
Atrás dos Piriás e das histórias dos Piriás. CRÉDITOS: Freepik
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11-04-2025 às 09h12
Carlos Roberto Jordan*
A região do cerrado, com suas árvores retorcidas, entre Matozinhos, Sete Lagoas e Curvelo, em tempo de sol quente e de estradas de fazenda, ruins e perigosas.
Este, o cenário da caçada aos Irmãos Piriás, título dado pelo jornal Estado de Minas à série de matérias que relatava a fuga e a perseguição policial aos irmãos Orlando Patrício da Costa e Sebastião Patrício da Costa.
A caçada articulava-se em três frentes. A coordenada pela polícia militar desenvolvia uma operação meticulosa, cuidadosa, discreta, mas persistente e com uma mobilização grande de homens e equipamentos – um helicóptero utilizado quando havia indícios de uma pronta captura consolidada para os comandantes daquela unidade da PM sediada em Sete Lagoas.
A polícia civil, na segunda frente, apressava-se, atabalhoadamente, em alguns momentos, como se aquela captura não fosse uma captura de dois jovens miseráveis mas uma competição para ver quem chegaria primeiro. Sem nenhuma comprovação, a hipótese era de que a polícia civil tinha fortes motivos para chegar primeiro. Eles corriam para apanhá-los, vivos ou mortos, preferencialmente mortos, garantiam as a versão insistente, nunca confirmada e que circulava já como um chiste e motivos de piadas.
Na terceira frente de busca, estávamos nós e, praticamente éramos o único jornal a trabalhar este episódio da nossa crônica policial. Corríamos atrás da história daqueles dois rapazes, pequenos, magrelas, diziam deles que se tratavam de “excelentes atiradores”.
Eram homens acostumados à vida do cerrado, nasceram correndo atrás de passarinhos, primeiro como encantados animais de estimação, depois como produto de venda, depois como alimento.
Nosso objetivo era chegar até os Irmãos Piriás primeiro do que as duas polícias. Queríamos a verdade sobre a desgraceira que se abateu sobre eles e nessa caminhada encantávamos com as histórias e as lendas que se espalhavam sobre estes valentes meninos sobreviventes em uma guerra, estupidamente, desigual.
Havia, entretanto, uma lenda que poderia definir o destino deles. Segundo esta lenda, os irmãos foram presos, por uma razão menor, mas em que se envolveram com altas autoridades do Estado. Aí a origem da desgraceira, eles acabaram em uma sala de tortura (ainda não desativada naquela época) do DOPS, a polícia política da ditadura incrustrada na estrutura policial do Estado de Minas Gerais.
No final das torturas, restaram dois homens pela metade. Eles foram castrados. Agora eram pedaços de gente, humilhados, ofendidos, travando, em definitivo um grande ódio do mundo e do mundo da polícia.
Era ver um policial na frente e eles atiravam. Atiravam para matar e mataram. A lenda virou verdade. Perdidos no cerrado, os dois se tornaram um só e um só o lugar de viver: a vingança e a fuga permanente.
Atrás da história dos Piriás descobríamos mil outras histórias. Elas calçavam a matéria principal e assim percorríamos fazendas devastadas pela captura dos minhocuçus e pesquisávamos a história dos pescadores que por ali passavam indiferentes ao desastre ecológico que provocavam. Chegamos às histórias dos homens que conheceram e conviveram com os Piriás.
Atrás dos Piriás e das histórias dos Piriás foi que encontramos com o capitão Ivo.
Nossa equipe de reportagem era formada por três pessoas e três funções; o repórter, o fotógrafo e o motorista. O trabalho transformou-nos em uma unidade extremamente disciplinada, pela vida e pelo risco: todos faziam de tudo na busca da informação. Todos perguntavam e todos avaliavam o material obtido. Aquela história nos unia mais uma vez.
Assim, quando entramos no quartel da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, em Sete Lagoas, em um imenso pátio, onde o sol e a tarde quente nos lembrou cenas de filmes mexicanos, estranhamos que o comandante daquele quartel estivesse no pátio.
Era ele o capitão Ivo. Um homem calmo. Esta foi a nossa primeira impressão daquele oficial. Era um contraponto à nossa pressa e ao nosso desespero, pois tínhamos que mandar, diariamente, nosso material para o jornal e os telefones não funcionavam. Isto era todos os dias, todas as tardes. Tínhamos pressa, também, em obter respostas. Foi a primeira vez que estivemos com o Zé Ivo. Assim o chamaríamos para sempre, não que fôssemos contra o policial, éramos contra o autoritarismo que sempre chega com a violência o poder policial.
