
Lembro, mas não recordo. CRÉDITOS: Divulgação
10-03-2025 às 09h44
Ana Amélia Rossiter Cardoso*
“Minha memória, senhor, é como um depósito de lixo”. [ou] “Ele sabia as formas das nuvens austrais no amanhecer do dia 30 de abril de 1882.”
Lembro-me, com uma precisão exasperante e uma ternura fabricada, do instante em que soube que minha memória já não me pertencia. A notificação piscou na tela do celular: “Relembre este dia: 14 de abril de 2017”.
Abri a notificação e fui tragada por um inventário de insignificâncias. Ao fundo, uma trilha sonora melódica, sem autoria. Lá estavam as 35 capturas de tela de conversas cujos interlocutores se diluíram no tempo. Um couscous marroquino em um restaurante cujo nome desaparecera, mas que fora meticulosamente registrado em cinco ângulos distintos. Livros cujas lombadas fotografei com a intenção de ler e que nunca ultrapassaram a barreira da minha vontade. Um gato qualquer. Uma planta emergindo do asfalto, repetida em sete fotografias ligeiramente deslocadas na perspectiva. Um autorretrato trêmulo de uma espinha em meu queixo. Todas as versões de meu cão dormindo no sofá. Uma tela do meme “eu me prostituía por hambúrguer”.
Lembro, mas não recordo.
Funes, se vivesse hoje, não estaria condenado apenas à hiper-memória, mas à mercantilização da mesma. Suas lembranças não lhe pertenceriam apenas como peso intransferível, mas como um espelho convexo onde todas as suas versões, todas as suas imagens, seriam armazenadas e recategorizadas sem que ele mesmo as solicitasse. Ordenamento de códigos. Toda a poeira da memória.
O sequestrador digital — silencioso e onipresente — sabia mais sobre mim do que minha própria recordação. “Esse rosto é o seu irmão?”, perguntava-me o algoritmo, enquanto me exibia um semblante indistinto, que talvez tivesse cruzado minha vida, talvez não. Lá estava ele, pixelado ao fundo de mais uma foto guardada em série.
Eu me tornei refém de uma memória que não me serve. Não sei o que pensava em 14 de abril, o que sentia em 14 de abril, se 14 de abril era um dia quente ou frio. Sei apenas que era 14 de abril. Sei que tirei 35 capturas de tela, que pesquisei “por que milho verde pode estar com cheiro de acetona”, que abri um artigo sobre o aquecimento global e a extinção dos corais — e que nunca terminei de lê-lo. O fluxo natural da mente foi arrendado. Agora, tem preço.
Não me lembro da planta, mas ela está lá, arquivada e replicada, disponível para minha distração. A voz daquela pessoa resiste em fragmentos de 47 segundos, esperando um dia ser chamada de volta à consciência.
Funes era assombrado pelo detalhe absoluto, mas sua memória era sua. A minha é compartilhada, indexada, categorizada, até que já não sei se pertenço ao que vivi ou ao que me foi devolvido em pedaços, pelos servidores e pelos circuitos que armazenam cada movimento que fiz.
A verdadeira condenação não é a memória total, mas a memória terceirizada. Funes estava preso a um passado que lhe pertencia. Eu, àquele que a Google me aluga em faturas mensais. Pago R$38,99 parcelas ao mês para acessar 2 terabytes de mim.
*Ana Amélia é historiadora e mediadora cultural
