02-02-2025 às 18h18
José Luiz Borges Horta*
Em 15 de janeiro de 1985, quarenta anos atrás, o Brasil ensaiava uma importante reconciliação consigo mesmo. Abria-se, naquela data cívica, no Colégio Eleitoral que elegia Tancredo Neves como o primeiro presidente civil eleito no Brasil desde a eleição do Marechal Humberto de Alencar Castello Branco, em 11 de abril de 1964, uma longuíssima transição, talvez ainda hoje inacabada, de um regime de exceção militar, ou de uma ditadura civil-militar, a uma verdadeira Democracia Constitucional, para usar expressão de fôlego preferida pelo Professor Raoni Bielschowsky.
Em 1964, o Congresso Nacional elegera o Marechal Castello Branco com 361 (trezentos e sessenta e um) votos contra três votos dados ao General (e tenente em 1922) Juarez Távora e dois votos dados ao Marechal Eurico Gaspar Dutra, que presidira o Brasil na alvorada da “Experiência Democrática” (1945-1964) que então se encerrava. 72 (setenta e duas) abstenções e 37 (trinta e sete) ausências se registravam em 1964, mas não as de Juscelino Kubitschek de Oliveira e de seu grupo político, a quem coubera indicar o Vice-Presidente — o sempre associado José Maria Alkmin, primo e Ministro da Fazenda de JK e então eleito com 256 (duzentos e cinquenta e seis) votos.
Castello e Alkmin governariam de 15 de abril de 1964 a 31 de janeiro de 1966, ocasião da posse do novo presidente eleito diretamente — mas o abominável e ditatorial Ato Institucional Número Dois (AI-2), baixado pelo regime militar em 27 de outubro de 1965, extinguiu de vez a chama democrática e prorrogou seus mandatos até 15 de março de 1967. Castello, é sempre curioso lembrar, morreu em um espantoso acidente aéreo causado por um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) nos conturbados e ultracongestionados céus de seu Ceará natal, a 18 de julho de 1967, quatro meses depois de deixar a Presidência, quando em viagem a Fortaleza para visitar a escritora Raquel de Queirós. (O acidente, inexplicado e recalcadíssimo na história política brasileira, antecedeu em exatos dezessete meses ao também abominável e ditatorial Ato Institucional Número Cinco, o AI-5, datado de 13 de dezembro de 1968.)
No Brasil de 1985, no entanto, sonhava-se com a transferência do poder militar, exercido assim entre 1964 e 1985, ao poder civil, e o país dava inequívocos sinais de haver renovado sua própria esperança em si e em seu futuro. Várias figuras políticas se agigantaram, é preciso reconhecer, naqueles tempos tão significativos: entre elas, inúmeros mineiros, os quais arquitetaram com riqueza de detalhes a transição, além do paulista Ulysses Guimarães, do maranhense José Sarney e do hábil paraibano, parlamentar por Pernambuco e prócer na política nacional, Thales Ramalho.
Ulysses Guimarães, Professor Titular de Direito Internacional Público na Universidade Presbiteriana Mackenzie, fora parlamentar do antigo PSD (extinto pelo abominável AI-2), pelo qual fora Ministro de Estado no gabinete Tancredo Neves (Primeiro-Ministro de 8 de setembro de 1961 a 12 de julho de 1962) e firme apoiador do Movimento de 1964. Em 1965, com o AI-2, afastou-se do regime, tornando-se a mais importante figura histórica do Movimento Democrático Brasileiro (o MDB), criado para abrigar os dissidentes do regime.
Ulysses foi deputado federal por São Paulo entre 1951 e 1992, exercendo onze mandatos sucessivos, nos quais presidiu a Câmara dos Deputados, por três vezes, e a Assembléia Nacional Constituinte de 1987-8. Candidatou-se à presidência da República em 1973, em anticandidatura cívica, e em 1989, já no ocaso de seu papel como timoneiro da redemocratização. Foi o maior líder parlamentar e partidário do MDB, que presidiu a partir de 1972, com poucos períodos de alternância. Ulysses equilibrava-se entre os autênticos, que tal como os históricos da Velha UDN (também abominavelmente extinta pelo AI-2) buscavam bravamente a retomada do Estado de Direito, e os moderados, que seguiam o padrão acomodatício da Bossa Nova udenista e do Velho PSD.
Os autênticos convenceram Ulysses a anticandidatar-se, em 1973, o que trouxe ao MDB a estrondosa vitória nas eleições senatoriais de 1974 — que Sebastião Nery publicou como As 16 Derrotas que Abalaram o Brasil —, nas quais o MDB elegeu os senadores de todos os estados do Sul e do Sudeste, além de boa parte do Nordeste e até do Norte.
