
Onde estão as reflexões críticas sobre a cultura machista que perpetuam? CRÉDITOS: Freepik
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25-03-2025 às 09h28
Valesca Santana*
O dia 8 de março, o texto “O feminismo errou” de Mariliz Pereira Jorge, publicado na Folha de São Paulo, e a série Adolescência são as razões pelas quais estou escrevendo este texto. Mas não é só isso. Este texto é movido por um sentimento que impulsiona mudanças no mundo: a raiva. Não estou preocupada em ser empática, doce ou sensível. Todas as vezes que nós, mulheres, vamos falar das nossas dores, temos que processá-las e, ao mesmo tempo, pensar na forma de externá-las para não sermos invalidadas. Já deixo claro que este texto não terá a pretensão de ser um paliativo para os homens; é para doer, assim como dói a dor de ser mulher.
O mês de março é um daqueles meses que, ano após ano, me deixam com um gosto amargo na boca. Quando o carnaval acaba no Brasil, o foco das festas dá lugar aos compromissos morais, sociais e de trabalho, e o primeiro grande marco nas redes sociais é o glamouroso “Dia Internacional das Mulheres”.
As redes são inundadas por empresas que presenteiam suas funcionárias com rosas, homens que postam fotos com suas mães, esposas e filhas, além de frases e textos sobre como as mulheres são grandes guerreiras. O neoliberalismo é eficaz na função de esvaziar a política da coisa em si. O Dia Internacional das Mulheres é um dia de luta política feminina, aqui deixo claro que mulheres trans são incluídas em toda análise. Desta forma, em vez de ser um momento de reflexão sobre as lutas e desigualdades que ainda enfrentamos, acaba se transformando em uma espécie de “parabéns a você” generalizado. As felicitações vazias, onde a realidade das violências, assédios e opressões que vivemos diariamente é mascarada por flores, mensagens clichês e uma falsa sensação de reconhecimento.
Chegamos ao ponto central do texto: A Casa dos Homens. A professora e pesquisadora Valeska Zanello, em sua análise sobre as relações de gênero, afirma que os homens vivem na “casa dos homens”, um espaço simbólico onde as regras, os valores e as dinâmicas são construídos por e para eles mesmos. Nessa “casa”, as experiências, necessidades e vozes das mulheres são frequentemente marginalizadas ou ignoradas, pois o mundo é visto e organizado a partir de uma perspectiva masculina.
Essa metáfora ilustra como os homens, muitas vezes sem perceber, ocupam um lugar de privilégio onde suas vivências são consideradas universais, enquanto as das mulheres são tratadas como secundárias ou específicas.
O conceito da “casa dos homens”, desenvolvido pelo sociólogo francês Daniel Welzer-Lang, serve como uma metáfora para entender a construção da masculinidade.
Segundo essa teoria, a masculinidade é um processo contínuo de provação e validação, onde homens mais velhos ou bem-sucedidos introduzem e testam outros homens, exigindo que eles demonstrem constantemente sua masculinidade. Um dos valores centrais dessa “casa” é a objetificação sexual das mulheres, que é vista como uma forma de desumanização e uma maneira de os homens se afirmarem como superiores.
A escrita desse texto tem como ponto central uma das pilastras dessa casa: O Silêncio dos Aliados do Feminino. A “casa dos homens” é regida por um silêncio cúmplice, no qual os homens se calam para manter sua posição e evitar conflitos com seus pares. Esse silêncio é diferente do silêncio das mulheres, que muitas vezes se calam para preservar relacionamentos e o bem-estar dos outros. A base dessa estrutura é a misoginia, que se manifesta de diversas formas, desde discursos de ódio até a objetificação sexual, que é a forma mais comum.
Pode parecer um assunto banal à primeira vista, mas a misoginia está se tornando um tema central de discussão graças ao impacto político e social que seus reflexos têm causado em diversos países.
A “guerra dos sexos” não é apenas uma questão de conflito entre gêneros, mas um fenômeno com consequências profundas e tangíveis.
Um exemplo claro disso é a queda nas taxas de natalidade em países como Japão e Coreia do Sul, onde a “greve de fertilidade” tem sido interpretada como uma resposta direta à misoginia e ao patriarcado. As mulheres, cada vez mais conscientes das desigualdades e violências que enfrentam, estão escolhendo não se submeter a um sistema que as oprime, recusando-se a desempenhar papéis tradicionais que perpetuam sua subjugação.
Adolescência, uma série da Netflix, é um dos elementos que compõem essa somatória de acontecimentos no mês de março. A série aborda as masculinidades e a urgência de um diálogo transversal sobre a criação dos filhos na era da internet.
Ela narra o caso de um adolescente que mata uma colega de escola. Embora não seja baseada em uma história real, o caso é comum em jornais: meninas mortas por meninos próximos. Basta dar um Google. A série explora como uma criança é corrompida pela pressão e violência de ser homem na sociedade, e como isso impacta todo o seu entorno. Para não soltar spoilers, me abstenho de detalhar mais.