Adquirimos uma fonte segura e confiável. Primeiro o seu sorriso e a sua atenção, depois a abertura de todas as informações que ele podia nos passar, dos detalhes das operações. Dali não sairiam, como não saiu, nenhuma informação falsa, nenhuma pista falsa.
Vasculhávamos fazendas e vilas, percorremos caminhos de boi, andamos a pé muitos quilômetros e o jornal Estado de Minas publicava milhares de linhas e mais de dezenas de páginas. O povo queria saber o destino dos Irmãos Piriás. Zé Ivo abriu o jogo, ele capturaria os fugitivos vivos e todos os cuidados eram tomados para evitar mais confrontos inúteis e mais mortes e feridos. Deixamos o quartel e, no carro, o motorista Elder observou:
Encontramos um homem
Encontramos um homem numa tarde quente e de sol forte e sem precisarmos de lanterna.
Sidney Lopes, o fotógrafo, completaria sua observação lembrando que já percorrêramos naquele dia mais de 400 quilômetros e que ainda deveríamos voltar para Belo Horizonte.
É, meu amigo, Zé Ivo era um homem.
Estávamos atrás dos Irmãos Piriás e encontráramos, acidentalmente, um homem e isto sem precisar da lanterna do filósofo, segundo o Sidney. Quanto perdíamos no labirinto de pistas, voltávamos ao Zé Ivo e tudo se esclarecia.
Só que aquele perder-se tornou um recurso complementar da reportagem, as pistas falsas eram usadas para nos tirar da jogada final, mas acabaram transformando-se em história resgatada de uma região tão destruída e castrada quanto os fugitivos.
Encontrávamos sempre na mesa do comandante, o capitão Ivo, o nosso material e algumas observações complementares. Torcíamos para que a captura dos Irmãos Piriás fosse feita pelo Zé Ivo. Era a única chance de sobrevivência deles e aí, sim, teríamos como contar a história verdadeira.
Décadas depois, já havíamos vivido uma longa experiência, algumas campanhas políticas e, no final dos anos 80, em 1987, uma vitória eleitoral nos reuniria novamente. Agora, estávamos juntos no governo de Minas, ele como um grande executivo do Estado e uma das suas figuras mais brilhantes, era o presidente da Cemig e depois secretário de Estado de Minas e Energia, Capitão José Ivo Gomes de Oliveira.
O talento e a operacionalidade do capitão Zé Ivo, como executivo sério e homem público puro, o levariam à liderança do setor como presidente da entidade nacional que congregava todas as estatais produtoras de energia elétrica. Zé Ivo continuava um homem simples e direto.
Muitas vezes, aquela alta autoridade do Estado, do primeiro escalão do governo, chegava para discutir idéias e decisões que somassem para o governo, para Minas Gerais. Sete Lagoas e a política da região eram os temas sempre presentes. Ele não mudou para Belo Horizonte, ia e vinha todos os dias. Lembro-me muito do prefeito Marcelo Cecé sempre ao seu lado. Era o seu amigo e companheiro.
Cecé assumira a presidência da Associação Mineira dos Municípios e, muito matreiro, vivia o desafio de percorrer o caminho aberto por Newton Cardoso para os prefeitos de Minas Gerais: o caminho do Palácio da Liberdade. Esta era uma probabilidade muito concreta. Cecé podia consolidar bases para, mais na frente, postular a sucessão de Newton. Cecé podia ser governador. Era possível, sim. Alguns espaços existiam e Cecé, prudentemente, avançava pisando em ovos, mas ao seu lado estava Zé Ivo. Mais tarde, soube dos dois juntos no projeto de uma rádio, depois soube da campanha de Cecé para prefeito e do papel de Zé Ivo, um puro estrategista e homem de logística de primeira linha. Soube da vitória arrasadora de Cecé.
Liguei para cumprimentar Zé Ivo e ele, com a sua mesma calma de sempre, ressaltava mais uma vez a liderança de Cecé. Voltando ainda aos primeiros tempos do governo de Newton Cardoso, 1987, um dia, Zé Ivo trouxe para a minha mesa, mais uma vez, Sete Lagoas. Isto é, o seu coração. Em algumas de nossas conversas já detectara que para ele não havia fronteiras entre as coisas do coração e a política. Era um romântico.
O presidente da Cemig, José Ivo Gomes de Oliveira, queria levar para a chefia de comunicação da estatal um seu amigo de Sete Lagoas, meu amigo também, o jornalista Gilberto Menezes. Era uma situação difícil para nós dois e muito delicada, naquele momento. Gilberto era mais do que um amigo, ele me fizera um profissional, era um dos meus mestres e vivíamos no mesmo grupo de amigos e companheiros. Era com o Gilberto e Tião Martins que aprendíamos a escrever. Como fazer?