O mecanismo das eleições indiretas nos estados garantiu à ARENA a eleição de todos os governadores (como Aureliano Chaves, em MG, Faria Lima, no RJ, Paulo Egídio, em SP, Moura Cavalcanti, em PE), mas as eleições diretas para um terço do Senado lhes foram devastadoras. Ingressaram na Câmara Alta em 1974: Itamar Franco, por MG, Orestes Quércia, por SP, Paulo Brossard, pelo RS, Saturnino Braga, pelo RJ, Marcos Freire, por PE, Mauro Benevides, pelo CE, entre outros emedebistas. Pela ARENA, por sua vez, elegiam-se homens que teriam papel de relevo na redemocratização: Jarbas Passarinho, pelo PA, Teotônio Vilela, por AL, Petrônio Portella, pelo PI.
O MDB ganharia no Estado da Guanabara (antiga Capital, antigo Distrito Federal), elegendo o Senador Danton Jobim, o que terá causado a estapafúrdia fusão entre a Guanabara e o Rio de Janeiro, por meio da Lei Complementar n. 20, de 1º de julho de 1974, que amontoou os dois estados a partir de 15.03.1975 (e eis a origem de todos os males cariocas).
O simbolismo daquelas vitórias senatoriais terá levado o MDB a, equivocadamente, apostar em uma transição pela via de Diretas para Presidente, ao invés da via augusta do sistema parlamentar de governo (toda democracia verdadeira é uma Democracia Parlamentar, como lembra, por todos nós, o Prof. Eduardo Carone Costa Jr).
Com a abertura e a Anistia, o modelo desenhado pelo General Golbery do Couto e Silva para a repartidarização do Brasil acabou por fraturar o MDB, com a saída de boa parte dos moderados para seguirem a liderança do Senador Tancredo Neves na fundação do Partido Popular junto aos liberais da ARENA que seguiam a liderança de Magalhães Pinto, da UDN de Minas, e Petrônio Portella, da UDN do Piauí, então ex-Presidentes do Senado Federal: Tancredo foi o Presidente do fugaz partido, Magalhães o Presidente de honra e Portella a alma e acrônimo do mesmo, PP, Petrônio Portella. (O atual PP, Partido Progressista, ou Progressistas, embora herdeiro direto da Arena e de seu sucedâneo, o Partido Democrático Social, PDS, é liderado pelo hábil Senador Ciro Nogueira, também do Piauí e, não por acaso, casado com a neta de Petrônio Portella).
É notável, aqui como em tantos outros momentos, o protagonismo do Senado na política nacional: entre os senadores Tancredo Neves, Magalhães Pinto e Petrônio Portella lançava-se o real futuro da democratização brasileira, e um dos três, a prosperar a transição lentamente decantada pelo Senado, seria o primeiro Presidente civil em duas décadas.
Em menos de um ano, no entanto, o PMDB reincorporaria o PP, acrescido de parte dos liberais da ARENA, já em realinhamento. Todos esses processos somente fizeram fortalecer a Ulysses, em 1984 confundido com o próprio movimento de transição: ele era agora o Senhor Diretas. Mas, em que pese a imensa mobilização popular em defesa da aprovação da Proposta de Emenda constitucional n. 05, de 1983, a chamada Emenda Dante de Oliveira — levava o nome do jovem Deputado Federal peemedebista, egresso das fileiras do MR-8 e depois prefeito de Cuiabá e Governador do Mato Grosso (pelo PSDB) —, em abril de 1984 as “Diretas Já”, derrotadas na Câmara dos Deputados, começariam a dar espaço ao “Muda, Brasil! — Tancredo Já!”, nova estratégia de transição à democracia, agora pela via da vitória no Colégio Eleitoral indireto e da convocação subsequente da reconstitucionalização do Brasil.
A memória da luta popular pelas Diretas segue ainda viva no imaginário nacional, e como sabemos, somente na luta em defesa dos impeachments de Fernando Collor, em 1992, e Dilma Roussef, em 2016, o Brasil viveria mobilizações populares de tamanha magnitude (e vários de nós nos arrependemos ao menos de uma das três batalhas, e não raro de todas as três).
As forças que a história incumbiria de conduzir o processo de transição do poder militar ao poder civil foram consubstanciadas na chamada Aliança Democrática, cujas origens repousam na Aliança de Minas, e desta na criação do fugaz PP. Falecendo Petrônio Portella em janeiro de 1980, caberia a Tancredo e a Magalhães liderarem a transição; em Minas, o PSD não os acompanharia de todo, graças à intervenção de Golbery, que viabilizou a nomeação para o Ministério da Justiça do Deputado Federal por Minas Gerais, Ibrahim Abi-Ackel — dos melhores oradores da política mineira, em todos os tempos, aliás —, mantendo no novo PDS o Ministro Abi-Ackel e seu grupo político, fortíssimo na Zona da Mata mineira, integrado por políticos do porte de Pio Canêdo, vice-governador no mandato Israel Pinheiro, e Biazinho (Chrispim Jacques Bias Fortes Neto), que encerraria a vida pública como candidato derrotado a vice-governador na chapa de Eliseu Resende, logo em 1982.
