A aviação amazônica enfrenta três grandes problemas, um é a instabilidade do tempo. Decola-se com céu claro e de repente, tudo muda. Uma chuva transforma-se rapidamente em violenta tempestade e, caso imprudente,
perde-se com facilidade
05-02-2025 às 09h35
José Altino Machado
A aviação amazônica está envolta em um rosário de lendas e
teve seu começo antes da aviação militar. Sem ela o povo da região não teria alcançado o atual desenvolvimento e
conhecimento. Depois de tanto tempo na Amazônia, percebi claramente que o homem conserva ou destrói de acordo com sua visão econômica baseada no lucro e, principalmente, na sobrevivência.
Não acredito que a nova geração seja capaz de escrever a história que os antepassados construíram.
Desde que cheguei e sobrevoei naquela imensidade de floresta, tive a certeza de que o extrativismo associado à aviação possibilitaria o desenvolvimento econômico. Antes dos pássaros de metal só se entrava na floresta por suas
portas naturais: os grandes rios, as avenidas, e os afluentes, as ruas.
Na selva não se consegue carregar comida para mais de quinze dias. Há um limite da força do homem para bagagem carregada. Por isso, o abastecimento é feito também pelas voadeiras, canoa a motor. As cachoeiras limitam-lhe o acesso através dos rios.
A invenção do avião metálico de pequeno porte, mais resistente à chuva, ao mau tempo e ao uso abusivo, foi a grande inovação que alavancou a conquista da região. Com eles, os pilotos passaram a voar com maior segurança e economia.
A aviação amazônica enfrenta três grandes problemas, um é a instabilidade do tempo. Decola-se com céu claro e de repente, tudo muda. Uma chuva transforma-se rapidamente em violenta tempestade e, caso imprudente,
perde-se com facilidade.
O outro problema são as pistas de pouso. Abertas à machados e enxadões, arrancando-se tocos e depois queimando-os, atendem à melhor logística do trabalho. Não são construídas de frente para o vento, com tamanhos e larguras conforme normas mínimas de segurança para o pouso, são construídas no exato local do trabalho, a serviço do extrativista, garimpeiro ou madeireiro, caso contrário, pousa-se no melhor
lugar para o avião e no pior para o trabalhador, que teria de carregar nas costas motor, óleo diesel e comida, vencendo morros e charcos. A Amazônia é repleta de morrotes íngremes e escorregadios, o que torna a jornada extremamente exaustiva. Somando-se a isso o ar quente, pesado e muito úmido, cansa-se facilmente. Esse é o motivo de chegar com o avião em cima do serviço e para isso algumas pistas são construídas inclinadas, subindo morro.
O avião pousa e o pessoal, já de sobreaviso, espera. Rapidamente seguram-no, para que ele não desça em
marcha à ré. Os pilotos tornam-se especialistas nessa insólita forma de pouso. Para decolar, apenas viram o avião e deixam-no descer morro abaixo. De um jeito ou de outro, ele decola.
Outras pistas têm a forma de um “S”. O piloto sobe para a esquerda, sabendo que exatamente no meio, no alto, ela vira para a direita. Tudo isso torna a aviação na Amazônia um pouco diferenciada!
Muitos chegam do Sul com quinhentas ou mil horas de voo. Mesmo assim, ninguém lhes confia o comando de um avião, porque dando de cara com o terceiro problema, que consiste em achar essas pistas encravadas em meio à mata fechada. Mesmo com GPS, hoje ainda não é fácil. Para ser considerado piloto na floresta, além de ter no mínimo três mil horas de voo, trezentas delas devem de ter sido feitas sobre a floresta.
Também o piloto precisa transformar-se em um excelente meteorologista e desenvolver uma excelente autocrítica, para discernir as dramáticas adversidades que serão enfrentadas. somatória de tudo isso será o grande divisor entre ficar vivo e morrer bem rápido.
Saber a hora de retroceder é mais importante do que saber a hora de avançar. Por excesso de confiança, alguns excelentes profissionais acabaram sumindo. Eles foram encontrados uns quatro anos depois, por acaso, em meio de galhos e devorados por bichos.
Há episódios inusitados como o do Toledo. Ele voava levando garimpeiros e devido a uma pane, pousou na copa de uma árvore. Não havia como descer. Ali, permaneceram por dois dias, pendurados como macacos a gritarem como um bando de papagaios, até serem socorridos por garimpeiros.
Outro protagonista de um acontecimento hilário, falha-me seu nome correto, talvez Jacaré, bateu em uma árvore e não conseguia descer. Nervoso de tanto esperar por socorro, resolveu usar um cipó que não chegou ao chão. E lá ficou ele, dependurado na árvore. Não podia pular pela altura e, muito gordo, não conseguia subir novamente. O recurso foi gritar, e com vontade, até ser ouvido. Novamente os garimpeiros apareceram. Há muitas e muitas histórias interessantes em relação à aviação no garimpo, fatos que todos de lá encaram de forma singular na construção de várias lendas.