Naquele momento, discutíamos o que era a política e a ação política. Nós nos questionávamos duramente. Era a nossa tragédia, nosso chão movediço e que seria fatal para o nosso Zé Ivo.
Zé Ivo era um homem.
Aquela conversa era uma porrada. Eu, pessoalmente, tinha uma grande dívida, lá atrás com Gilberto Menezes, com o Gerardo Renault, secretário de Estado da Agricultura no governo de Francelino Pereira. Eles, Gilberto e Renault, garantiram espaços de trabalho para nós que éramos perseguidos pelos governos militares. Sem atestado de bons antecedentes estávamos impedidos de trabalhar em muitos lugares. Renault sentou e escreveu ele mesmo, à máquina, um atestado. “Ou eles aceitam ou não sou mais secretário” e assim entrei para o quadro da Secretaria da Agricultura, onde permaneci até a entrada de Newton Cardoso no governo de Minas.
A porrada toda era como Zé Ivo, presidente da estatal, poderia conduzir a indicação do Gilberto? Não era uma simples questão administrativa de uma empresa do Estado com autonomia para tal. Gilberto Menezes comandara, a partir de uma coluna na primeira página do Diário de Minas, uma talentosa, como sempre, campanha contra a candidatura de Newton Cardoso e, assim, fora todo o ano de 1986. Uma campanha talentosa e despudorada. O conflito com o Diário de Minas, dentro de todo o universo da campanha aparentemente era de significação reduzida, mas era tratado como um conflito localizado e combatido com igual violência, talvez sem o mesmo talento. Era uma raia isolada, mas que distinguia, claramente, dois campos. Eles de um lado e nós do outro. Terminada a eleição, vencêramos. Começado o governo, como aproveitar amigos e pessoas talentosas? Era a discussão que Zé Ivo trazia para a mesa. O que é a política?
Política era tempo também. Política é saber o tempo de dizer e o tempo de ação.
Política era a ação comum. Naquele dia, percebi que aquele homem, em sua lição simples e direta, misturava tudo e que bela mistura ele produzia. Ele misturava política e coração. A política para ele tornava-se uma arma perigosa e um veneno. Assim seria com Sete Lagoas, com Eduardo e Álvaro Azeredo, com Cecé, com Newton Cardoso, com a última campanha política que Zé Ivo se prepararia para comandar.
Na política, Zé Ivo era um amigo, essencialmente um amigo. Para ele não tinha este negócio de política e tempo. Naquela ocasião havia uma sentença atribuída a Hélio Garcia que circulava, nos primeiros momentos do governo, como sinalizador e como advertência, segundo Hélio Garcia, na política não tem filho, nem filha, mulher, sogra ou sogro, não tem pai, nem mãe. Zé Ivo discordava, se tínhamos concordado com o aproveitamento do Gilberto, se tínhamos que apenas que dar tempo ao tempo, traríamos ele imediatamente. Ponderamos os obstáculos. A memória punitiva ainda prevalecia. Esta lógica da punição perderia força com muito mais rapidez e aqueles episódios mais radicais da campanha política entraria rápido para o anedotário, tornar-se-iam casos, sem maiores significados para a história oficial, aquela registrada pelos números finais das eleições de 1986. Era dar tempo para a metamorfose constante da ação política: a memória punitiva dando lugar para a grandiosidade do poder político que é a sua face de magnanimidade. O poder era magnânimo entre os políticos sóbrios e entre os políticos construtores.
Assim era o Zé Ivo. Veio, em seguida, a campanha de Itamar Franco e Newton Cardoso, de um lado, Eduardo Azeredo e Cecé, do outro. Zé Ivo ainda estava filiado ao PMDB e, com relação ao governo de Eduardo Azeredo, já havia se distanciado desde uma discussão mais dura com Álvaro Azeredo. Zé Ivo deixa o governo de Cecé e entra na campanha de Itamar e Newton. Era um desafio desproporcional e todo mundo sabia que a política de Sete Lagoas teria um desenrolar complexo. Zé Ivo ficou em uma situação em que tudo desequilibrava contra ele. Mais uma vez, Zé Ivo se revelaria ou se confirmaria, agora dentro da política: era um homem.
O massacre foi total, massacre eleitoral, massacre político. Afinal, nem tanto. Ele vencera com Itamar e Newton. É isto mesmo. Ele venceu, mas a complexidade da vitória total, deixara a marca profunda da derrota localizada na sua cidade. Itamar perdera feio em Sete Lagoas. O que é a política?
