
É que a fera está no olhar? Na barbicha? Nas palavras? CRÉDITOS: Flickr
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27-03-2025 às 09h56
Rufino Fialho Filho*
Um coração frágil. Tudo em Guido era frágil. Ele pode quebrar. Tão magro. Como seu corpo pequeno, franzino, esquálido, “pele (?) e osso simplesmente, quase sem recheio”, sustenta aquela fera?
É que a fera está no olhar? Na barbicha? Nas palavras?
Guido explode em suas esculturas e seus Cristos revelam o sofrimento e a tortura verdadeiras do homem moderno. O mundo olha Guido através dos calvinistas suíços, Guido larga tudo para trás.
É no seu Brasil que ele compõe e esculpe sua saga de ser cidadão. Aqui, é aqui. Guido precisa sobreviver, “sobrevivi pelos cantos”. Guido precisa fazer valer direitos, Guido fará, “é assim”, ele quer ensinar.
Guido atravessa os monstros. Todos tínhamos medo de que Guido não aguentasse as torturas e as pressões. Guido sobreviveu.
E o coração de Guido? Aguentou. Até a alegria era demais.
Olha, no final de semana, todos nós voando a 250 km/h no Ômega de Álvaro com destino à vida. Tudo e todos para salvar Guido. Ele não aguentou a alegria, comeu tudo, bebeu tudo, cantou tudo, brincou, riu, gostou do dia e de todos e brincou com os meninos, virou um menino, mas Guido é um menino, ali no canto tão magro, tão pequeno como o Gabriel, mais gente do que Guido, Gabriel tem carne e osso, é forte, um baita menino.
Guido corre risco. Guido explode, voando pelo chão. No hospital, Guido na maca, respiração difícil; todos por Guido e todos de olho na bunda da médica jeitosa, um primor de mulher, uma qualidade de bunda, todos atentos porque Guido, mais uma vez, vencerá seu dia.
Tempos depois: Onde está Guido? Passou mal, quase morreu e uma irmã que mora em Chicago o internou lá, mas já está bem e pronto para voltar, já mandou notícias.
Guido já esculpe? Nunca deixou de esculpir. É a sua luta. É a sua alegria. Vejo Guido passando algemado no corredor do Dops, uma delegacia que se diz de ordem política e social, não entendo, mas vamos em frente, talvez sobra do tempo que começou positivista.
Guido depois irá explicar-me. Ninguém se preocupa com as palavras. As palavras também têm que ter forma. “Tem que ser esculpidas. Faça das palavras uma arma, você é poeta, um senhor poeta”. Todos rimos, Guido fica nervoso, por que?
É, ele tem razão, qual o mal se traçarmos as palavras antes, se prepararmos as palavras antes, se tratarmos de cada uma delas, amaciá-las, dar-lhes forma e colocá-las exatamente no tamanho exato da palavra que queremos dizer. Fazer o que Guido faz como mestre da escultura.
Nunca fui bom de ouvido, nem bom de canto. Nunca entendi direito as pinturas. Vivo rodeado de cantos, músicas e pinturas. Quando não as tenho sinto falta de ar.
Guido diz que só a vida faz falta. Ele é doutor em vida e em sensibilidade de sobreviver todos os dias, carregando um coração que o tempo todo ameaça pregar-lhe uma peça. Cansado daquele corpo pouco.
Julian Beck, do Living Theatre, nosso companheiro de cela, no DOPS de Belo Horizonte, ganhará a liberdade no dia seguinte.
Ele pede a Guido que desenhe a nossa cela. Guido é um exímio desenhista. Julian Beck está entusiasmado, a cela é revelada nos detalhes, Julian passeia em volta de Guido que permanece concentrado. O trabalho fica pronto.
No dia seguinte, no dia da libertação de Julian Beck. Guido entrega-lhe o desenho e deita no seu canto.
- Guido, cadê a janela?
Grita, Julian.
Guido volta-se, olha.
- Lá está a janela na parede, grande, enorme.
Aponta Julian Beck.
“Não tem janela nenhuma no desenho que pedi!”
Guido volta-se para o seu canto.
- Olha, a janela, Guidô.
Julian está impaciente. Guido levanta, apanha o desenho, olha para a janela, olha para o desenho.
A discussão acirra-se. Aquele norte-americano imenso, correndo teatralmente pela cela, gritando, misturando línguas, la fenêtre, ele sabia que Guido havia vivido na Suíça, repetia, la fenêtre, the windows, a janela, olha lá, mire, aqui, quedá, here, here.
Julian estava atônito.
Guido já nervoso, apanhou o papel, tomou-o da mão de Julian.
Sentou-se com a sua prancheta improvisada, o americano estatelado ao seu lado.
Guido riscou, riscou e devolveu o papel.
“Aqui tem uma janela, segundo Julian”.
Não desenhou, só escreveu.
Julian mudou de cor.
Seus gritos chamaram a atenção das outras celas. Havia um silêncio lá fora, nas outras celas, como dentro da nossa.
Um silêncio véspera de uma grande explosão.
A lição
- Julian, meu querido Julian Beck, só você vê esta janela ali. Não existe nenhuma janela ali.
Guido professoral, tranquilo.
Uma lágrima desce pelos olhos do homem imenso, careca, de cabelos compridos atrás na nuca.
Aquele homem imenso torna-se um menino abalado. Está nos olhando.
Era o grande olhar da solidariedade e da amizade. Guido lhe dera uma lição utilizando os próprios métodos do teatro de Julian Beck, living, vivendo, encenando, fazendo, revolucionando, provocando, criando e introduzindo novos atores na cena da vida.
Era a grande cena de Julian Beck e de Guido Rocha.
Julian Beck com o papel, olha-o, olha para a janela, olha de novo para o desenho e para, abraça afetuosamente Guido.
- Guidô, não existe nenhuma janela ali. Não existe nenhuma janela para o nosso mundo.
Julian está eufórico e abraça todos, despede, está alegre.
- Eu vou abrir uma janela, eu farei uma janela para o mundo.
Ele está entusiasmado, era mais uma lição do seu Living Theatre.
Guidô aprendera.
Guidô ensinara.
Muitos anos depois, sempre contando esta mesma história.
O living continua – é o teatro que se quer vida e, incrível, a lição de Guido ampliara a visão de Julian, o artista, o ator, o teatrólogo. Julian Beck não era um escultor e nem um pintor.
Ele saiu alegre, feliz, profundamente triste, sensível.
Vejo os dois, Julian e Judith conversando no corredor. Ela abraça-o, Romeu e Julieta. Eles se afastam.
- Janela, a janela.
Esta palavra virará uma música em várias línguas, deixando loucos os policiais.
É um grito que vem da rua, depois um coro, era a nova canção dos atores do Living Theatre. Três, quatro, dez vozes. Todos gritando, cantando em todos os idiomas que eles conheciam
- A janela
- A janela,
- Le fenêtre,
- Le fenêtre,
- The windows,
- The windows,
- La fecha
- La fecha
- A janela.
Depois, um grito e silêncio
- A janela não existe naquela prisão.
*Rufino Fialho Filho é Jornalista