No aeroporto de Itaituba, um pouso ficou para a história da aviação. Um dos nossos aviões, pilotado pelo experiente Lioto. Após o pouso, de repente ele viu uma roda entrando pelo para- brisa. Ele não entendeu o que estava acontecendo. Um avião pousara sobre ele. O mais surpreendente foi o fato de nenhum dos dois se quebrar com o choque. A fotografia está no aeroporto do lugar. Foi mais difícil tirar um de cima do outro do que propriamente fazer a “monta”. Esse acavalamento ou acasalamento de aviões em pleno chão tornou-se uma das grandes páginas da aviação no norte. As fotos correram o mundo.
O Brasil não se lembrava da Amazônia e, por vaidade de alguns militares no poder, decidiram que o país necessitava de uma fábrica de avião, os Piper. Isso contrariava a tudo e todos. A frota da Amazônia era quase toda Cessna e uma pequena parte Bechcraft. Como éramos impedidos de importar novos Cessna, nossa ferramenta de trabalho ficou discriminada e abandonada à própria sorte e uso. A mais velha frota do mundo em trabalho
pesado.
Em 1981, realizei o antigo sonho de visitar a fábrica dos Cessna. Enquanto conhecia como se fabricavam os aviões nos quais tanto confiávamos, dois desses 210 caíram na Amazônia por soltarem as asas.
Outro 210 foi o centro das atenções no garimpo chamado Mundo Novo, através de um fato insólito e hilário. Wílson pousou com excesso de peso na pequena pista depois de uma chuva torrencial. Não deu outra: o avião atolou. Um dos recursos que usávamos nesses casos era alguém sentar-se na cauda para aliviar o peso da bequilha, a roda da frente. Então girávamos as rodas de trás, desatolando a aeronave.
Ele adotou o procedimento comum. Descarregou o avião, um homem sentou-se na cauda segurando-se na deriva. Acelerou bem devagar e saiu do atoleiro. Seguiu na direção da cantina que ficava no princípio da pista. Sem sair do avião, resolveu decolar, e deixar para a segunda viagem seu acerto com o dono da carga. Assim que alcançou velocidade de arremesso, percebeu que o avião estranhamente começava a entortar a direção e a vibrar. Não podia mais abortar a decolagem por ser uma pista de “caixão”, com árvores altas nas cabeceiras e dos lados.
O avião continuava vibrando e não aceitando velocidades inferiores a cento e quinze milhas, como também acima de cento e trinta ou cento quarenta. Ficou naquele meio-termo e adernando para a direita. Wilson começou a chamar pelo rádio, prevendo o pior.
Outros aviões foram se aproximando dele, procurando ver o que acontecera externamente. Estupefatos, logo notaram que havia um cara barbudo sentado na cauda e lhe comunicaram o fato. Não conseguindo acreditar, Wilson mais nervoso ficou por achar que os colegas estavam brincando com ele em hora tão aflitiva.
Resolveu olhar e, estarrecido, viu um barbudo sentado lá, com as pernas dobradas para trás, o braço encaixado na deriva, bem agarrado. A força do vento açoitava as narinas do “carona”, fazendo-o ficar com bochechas de palhaço e os olhos fechados. Sem entrar em pânico, decidiu não transpor a selva bruta. Começou a rodar por ali e chegar à pista mais próxima, a oito minutos, perto do Rio Novo. Voaria em cima da parte mais profunda do rio, na menor velocidade possível. Agoniado, fazia sinal para o homem pular na água. E o barbudo, mal se aguentando, levantava o dedinho sinalizando “não”. Com tantos outros aviões circulando à sua volta, Wílson foi se acalmando.
Com o centro de gravidade do avião totalmente deslocado, cruzou o matão bruto até a pista do Armando, pois
nela poderia entrar mais veloz e, talvez, pousar, por ser muito comprida. Seria uma novidade na aviação. Evidentemente, se ele reduzisse muito a velocidade, a cauda, excessivamente pesada, chegaria pousando primeiro que as rodas. Um espetáculo dantesco: o avião com o nariz lá em cima e o cara sentado atrás.
Se muito veloz, vararia a pista e iria mato adentro. Merda do mesmo jeito.
Conseguiu posar com sucesso, apoiado pela grande torcida. Quando Wilson parou e desceu do avião, o barbudo pulou rápido no chão. Todos preocupados, pensando que ele estava traumatizado, e o vagabundo a gritar que era o Barba de Aço, e queria um gole da pinga boa. Falara que voaria naquele troço de qualquer maneira, e voara. Dali para frente, avião que não o coubesse dentro, iria levá-lo no rabo ventoso.
Wilson, aviador experiente, respeitadíssimo por todos na área do Rio Tapajós, recém-saído daquela situação de alto risco, com raiva, afirmava que naquela aviação irresponsável não voaria mais. Decolou para Itaituba, juntou seus panos de bunda e tomou o rumo de São Paulo. Foi mexer com aviação agrícola, onde ele próprio comprava e experimentava os aviões. Lamentavelmente, sua história não teve final feliz.