Ele venceu? Zé Ivo venceu.
Os vitoriosos cobravam, queriam explicações. A complexidade da política levaria Zé Ivo de novo a sentar com os amigos. Era um questionador. Um ser suave, mas objetivo e determinado. Depois de uma conversa com o governo de Minas, Zé Ivo decide sair do seu PMDB. Os que viveram esta sua decisão sabem o quanto foi traumática. Não havia saída. Ficar seria a indignidade. Era uma questão de Estado, uma questão de composição de bancada na Assembléia Legislativa. Ao seu lado, ficaram os seus amigos Márcio Reinaldo e Ivone Andrade. Do deputado Márcio Reinaldo, a admiração de Zé Ivo vinha de tempos distantes e sempre que ele falava de Márcio Reinaldo, Zé Ivo lembrava o quanto Márcio fora importante na sua ação à frente da Secretaria de Estado de Minas e Energia.
“Márcio ajudou-nos a criar e dar estrutura à FEAM, Fundação Estadual do Meio Ambiente”.
Os Irmãos Piriás morreram. Foram assassinados. Executados. Vi no jornal a fotografia dos dois mortos, no meio do mato. Eram muito semelhantes a fotos de guerrilheiros mortos como a foto da morte, também numa execução, do capitão Carlos Lamarca, na Bahia, de Che Guevara, na Bolívia. Zé Ivo fora afastado da captura, entregue a um grupo misto da polícia militar e civil, sob um comando especial. Eu também estava fora da cobertura. Era um dezembro, festas de final de ano. Um cineasta transformaria a vida dos Irmãos Piriás em um filme. Os Pés de Chinelo com roteiro de Carlos Alberto Ratton
Zé Ivo anunciou sua candidatura a prefeito. Larguei tudo e o procurei. Queria estar ao seu lado nesta sua caminhada. Não imaginava que seria a sua última campanha e uma campanha em que ele desistiria antes de começá-la. Imaginava que em nossas relações conseguiríamos agrupar condições suficientes para construir uma bela campanha e uma vitória que se desenhava clara, cristalina. Havia totais condições. Era isto não apenas um sentimento, trabalhávamos várias pesquisas. Eu terminara o trabalho de edição do livro de Newton Cardoso sobre o fechamento da fábrica da Itaú – Dossiê Itaú – A fumaça assassina – para a Editora Armazém de Idéias.
Se de um lado, encontrávamos dificuldades que se tornariam intransponíveis, de outro lado, Zé Ivo voltava de longas conversas preocupado com o mapa eleitoral que se desenhava para a cidade. Os riscos transtornavam as decisões. Zé Ivo jamais assumiria com os seus companheiros de partido e com as pessoas envolvidas em sua campanha um compromisso que não seria capaz de cumprir. Esta determinação alterava o seu estado. Se de um lado, a cada dia, convencia-me de que estava diante do homem traçado para ser o prefeito definitivo de Sete Lagoas, suas discussões eram verdadeiras lições de cidadania, de ação política e de visão quanto aos destinos da cidade. Subjacente, uma última lição brotava no meio de tantas dificuldades: trair jamais.
A sua candidatura não poderia transformar-se em instrumento de estratégias eleitorais estranhas ao seu verdadeiro conteúdo. Ele não se prestaria à traição do seu povo, da sua cidade, de seus companheiros e dos candidatos a vereador empolgados com a sua candidatura. Percebi, muito tarde, em nossos diálogos, que Zé Ivo, mais uma vez, misturava política e coração.
Eu o levara para conhecer minha filha, mais uma Lanza para Sete Lagoas, Ana Luísa. Depois, ele me levara até a esquina de Jovelino Lanza com Maria Antônia. Queria me mostrar o seu empreendimento. Tinha orgulho de tudo o que fazia, da sua família, dos seus filhos e de Sete Lagoas. Ele falava da política com coração e, mais uma vez, se interrogava sobre a ação política de alguns dos seus amigos mais próximos. Mais uma vez, buscara a separação e, mais uma vez, apelara, inutilmente, para o tempo.
Um dia, ligaram-me de Sete Lagoas. Uma notícia triste. O capitão Zé Ivo morreu.
Até hoje, não sei qual foi causa mortis. Se foi a política? Se foi o coração? Foi o pulmão?
Não sei.
Sei apenas que havia morrido um homem.
“Não me perguntem por quem os sinos dobram
quando morre um homem?
Eles dobram
Por ti.
A morte de um homem
É a morte da humanidade”.
John Donne
* Carlos Roberto Jordan é jornalista