Em Minas, era antiga a tentativa de unir a Bossa Nova udenista, ala mais flexível ideologicamente da UDN, que havia se deslocado, sob a liderança de Magalhães Pinto, para a ARENA, com alas mais maleáveis do Velho PSD, parte delas galvanizando então o MDB moderado. Com a manutenção do grupo de Abi-Ackel e Pio Canedo no PDS, que Biazinho viria a presidir em Minas, a Bossa Nova de Magalhães cresceria em peso e influência no PP e nos movimentos de Tancredo.
Na virada de 1979 para 1980, os senadores Magalhães Pinto e Tancredo Neves, que se haviam enfrentado pelo Governo de Minas em 1960, com a vitória de Magalhães, depois conclamado Chefe Civil da Revolução (sic) de 1964, se unem e criam o PP, cujo Presidente nacional seria Tancredo e cujo Presidente em Minas seria Hélio de Carvalho Garcia, desde o início dos anos 1960 um jovem político — primeiro da UDN de Magalhães, depois da ARENA, agora do PP — fortemente preferido por Magalhães, que o fez líder de seu governo na Assembleia já em seu primeiro mandato parlamentar.
Na incorporação do PP pelo PMDB — ou vice-versa, como registra o Prof. Paulo Roberto Cardoso —, para as eleições de 1982, Hélio Garcia acompanharia Tancredo ao PMDB e, eleitos, Tancredo Governador e Hélio Vice (derrotando Eliseu Resende e Biazinho, candidatos do PDS), estruturaram o primeiro pacto de convivência das lideranças mineiras. Tancredo e Hélio, PSD e UDN, MDB e ARENA, agora estavam juntos e buscavam representar Minas, mediante o Acordo de Minas, com que abriram espaço no Governo do Estado aos agora pedessistas (a ARENA se fizera substituir pelo Partido Democrático Social, o PDS) ligados ao ex-governador de Minas, vice-Presidente da República e político muito próximo ao então ex-Presidente Ernesto Geisel, Antônio Aureliano Chaves de Mendonça.
Aureliano, vale dizer, vinha da UDN e da ARENA, mas somente chegara ao Governo de Minas (1975-1978) e depois à Vice-Presidência (1979-1985) em decorrência de sua firme conexão com o Gal. Geisel — Magalhães Pinto até tentara ser o companheiro de chapa de Figueiredo, mas como Presidente, alegando sua condição de chefe civil da Revolução (sic) e mencionando que em Copacabana já se preparavam para a campanha, ao menos na Rua Figueiredo Magalhães, que bastaria mudar “de mão”.
Unidos em Minas, Tancredo e Aureliano, como as maiores figuras do estado de então, levariam o Acordo de Minas ao plano nacional tão logo viabilizou-se a fundação de uma Frente Liberal no PDS — criada em 1984 exatamente no entorno de Aureliano, como de Marco Maciel (PE), Jorge Bornhausen (SC), José Sarney (MA) e Guilherme Palmeira (AL). Sarney e Bornhausen renunciaram à presidência e à vice-presidência nacional do PDS e Sarney filiou-se ao PMDB, compondo a chapa da Aliança Democrática que, em sua origem, portanto, representa a unidade entre o PMDB e a Frente Liberal (logo depois PFL, em décadas Democratas – DEM, e hoje União Brasil).
É curioso anotar que tanto Magalhães, nos anos 1960, quanto Tancredo, nos anos 1980, estruturaram seus governos estaduais a partir dos célebres Critérios de Convivência, estruturados e publicados pelo líder político do Partido Republicano (o PR, que reunia os bernardistas de Minas) Geraldo Paulino Santanna, prefeito de Salinas, deputado estadual em vários mandatos e gestor público ou colaborador direto nos governos estaduais de Bias Fortes (1956-1960), Magalhães Pinto (1961-1966), Israel Pinheiro (1966-1971), Rondon Pacheco (1971-1975), Aureliano Chaves (1975-1978), Francelino Pereira (1979-1983), Tancredo Neves (1983-1984), Hélio Garcia (1984-1987), Newton Cardoso (1987-1991), Hélio Garcia (1992-1996), Eduardo Azeredo (1996-1999) e Itamar Franco (1999-2000) — é saborosíssimo o resgate feito pelo próprio Geraldo Santanna em seu “O Caminho de Volta; ou A travessia do deserto”.
Também é imperativo registrar o papel de distinto relevo do Deputado Federal Thales Ramalho, do MDB de Pernambuco, na composição e consolidação dos dificílimos pactos políticos de convivência necessários a uma lenta e agônica transição rumo ao poder civil. Dentro do MDB, como seu Secretário-Geral por uma década, Thales havia sido o ponto de equilíbrio entre Ulysses e Tancredo; no âmbito da montagem da Aliança Democrática, mais uma vez, sua habilidade em costuras políticas foi novamente significativa — político do Velho PSD, com longa trajetória no MDB e fundador do PP, na incorporação do PP ao PMDB Thales transferiu-se, com Magalhães, para o PDS, mantendo-se um interlocutor leal a Tancredo, agora no PDS. Thales e Magalhães, no Colégio Eleitoral, votariam em Tancredo e em seu Vice, José Sarney.
As forças da Aliança Democrática (PMDB-PFL) venceram no Colégio Eleitoral de 15 de janeiro de 1985, no qual a chapa Tancredo-Sarney obteve 480 (quatrocentos e oitenta) votos contra 180 (cento e oitenta) votos dados à chapa do então PDS, de Paulo Maluf (que havia sido prefeito e governador de São Paulo) e Flávio Marcílio (parlamentar nascido no Piauí, primo de Petrônio, mas com carreira política no Ceará, por onde foi parlamentar, vice-governador e governador, pelo velho PTB getulista, e depois pela Arena e pelo PDS, chegando mesmo a presidir a Câmara dos Deputados — inclusive por ocasião da rejeição da Emenda das Diretas, em 1984), além de 26 (vinte e seis) abstenções. O Colégio Eleitoral era composto não somente pelo Congresso Nacional (senadores e deputados federais), mas também por seis representantes titulares eleitos pela bancada majoritária em cada Assembleia Legislativa estadual (segundo a pitoresca Lei complementar n. 15, de 1973).
As forças vitoriosas em 15 de janeiro de 1985 foram depois amplamente hegemônicas no seio da Constituinte e nos anos iniciais da chamada Nova República: Considerada a soma dos deputados e senadores, uma vez que a Constituinte não os separava, a Assembléia continha 559 (quinhentos e cinquenta e nove) membros, dos quais o PMDB detinha 303 (trezentos e três) cadeiras e o PFL, 130 (cento e trinta). Como nenhuma outra bancada chegava a 50 (cinquenta) cadeiras, a Constituição seria escrita pela Aliança Democrática, em hegemonia absoluta.
A par dos profundos conflitos, muitos deles públicos e enunciados em discursos de imensa importância histórica, entre o líder maior do Parlamento e da Constituinte, Ulysses Guimarães, e o afinal Presidente da República José Sarney, a imagem da Constituinte e da Constituição emergiram no 05 de outubro de 1988 como imensamente positivas, alvissareiras e plenas de esperanças.
Os píncaros de poder e de glória de Ulysses confundem-se com a Constituinte, em que era tri-presidente, para desespero do Presidente José Sarney: Ulysses presidia simultaneamente o PMDB, que elegera em 1986 todos os governadores de estado (menos o de Sergipe), a Câmara dos Deputados, em que o PMDB detinha 260 (duzentos e sessenta) cadeiras das 487 (quatrocentas e oitenta e sete), e a Constituinte, em que o Senado também participava com os 47 (quarenta e sete) senadores do PMDB em 72 (setenta e duas) cadeiras.
O triunfo do PMDB na transição e na Constituinte é o da Aliança Democrática no Colégio Eleitoral e nas eleições para a Constituinte, mas simboliza fundamentalmente a vitória do modo mineiro de fazer política, no qual adversários, mesmo de longa data e vasta tradição, se reúnem em nome de valores maiores. Ulysses, e em alguma medida, Sarney, operaram juntos a transição “democrática” graças ao Acordo de Minas de Tancredo e Magalhães, como de Aureliano e Geraldo Santanna, habilmente costurado por raposas cujos valores sempre estiveram acima de todos os cargos — por isso, nas horas decisivas, souberam construir pactos e critérios de convivência, que impedissem a paralisia política, a radicalização desmedida e a inépcia dos irresponsáveis. Minas sempre soube confabular utopias — talvez somente precisemos nos recordar de nós mesmos.
* José Luiz Borges Horta, 54, é Professor Titular de Teoria do Estado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e mineiro nascido na Capital de todos os mineiros. Coordena na UFMG o Grupo internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado e o Grupo de Pesquisa dos Seminários Hegelianos. Professor Visitante na Universitat de Barcelona, é membro da Sociedade Hegel Brasileira e do Centro de Excelência Jean Monnet em Estudos Europeus. Contato: zeluiz@ufmg.br