Contei esse caso na fábrica da Cessna, e não acreditaram. O engenheiro que desenvolveu o 210 apertou um bocado de botões na maquininha de cálculo ultrassofisticada com senos e cossenos e deu o veredito: o avião não voaria com ninguém sentado ali atrás, muito menos conseguiria pousar. Teimei e afirmei haver testemunhas às pencas. Minhas “mentiras” foram extremamente eficientes e suficientes para que ávidos, rapidamente os homens da Cessna decidissem vir para cá. Estavam animados e curiosos sobre os pilotos e a operação da frota na Amazônia. Tive o prazer de voar com os engenheiros americanos que construíram os modelos 206 e 210.
Fiz com eles o primeiro pouso no meu garimpo Rosa de Maio. Sabia que go ahead significa arremeter. Quando entrei para pousar e um dos engenheiros percebeu que a pista subia um morro, descia, e subia de novo, não tendo mais de quatrocentos metros, começou a berrar em total desespero “go ahead”, “go ahead”.
Eu fingindo não entender, ele, a um segundo de um enfarte, repetia “go ahead”. Pousei, desliguei o motor e calmamente perguntei-lhe que diabo de histeria era “go ahead”.
Voamos em seguida para o outro garimpo chamado Mundico.
No período da estada deles na Amazônia, tínhamos uma fofoca, grande movimentação que se faz ao descobrir nova jazida. Estava correndo muito ouro lá para as bandas do Mundico Coelho e a pequena pista de pouso recebeu o nome do dono. A frequência de voo era muito alta. Todo mundo ia chegando, parando, esperando passageiro, dirigindo-se sempre para a cabeceira no fim da pista. A área de operação encolhia-se rapidamente e nós lá, no meio daquilo, com o pessoal da Cessna. Eu, muito sabidamente, decidi ficar no meio da pista. Enfiei o rabo do meu avião no mato, com a cara de frente para a pista, assim não atrapalharia a movimentação. De repente desce um
180, daqueles convencionais, rodinha atrás, pilotado por um velho amigo nosso. Ao tocar o chão, percebeu não ter pista para parar. Ele virou, atravessou o armazém e entrou cantina adentro, arrebentando-a com a asa. Os americanos apavorados já queriam ir embora, inconformados com a situação. Afirmavam não haver projetado aviões para aquela situação. Os monomotores 210 eram aviões resistentes de baixo custo para o transporte de passageiros. Não foram feitos para aquela situação.
Mais inconformados ficaram quando lhes afirmei serem eles para nós instrumentos de trabalho, verdadeiros burros de carga. Saco e gente eram no chão do avião, nem banco usávamos.
Nem bem acabara de falar, aponta roncando no horizonte um dos famosos Piper da Embraer e entra com velocidade total. Adverti-lhes que o cara não conseguiria parar e não haveria arremetida, ia dar merda. Ele iria montar naqueles aviões todos lá no fundo. O estrago ficou bem maior quando o piloto, na tentativa de arremeter, imprimiu velocidade e simplesmente deixou o avião virar e ruidosamente espatifar-se em cima de quatro Cessna estacionados. O resultado foi muito estrago, poucos machucados, nenhum morto. Passado o susto e a ameaça à segurança pessoal, os americanos achegaram-se aos destroços. Ouvi Mr. Garrison, o vice-presidente internacional da Cessna comentar baixinho, com muita ironia, ser aquela a única maneira de a Piper vencer e parar um avião Cessna: caindo em cima dele.
Resolvemos coroar a visita com um encontro dos projetistas da Cessna e os pilotos de garimpo em um hangar, na cidade de Itaituba. Também presente o major Renílson, do Serac, Serviço Regional de Aviação Civil, de Belém. Os engenheiros explicavam qual é o peso que se deve levar nos aviões, como eles foram construídos, a relação com a aerodinâmica.
Tentávamos traduzir razoavelmente para a pilotada, até que Papagaio, piloto de uma família ao qual todos tinham apelido de ave e lamentavelmente morreram em acidentes com avião, tomou a palavra. Disse para o major Renílson que aquele cara não entendia do 206 e do Skylane. Paramos de traduzir.
“Esse cara”, a quem ele se referia, era o engenheiro que projetara e fizera o avião. E Papagaio continuou dizendo que nós conhecíamos muito mais aquele avião. Transformou sua fala em aula de aviação. O major Renílson rapidamente deu a reunião por encerrada, afirmando que esse Zé Altino ao organizar aquele encontro, criara uma impossibilidade e um impasse. Se os pilotos estavam dizendo que entendiam mais do que o construtor do avião, não havia motivos para continuar com aquela merda de reunião. Era a hora de comemorar tomando umas cervejas.
Assim fechamos o capítulo da visita da Cessna à Amazônia. Na época a presença deles não nos envaideceu. Depois, com o passar dos anos constatamos que lhes devíamos ser gratos. A aviação da Amazônia entrou para as boas páginas da Cessna e passou a merecer da empresa respeito até internacional.
Olhavam-nos com grande admiração e espanto por utilizarmos o produto deles naquelas condições de trabalho, inteiramente fora de qualquer padrão operacional. Dessa data em diante, a Cessna divulgou a verdadeira aviação de garimpo pelo mundo afora. Não éramos heróis, nem assim por eles considerados, mas simperfeitos e eficientes usuários daqueles aviões.
*José Altino Machado é jornalista