Antes de conectar os assuntos, é importante explicar o termo Red Pill (Pílula Vermelha), que tem suas origens no filme Matrix (1999). Na trama, o personagem Morpheus oferece ao protagonista Neo a escolha entre uma pílula azul, que o manteria em uma vida ilusória, e uma vermelha, que o “despertaria” para a verdade. Fora do contexto do filme, o termo foi apropriado por comunidades online que criticam o feminismo e defendem uma visão de mundo antifeminista. Para esses grupos, a “Red Pill” simboliza o “despertar” para uma suposta opressão masculina em uma sociedade dominada por ideais feministas.
Um dos ramos dessa cadeia são os Incel (abreviação de “involuntarily celibate”), termo usado para descrever homens que se consideram incapazes de encontrar parceiros românticos ou sexuais, apesar de desejarem isso. Na série Adolescência, o personagem Jamie é um garoto de 13 anos frustrado e com baixa autoestima após ser rejeitado por uma colega de escola. Ele se sente rebaixado e ridicularizado por uma mulher que ele classifica como “vagabunda”. Esse é o gatilho para a segunda maior pilastra da casa dos homens: a Violência da Ira. A série mostra como uma criança é corrompida pela pressão e violência de ser homem na sociedade, e como isso impacta todo o seu entorno.
Ao ler o texto de Mariliz Pereira Jorge, “O feminismo errou”, publicado na Folha de São Paulo, refleti sobre a afirmação de que “não é possível mudar a realidade do machismo sem educar as novas gerações de homens”. Concordo que a educação é fundamental, mas o texto deixou de lado um ponto crucial: a validação masculina. Mariliz parece esquecer que os homens são, em grande parte, validados por outros homens, e que essa dinâmica é central para entender como o machismo se perpetua. Não adianta apenas colocar sobre as mulheres a responsabilidade de educar os homens, porque a “casa dos homens” – ou seja, os códigos, comportamentos e hierarquias que sustentam o machismo – só pode ser quebrada de dentro para fora, pelos próprios homens.
Colocar sobre as mulheres a tarefa de educar os homens não só perpetua estereótipos de gênero – que atribuem às mulheres o papel de cuidadoras e guias morais –, mas também ignora que a validação masculina vem, principalmente, de outros homens. São os homens que reforçam entre si padrões de comportamento, que validam ou criticam atitudes, e que mantêm viva a cultura machista. Para transformar essa realidade, é necessário que os homens saiam da “casa dos homens” e passem a enxergar e valorizar o mundo a partir de uma perspectiva mais inclusiva e equitativa. Não tirem a responsabilidade de quem cabe. Não a coloquem na minha conta.
A minha conversa aqui é sobre a responsabilização desses homens que se dizem aliados das mulheres e que querem uma sociedade mais justa, mas são incapazes de romper o silêncio cúmplice. São os mesmos homens que, no dia 8 de março, compartilham frases de efeito e fotos com as mulheres de suas vidas, como se isso fosse suficiente para demonstrar apoio. São homens comuns, que se enxergam como progressistas e defensores da igualdade, mas que, no fundo, reproduzem uma visão limitada e utilitarista da mulher. Para eles, o valor feminino parece estar atrelado ao que ela faz por eles: a mãe que os criou, a esposa que os apoia, a filha que carrega suas expectativas.
É triste deparar-se com depoimentos e textos de homens ditos aliados, com frases como “a guerreira que me criou”, “a mulher que cuida de mim” ou “a minha filha”. Nenhum deles reconhece a mulher como um sujeito universal. São incapazes de enxergar uma mulher para além de sua relação com eles mesmos, incapazes de expressar admiração por uma mulher que não estejam diretamente ligada ao cuidado que ela lhes proporciona.
Como diz a filósofa Friedrich, as felicitações que esses homens postam, na realidade, celebram um trabalho não remunerado. O que eles admiram, no fundo, é aquilo que lhes pode ser servido. A mulher, em sua individualidade, em sua existência para além do papel de cuidadora, mãe ou filha, permanece invisível. Essa suposta homenagem revela, na verdade, uma profunda falta de reconhecimento da mulher como ser autônomo.
Por que vocês, homens, não se propõem a escrever textos que questionem suas próprias atitudes e as de outros homens? Por que não se dedicam a refletir, de forma pública e sincera, sobre o que podem fazer para combater a violência contra as mulheres?
A “casa dos homens” é sustentada por um silêncio que beneficia a todos vocês, um pacto não dito que mantém intacto o poder e os privilégios masculinos. Enquanto as mulheres silenciam para proteger relacionamentos ou evitar conflitos, vocês se calam para preservar uma estrutura que os favorece. Esse silêncio não é neutro: ele alimenta a misoginia, que se expressa desde piadas e comentários objetificantes até as formas mais brutais de violência. Não basta compartilhar mensagens de apoio ou se declarar aliado em dias específicos.
Onde estão as reflexões críticas sobre a cultura machista que perpetuam?
Onde estão as ações concretas para desconstruir comportamentos e atitudes que oprimem as mulheres?
E você homem que chegou até aqui é hora de sair da zona de conforto e assumir a responsabilidade de transformar essa realidade.
* Valesca Santana é doutoranda e mestra em Direito pela UFMG. Professora, Palestrante e Advogada.
Pós-graduada em LGPD, Privacidade e Proteção de Dados, especialista em Direito Digital