debochar do PMDB. Mas acabou errando o endereço e foi ao palanque dos peemedebistas, de onde quase sairia espancado, depois de improvisar as rimas seguintes, contadas por Sebastião Nery:
“Eu garanto a vosmice
Quatro coisa danada
que o cabocro não deve fazer:
comprá terra enrolada,
casá com muié falada,
usá trabuco pro nada
e votar no PMDB”.
Aliás, é grande a contribuição dos cantadores, generosíssima quando se trata do Nordeste. Foi o que se deu com Juscelino, quando parou para ouvir um repentista cego, que não sabia da presença dele ali. E atacou:
“Juscelino Kubitscheck,
ai meu Deus que nome feio,
dele só quero o cheque,
porque do resto já ando cheio”.
O raposismo. A arte de dissimular em grande estilo, atacar sem ferir o adversário, tanto quanto possível salpicar uma dose de humor, além da capacidade de desviar obstáculos e inconveniências. Jamais tripudiar dos vencidos, enviar condolências à viúva do adversário que acabava de matar.
Há o velho decálogo da esperteza, cuja criação é atribuída aos mineiros, com alguma contribuição externa:
1) Mineiro só é solidário no câncer;
2) O importante não é o fato, mas a versão do fato;
3) Aos inimigos, quando no poder, não se pede nada, nem demissão;
4) Para os amigos tudo, aos inimigos a lei, se possível;
5) Respeitar, sobretudo, o padre, que consegue o voto, o soldado que garante a posse, o juiz que manda prender;
6) Nas horas difíceis cabe ao líder comandar: “preparemo-nos e vão”;
7) Voto comprado não é atraso, é progresso, pois só se compra o que tem valor;
8) Em briga de políticos perdem os dois;
9) Mais vale quem o governo ajuda do que quem cedo madruga;
10) E, segundo Tancredo, é conversando que a gente se entende.
Nossa Câmara. A edilidade, nem sempre com maiores brilhos, guarda em seus arquivos alguns projetos e pronunciamentos esquisitos. Como também modelos de prolixidade, que vão encontrar exemplo na proposição que o vereador Josemar da Silva assinou em abril de 1977 para a criação de uma política de cuidados para menores, definidos como “seres impidores”, e os vereadores como “donairosos senhores”. Pontificou na justificativa: “Elucidamos que o próximo da presente não tem o intuito de ‘solemnia verba’, posto que a lei em sua magnitude não deve adormecer nos anais do legislativo pátrio, mas colocada em prática por se fazer opõe para quem for destarte direcionada”.
Não satisfeito, concluiu, fiel aos ritos gongóricos: “Outrossim, incitos e nobres edis, poderão pensar não ser alvitre mencionarmos o Código Penal, mas não de observar, a par e passo, que merecida foi a lembrança deste, e o azafama tende para a aprovação do pretenso”.
Palavras difíceis em discurso político costumam causar perigosos constrangimentos, porque os que delas ignoram o significado sentem-se acuados. Não foi outra a situação que se deu na Câmara de Peçanha, quando o vereador Agenor Leal de Souza chamou de beócio o colega Tibúrcio Pereira, que jamais tinha ouvido semelhante palavra, e não teve outra saída:
Se beócio é adulativo ou agradativo, obrigado a Vossa Excelência; se atacativo, beócio é a puta que
o pariu”. Quem conta é Sebastião Nery.
Ainda assim, nossos devaneios e tropeços raramente alcançavam fama além dos limites de Juiz de Fora. Tirante Bacuri, que se autoproclamava “candidato razoável”, quem acabou ganhando espaço no Febeapá, 2, de Stanislaw Ponte Preta, foi o vereador Milton Romanelli, da Arena, que disputou a reeleição com um singular santinho de campanha, onde aparecia sua foto e nome de um lado, e, no verso, a tabela dos dias férteis da mulher.
Longe daqui, vale lembrar que tempos houve em que as cédulas eleitorais serviam tristemente para gente desclassificada criticar e ofender a candidatos e outras pessoas, como também utilizadas para desenhos pornográficos e frases indecorosas. Um desvio cívico que só cessaria nos anos 90, com o advento do voto eletrônico.
O fim do uso inadequado da cédula impressa foi um dos méritos da urna eletrônica, que também pôs fim às ofensas à democracia representativa, praticadas por eleitores que votavam em animais. Em 1988, o macaco Tião, “candidato” a prefeito do Rio de Janeiro, obteve 400.000 votos, mais que a soma dos verdadeiros concorrentes, só superado por Marcelo Alencar, que se elegeu. Oito anos após, o macaco morreu, e o prefeito César Maia devolveu a ofensa ao eleitorado, decretando luto de três dias.
Em S. Paulo, outro lamentável êxito eleitoral, quase ao mesmo tempo, foi do rinoceronte Cacareco, que recebeu 105.000 votos para vereador.
É fácil perceber, ditas ou escritas estas coisas, que as relações engraçadas entre os agentes públicos e a imprensa tiveram, como ainda hoje, razões de sobra para queixas e protestos. A publicação de uma gafe, um escorregão no idioma, a exposição ao gume do ridículo são ingredientes suficientes para desavenças, troca de hostilidades e até agressões físicas, para não se falar no velho “direito de resposta”. Sobre esse direito à contestação, nem sempre os resultados mostram-se favoráveis ao queixoso. A emenda sai pior que o soneto, como se diz popularmente. Às vezes, é preferível engolir seco, jogar com o esquecimento, como preferia Magalhães Pinto, que apreciava muito não contestar jornalistas. E outros que, agredidos, optavam por antiga lição de personalidade italiana ofendida em artigo de jornal. Fez pouco caso da ofensa, e recorreu à tese das metades, mandando o seguinte recado ao editor:
“Prezado senhor:
Metade dos que viram seu jornal não viu esse artigo.
Metade dos que o viram não o leu.
Metade dos que leram não entendeu.
Metade dos que entenderam não acreditou.
Metade dos que acreditaram não tem importância”.
Nas relações de autoridades com a imprensa, pesa muito o fairplay com que elas aceitam as críticas, e como os jornalistas absorvem as contestações. Cada caso é um caso.
Em tempo mais recente, Itamar Franco, prefeito desde janeiro de 1967, havia insinuado, sem maiores pretensões, sobre eventual navegabilidade de algum trecho do Paraibuna. Nada de novo, porque antes da degradação do rio, suas águas poderiam ter tal serventia. Tanto que, em 1888, quando Bernardo Mascarenhas tratou da iluminação pública, um de seus propósitos do contrato com o poder público era instalar luminárias em uma das margens para facilitar futuros embarques e desembarques.
Ocorre que, na vez de Itamar, muitos acharam a ideia absurda e a polêmica invadiu as ruas. No semanário “Jornal Sete”, dirigido por José Carlos de Lery Guimarães, a navegabilidade virou assunto, com deboche, ironia, além de um transatlântico encalhado na ponte de Manoel Honório. E foram para as páginas dezenas de trovas, que, logo depois, estariam compondo as famosas Paraibunetidas. Entre elas:
“Nossa velha Botanágua,
Tradição do Paraibuna,
Passa a chamar-se, sem mágoa,
praia de Copacabuna”.
“E o prefeito, com justiça,
já prevendo maremoto,
vai mudar para elevadiça
a ponte de Carlos Otto.”
“Vaticinando um destino
de atlântica dimensão,
terá o nosso velho hino
a seguinte redação:
Salve a Veneza de Minas,
viva a bela Juiz de Fora
que navega na vanguarda
de progresso mar afora.”
* Wilson Cid é Jornalista