
A filosofia da garrafa - créditos: divulgação
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06-04-2025 às 09h09
Marcelo Galuppo[1]
Garrafas de vidro são objetos mágicos: seu desenho torna-as o melhor recipiente para conter, transportar e servir líquidos. Antes das garrafas, havia cabaças, odres e ânforas. Cabaças, um fruto seco, duro e oco, são práticas e, quando o homem ainda não dominava técnicas artesanais mais sofisticadas, estavam facilmente disponíveis na própria natureza. O problema é que continham restos de seiva, muitas vezes tóxicos. Odres são bolsas de couro de cabra costurado, que se rompiam com facilidade e que deixavam um gosto animal nos líquidos, e isso não é um elogio. Ânforas são vasos de cerâmica que podem ser vedados com cera ou resina ou, o mais comum, com uma camada de azeite, que impedia o contato do líquido com o oxigênio, mas também são frágeis, e ainda podem deixar gosto nos líquidos que transportam. Para piorar, geralmente possuíam um fundo pontiagudo que não permitia que ficassem estáveis sem que se colocasse areia ou palha no piso que as acomodava, aumentando o peso ou o risco de incêndio em viagens marítimas. Esses três tipos de recipiente raramente eram usados para transportar água: era mais fácil e seguro, quando se viajava, ter poços disponíveis ao longo do caminho. Além disso, todos eles estão presos à sua origem natural: a cabaça continua sendo um elemento do mundo vegetal, o odre continua sendo um elemento do mundo animal e a ânfora continua sendo um elemento do mundo mineral, conservando quase intacta a matéria da qual são produzidas.
Uma garrafa de vidro é muito diferente: ela se modifica em sua natureza pela intervenção da cultura. A sílica, o elemento predominante na areia, passa por fusão quando submetida a temperatura superior a 1500 graus centígrados e assume uma forma rígida e transparente quando se resfria, muito diferente do mineral que lhe dá origem.
Pode se pensar que essa tecnologia seja muito recente, se as compararmos com cabaças, odres e ânforas, mas há exemplares datados de 1.500 a.C., no Egito. Eram objetos raros e caros (porque sua elaboração demanda uma técnica muito mais sofisticada e difícil de reproduzir do que colher um fruto, costurar um pedaço de couro ou moldar um pouco de barro). As garrafas de vidro, portanto, já foram objetos de luxo, ao contrário das cabaças, odres e ânforas, que sempre tiveram um uso universal. Por isso eram minúsculas, e geralmente se destinavam a perfumes ou venenos.
Sua popularização coincide com o surgimento da modernidade e, portanto, da burguesia, que sempre quis estar em um lugar que não lhe pertencia ou, se isso não fosse possível, trazer para perto de si o que os outros consumiam. Fazia parte desse desejo de status consumir vinho estranho à região em que se vivia. Até o século XVII, quem vivia na Borgonha bebia vinho da Borgonha, quem vivia na Toscana bebia vinho da Toscana e quem vivia na Rússia bebia vodca. A partir de então, começou-se a beber vinho produzido cada vez mais distante: Thomas Jefferson apreciava o vinho de Bordeaux, Voltaire o vinho Tokaji da Hungria e Mozart bebia champagne a qualquer hora do dia.

Não foi só isso que determinou o sucesso da garrafa: sua forma, um bojo cilíndrico com um pescoço mais estreito que o corpo, geralmente transparente, possui muitas vantagens sobre os outros recipientes, além de não transferir nenhum gosto ao líquido armazenado ou de não se deteriorar com o contato com ele. Sua forma otimiza a ocupação do espaço sem comprometer sua usabilidade: um cilindro permite aproveitar melhor o espaço de armazenamento; não tivesse o fundo plano, e seria difícil de transportar; fosse destituída de pescoço, e seria difícil de manusear; fosse opaca, e seria quase impossível determinar se estaria na hora de abrir outra.
Mas a garrafa sofreu nova transformação no século XX: ela passou a ser feita de novos materiais, que as tornavam ainda mais baratas. Foi quando a técnica para se produzir objetos de plástico se popularizou, por volta dos anos 60s do século XX, que a água passou a ser engarrafada em larga escala. Antes, era um produto de luxo, porque, na maioria das vezes, o recipiente de vidro custava mais que seu conteúdo (e quem é mais velho deve se lembrar que o chamado casco de cervejas, leite, refrigerantes e água mineral não era descartado depois que se bebia seu conteúdo: ele era retornado ao comerciante, que o devolvia ao fabricante para enchê-lo novamente com o líquido que, afinal de contas, era o que queríamos comprar).
Garrafas de água, de suco e de leite feitas de plástico tornaram-se o padrão para armazenar esses líquidos. Com o desenvolvimento das técnicas de higienização e de vedação, passaram a contribuir para a durabilidade desses produtos, permitindo baratear o custo de sua produção. Sucos, leite e mesmo água engarrafada passaram a ser consumidos por pessoas que não pertenciam à burguesia, popularizando o que antes era sua exclusividade. No entanto, diferentemente dos cascos de vidro, que eram, por uma exigência do capitalismo, reutilizados, essas garrafas são, também por exigência do capitalismo, descartadas: custa-nos menos desfazermo-nos delas do que darmo-nos ao trabalho de as armazenar vazias e de as devolver para reutilização ou mesmo reciclagem.
Abandonadas no ambiente sem serem biodegradáveis, as garrafas de plástico tornaram-se um grande problema ambiental. A consequência disso é que as elas, que já simbolizaram a força libertadora do capital e da capacidade de o homem resolver problemas, são agora o símbolo do poder do capital de acabar com a vida sobre a face da terra e de nossa incapacidade de corrigirmos nossos próprios erros.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG, e autor do livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, da editora Citadel, entre outros. Ele escreve quinzenalmente aos domingos no Diário de Minas.