
Esses limites estruturantes do Estado moderno ocidental baseiam-se em fórmulas simples e eficazes. CRÉDITOS: Freepik
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17-03-2025 às 09h36
Rogério Reis Devisate*
Vivemos com o Estado fracionado na tripartição de poderes, formada pelo Poder Legislativo, pelo Poder Exectivo e pelo Poder Judiciário, tal qual visualizada por Aristóteles, Locke, Montesquieu e Rousseau. Contudo, mesmo as suas elevadas estaturas culturais não lhes permitiram prever que o Poder Judiciário pudesse se aproximar de órgão que fosse mero legitimador de atos do Poder Executivo.
Antes de avançar, é preciso considerar que o Poder Legislativo se impôs como representante da vontade popular ao absolutismo monárquico, onde a vontade de um só bastava e era temida, muito bem representada na ideia de Luís XIV, o todo poderoso rei francês, que dizia que o Estado era ele (L’État c’est moi”). Esse movimento moldou o Parlamento e fez dele um dos poderes, parte constituinte do Estado moderno, como reflexo da voz popular e da soberania do povo.
Ernst Cassirer contribui dizendo que, com “Maquiavel, ficamos na antecâmara do mundo moderno” e que “o fim desejado foi alcançado; o Estado ganhou autonomia completa.” Além disso, no contexto da Revolução Francesa, na proclamação do Frimário, nascem os “interesses do Estado”, da qual lemos o seguinte trecho: “Os poderes por ela instituídos serão fortes e estáveis, como convém à garantia dos direitos dos cidadãos e dos interesses do Estado”, como explica Bertrand de Jouvenel. Isso deve ser gravado, por sua repercussão.
No que floresceu da Revolução Francesa, da Carta de Direitos britânica (“Bill of Rights”), da Declaração de Independência dos Estados Unidos e dos artigos federalistas que inspiraram a Constituição norte-americana, estes os berços da moderna Democracia nos Estados Unidos e no mundo, tivemos o perfume de um poder centralizador que deveria se enfraquecer e focar na gestão e execução das políticas públicas, com os seus gastos sob a fiscalização parlamentar e a cumprir as leis que este fizesse e tendo, ainda, ao final, o Poder Judiciário como o julgador dos atos dos particulares e dos demais poderes, como o guardião da constituição e das leis.
Esses limites estruturantes do Estado moderno ocidental baseiam-se em fórmulas simples e eficazes, para se manter o equilíbrio e contra a hipertrofia muscular de um poder em face dos demais, incluindo, aí, a regra do sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), pelo qual cada faceta do poder fiscaliza os demais e é fiscalizado.
Essa é a base do sistema vigente.
No entanto, o prestigioso professor Charles Lund Black Jr. (na obra não traduzida para a língua portuguesa e intitulada The People and the Court; 1960, p. 238) percebeu que o Poder Executivo do Estado esparramou-se um pouco além do que foi projetado originalmente, ao apropriar-se do sistema de controle da constitucionalidade dos seus atos, levando a Suprema Corte americana a operar não exatamente como limitadora das suas ações e, sim, como uma ferramenta aferidora da legitimidade das ações do Executivo.
Noutras palavras, o Executivo norte-americano passou a agir de modo a poder, doravante, exibir o julgamento da Suprema Corte como espécie de láurea confirmatória da correção dos seus atos.
Murray Rothbard, na obra A Anatomia do Estado (p. 50 e 26) assim se pronuncia: “Se uma decisão de “inconstitucionalidade” é um poderoso entrave ao poder do governo, um veredicto implícito ou explícito de “constitucionalidade” é uma arma poderosa para promover a aceitação pública de um crescente poder governamental”.
Os julgamentos da Suprema Corte, confirmatórios das ações do Executivo, nessas condições, oferece legitimidade a favorecer a aceitação popular – mesmo em face de atos impopulares. Charles Black aponta que isso permite que mesmo a expansão do Executivo possa ser vista como constitucional, ainda dizendo que a função da Suprema Corte mais tem validado – e não invalidado – ações do Executivo.
Em última análise, parece que o dogma ocidental da tripartição de poderes se encaminha para um aumento progressivo da concentração e força do Poder Executivo que, de algum modo, passa a ter no Poder Judiciário um elemento fortalecedor das suas ações – algo um pouco mais próximo ao que havia no passado, ao tempo dos reis e governos absolutistas. Ao questionar quem fixará limites ao Poder Executivo do Estado, na resposta é Charles Black quem reafirma o aumento de força do Executivo, ao dizer: “o próprio Estado, claro, através dos seus juízes e da sua legislação” (em livre tradução), para sentenciar: “Qualquer governo nacional, enquanto governo, terá a palavra última acerca do seu próprio poder” (em livre tradução).
Parece que essa concentração de forças e/ou de orquestração de poder é tendência a se espraiar por países contemporâneos, pois a moderna democracia é experiência recém iniciada e não estaria como obra concluída. Ademais, nada é imutável. Maquiavel sentia algo a respeito quando disse que “a multidão sem uma cabeça, não tem qualquer orientação”, sendo, portanto, apenas massa de manobras a aceitar qualquer coisa que se lhe imponha.
Por fim, para quem acha que vivemos novidades absolutas, é bom relembrar texto do ano de 1.549, intitulado Discurso sobre a servidão voluntária, no qual Etiénne de La Boétie disse sobre o povo:
” Atrair o pássaro com o apito ou o peixe com a isca do anzol é mais difícil que atrair o povo para a servidão, pois basta passar-lhes junto à boca um engodo insignificante.
É espantoso como eles se deixam levar pelas cócegas
[…] Que tormento fazer sempre rosto risonho, tendo o coração transido, não poder mostrar-se contente e não se atrever a ser triste!”
Que o nosso guardião Supremo haja como tal sempre, até para que não chegue o tempo em que se considere que dele não há necessidade, bastando aos donos do Poder apenas a função executiva a lhes servir, cada vez mais forte e tirânica, enquanto se mantém nos ricos banquetes observando o iludido povo a dançar nas ruas.
*Rogério Reis Devisate é advogado, membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ, defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. É autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania.