Desde fevereiro de 2018, ele integra o Conselho Editorial do Jornal do Brasil. Está combinado que, todo sábado, a partir deste, 25 de janeiro, o Diário de Minas publicará crônicas do seu livro
25-01-2025 às 08h15
Direto da Redação
“Á margem do Paraibuna” é o título do livro de crônicas de Wilson Cid. Ele é jornalista de cepa e escritor. Nasceu fluminense, de Três Rios, mas logo absorveu a alma de juizforano a partir de quando a família se mudou para Juiz de Fora, em 1947. Dez anos depois, ele iniciava como locutor, noticiarista e produtor na rádio Difusora e Industrial. Atuou em várias emissoras em Belo Horizonte e no Diário Mercantil, além de outros jornais mineiros e cariocas. Ativo, com mais de meio século em atividade, ele divide o seu tempo entre a imprensa e estudos sobre a história de Juiz de Fora. Desde fevereiro de 2018, integra o Conselho Editorial do Jornal do Brasil. Está combinado que, todo sábado, a partir deste, 25 de janeiro, o Diário de Minas publicará crônicas por ele assinadas extraídas do livro “Á margem do Paraibuna”. Eis a primeira leva:
ACETADA ETNIA DOS ITALIANOS
Etnia, qualquer que seja a definição que os mestres lhe emprestem, acaba sendo mesmo, simplesmente, isto que podemos sentir no convívio com os estrangeiros: o patrimônio que determinado povo constrói, tendo como ingredientes, em doses alternadas, a cultura, os hábitos do cotidiano, os traços genéticos, o caldo das experiências históricas, os pendores para as artes. Tudo isto e mais o jeito de ser, de falar, de agir. Com tão farta composição de elementos uniformes, percebe-se que raros são os povos que puderam organizar uma etnia tão rica. Riquíssima, no caso dos italianos. Todos? Se não todos, pelo menos os que vieram conviver conosco este vale do Paraibuna, em cujas margens fincaram marcas indeléveis, e nas ruas de cada bairro o sinal dos seus passos continuados, que rompem as manhas rumo ao trabalho.
Em outubro de 2015, a convite do superintendente da Fundação Alfredo Ferreira Lage, Toninho Dutra, à frente de uma equipe, fomos ajudar a colher depoimentos sobre aspectos étnicos que italianos de ontem e seus continuadores de hoje legaram a Juiz de Fora dos nossos dias. Em especial da Calábria, pois calabresa é a maioria dos que aqui aportaram e escolheram a cidade para reorganizar a vida e construir descendências, distantes de uma pátria onde as incertezas eram muitas.
Digamos, com base em tudo que se ouve e que se sabe, que não há quem não seja capaz de identificar um deles, ainda sem conhecê-lo formalmente. Mas como? Na verdade, basta um elemento, o primeiro deles, espontâneo e invulgar: o temperamento apaixonado pelas coisas, o sêmen dadivoso que inoculou a sua etnia. Então, venham de que aldeia vieram, seja em que tempo for, eles logo se apaixonam pelo que fazem. Às vezes, suaves, alegres e a ternura em muitos; em outras, quentes e vulcânicos. Capazes de atitudes que saltam de um polo a outro em um átimo; por exemplo, da dor à alegria, mas sem que em um caso ou no outro dispensem, para argumentar, os gestos largos dos braços que se debatem no ar. Comunicam-se teatralmente. Gestuais. Nasceram atores. Quem seria capaz de negá-lo?
Românticos. Já foi assim o segundo deles entre nós, que aqui aportou quando o século 19 morria no horizonte e no tempo, encontrando no Alto dos Passos, em 1870, o primeiro, Antonio Caiaffa, solitário bandeirante que comandava armazém de secos e molhados. O segundo foi Giuseppe Antonio Picorelli, o encarregado de acender os lampiões de nossas ruas; lampiões que foram a véspera das lâmpadas de Bernardo Mascarenhas. O contrato que Picorelli celebrou com a Câmara para a prestação desse serviço ele próprio redigiu, com a alma de quem parecia menestrel sonhador. Competia-lhe então “conservar acesos os lampiões em todas as noites que não forem de luar, mesmo nas noites de luar enquanto a mesma lua não clarear, e assim mantê-los até o dia raiar”. Para essa tarefa ganhava 4 contos de réis por ano. Esse noturno Picorelli, houve quem dissesse, percorria solene e gentilhomem a Rua Direita, como se andasse na orla de Nápoles ou gondoleiro de pés enxutos num canal imaginário. Querem coisa mais itálica do que isso?
O historiador e jornalista Julio Vanni, falecido há dois anos, entendia que é impossível a um italiano passar pela vida sem deixar marcar indeléveis de suas paixões. Para ele, que não se referia especificamente a Picorelli, não haveriam de ser diferentes aqui os paisanos, eis que são assim em qualquer parte do mundo. Vanni tinha autoridade para dizê-lo. Sempre festejadíssimo em Lucca, de onde voltava cada vez mais italiano para cultivar os valores de sua gente, como quem, cultiva uma árvore generosa e frondosa.
Outro componente característico é a disposição para o trabalho; mais que disposição, um fervor, certa obstinação que jamais esbarra em preconceitos. Não tem medo do trabalho. E é verdade. Vejamos o caso dos jornaleiros, atividade que eles absorveram largamente desde sua chegada. Nossas bancas de jornais dão a parecer que são pedaços minúsculos da Itália. Tanto assim, que foram poucos os brasileiros e outros nacionais que ousaram demovê-los dessa preferência, árdua, nada fácil, numa jornada que já começa com o despertar das madrugadas. Antes das bancas, nossos italianos exercitavam cansativas caminhadas sob cargas pesadas.
Os juiz-foranos que foram os meninos dos anos 40 e 50, ávidos pelos almanaques do Tico-Tico, Gibi e Durango Kid, avistavam, ao longe, o velho Ercole Caruso caminhando, ofegante, pelo Morro da Glória, com algumas dezenas de revistas e jornais sustentados por largas correias de couro, que pendiam do pescoço e terminavam no braço esquerdo. Isso anos a fio, a coluna cervical irremediavelmente condenada. Pois, com um sotaque desinteressado em se fazer menos compreendido, Caruso caminhava e apregoava o que tinha. O que mais vendia, além do Jornal das Moças, era mesmo a revista dos heróis infantis Bolão, Azeitona e Reco-Reco. E partia, sem apregoar a Fanfula, quando a Itália não andasse bem nos campos de batalha…
A família, obra solidária
Das famílias desses imigrantes originam-se duas atividades que cabe analisar, pelos valores de cada uma delas ou pelo que produziam quando unidas. O trabalho e a preocupação com a mútua solidariedade.
Foi no comércio e na indústria (em destaque a alimentícia) em que mais se destacaram, considerando-se as atividades econômicas. Muito do que aqui se fez no século passado e em alguns anos do anterior revela saliente a mão italiana. Não há setor de venda ou produção em que ela não tenha presença cativa.
A partir da família, distribuíam-se serviços e tarefas entre pais e filhos, o que, aliás, é algo sempre presente na vivência dos estrangeiros que se aglutinaram em Juiz de Fora. A loja e a fábrica eram questão de família, de pai para filho. Herança dos “capi”. E começavam cedo, como o velho Domenico Sirimarco, que chegou com apenas 15 anos, pelas mãos de Pantaleone Arcuri.
Quando os italianos foram enfrentar os tormentos da Hospedaria dos Imigrantes, em Santa Terezinha, em 1889, a cidade já conhecida alguns patrícios, respeitáveis chefes de família, com sobrenomes que venceram o tempo e se perpetuaram em atividades diversificadas. Dessa época ou dos anos imediatamente seguintes: Condutti, Corriei, Arcuri, Tutela, Sirimarco, Grippe, Passarela, Colucci, Nardelli, Turola, Ciampi, Serpa, Saggioro, Altomar, Scanapieco. E Perry, que construiu o Mercado Municipal; comendador Francesco Brandi, que, em 1881, iniciou os serviços de bonde; Ivo Perini, com sua fábrica de instrumentos musicais; Eugenio Cavagnero, pioneiro dos “carros de praça”, antecessores dos táxis de hoje; Bigio de Giacomo, um dos primeiros hoteleiros; Pantaleone, Spinelli e Timponi, que organizaram aqui a maior construtora de Minas.
Seus vizinhos brasileiros podem lembrar, ainda hoje, alguma coisa do cotidiano das famílias italianas em casa, da mesma forma como têm na memória as generosas panelas do macarrão obrigatório das quintas-feiras e dos domingos, muitas vezes convidados comensais. Com o relato de contemporâneos, sabe-se que no trabalho do dia ou nas tertúlias das noites e dos domingos é que nascia outra marca que saltou para o tempo, ajudando a compor o coletivo da imigração e a biografia individual dessa gente. A solidariedade. Se está em questão a radiografia do potencial étnico de sua gente, não é permitido olvidar as preocupações com a benemerência, aquele sentimento prevalente que iria inspirar a Casa de Anita e a Casa D’Italia, ambas essas entidades com as atenções divididas entre assistência e iniciativas culturais. Mas sempre a preocupação com o outro. “Uei paisano, como stá?”
À moda da casa
Quem primeiro cuidou de analisar a influência dessa etnia nos diversos campos da atividade humana em Juiz de Fora foi Paulino de Oliveira. Falando, em 1962, na Casa D’Italia, a convite da professora Iris Maestrini, não se fez de rogado para dizer que, sem desconsiderar a importância dos germânicos, foram os italianos que, na verdade, mais contribuíram na vida municipal. Pautou-se o historiador no fato de que os imigrantes germânicos se concentraram mais na Colônia de São Pedro, enquanto os italianos optaram logo pelo Centro, dedicando-se, como se informou, aos estabelecimentos industriais e comerciais. A conclusão de Paulino era que na Colônia de São Pedro, havia tradição enraizada, enquanto os outros privilegiaram mais o arrojo e a espontaneidade que carregavam na sua bagagem cultural.
Valeu-se também, naquela palestra, que não passou sem contestações, de um censo de 1893, realizado por Estêvam de Oliveira, ano em que Juiz de Fora (a cidade, não o município) tinha 2.276 estrangeiros, sendo mais da metade – 1.197 – italiana. O número é mais que expressivo.
Sendo de Salermo ou da Calábria, da mesma forma como vieram, continuou correndo na veia desses imigrantes, e depois em suas descendências, o sangue comum. E por mais que diversificassem e distanciassem suas atividades, separações ampliadas pelos casamentos, a organização doméstica resistia, sob a proteção de foros quase sagrados. Os almoços de Natal, por exemplo, motivavam não só a celebração de uma das duas maiores festas da Cristandade, mas também a união da família. Na casa que fosse maior ou de acesso mais fácil a todos, pais, filhos, netos, esposos e outros parentes se juntavam. A cada célula cabia participar com um prato, mas dessa vez não apenas a tradição das macarronadas dos ajantarados. Havia sempre algo especial. A alegre comemoração o exigia.
Vale notar que jamais criaram resistências ao cardápio local, absorvendo com facilidade os sabores da cozinha mineira, sem que para tanto tivessem de sacrificar a culinária sua e de seus antepassados; essa culinária que trouxeram consigo dos campos e do rico litoral europeu. Digamos que até consentiram algumas incursões nossas, com exceção da infâmia do feijão misturado ao macarrão, porque aí já é demais para os brios culinários… Nossos bons amigos têm tolerado outras agressões, como se dá também com sua tradicional pizza, que na receita original vai ao forno soberana e incorruptível, apenas com pomodoro e mozzarella, de onde vem a nossa aportuguesada muçarela. Pois nos aditivos ofensivos até chocolate já entrou!
As massas são uma instituição dos valores daquela cultura gastronômica. É impossível saboreá-las sem que o paladar ganhe alguma coisa, nem que seja uma lembrança solta e passageira, da paisagem humana da Itália. Os juiz-foranos contribuíram para essa consagração, eis que a assimilaram quase totalmente. Há até quem diga que, tirantes algumas capitais, não há lugar neste País em que tanto como aqui fumeguem os fornos dos pizzaiolos.
Graças às massas, algumas italianas ficaram famosas por aqui. Confirmam-nos os comensais pantagruélicos que tiveram a ventura de saborear os nhoques, o ravióli, o tortellini e as macarronadas domingueiras de Dona Cecília Setta, no Poço Rico. Farinha bem escolhida e tomates legítimos; não esses tomates bojudos que ela enjeitava e expulsava de imediato, mas só aqueles mais compridos que imitam a forma do ovo. O vermelho sanguíneo dos tomates ou o creme carbonara: eis a única concessão sobre o amarelo pálido das massas.
E os pães? Tão sagrados e indispensáveis, que não há quem ouse negar-lhes prioridade entre os que vão à mesa italiana. Estão na primeira linha das riquezas gastronômicas do forno que sobrevivem diante de nossos olhos. E, nesse passo, corre logo à lembrança a figura retilínea, de tez muito clara e solidária com os cabelos totalmente brancos de Angelo Falci, panificador da parte baixa da Rua Marechal Deodoro. Eram os anos 20. Sua padaria, que começou com o pai, e outras daquele tempo, às 5 da manhã já despachava os triciclos com pães de sal, exalando um perfume do morno assado, que hoje não se sente mais. Os triciclos, com seus grandes balaios de vime, subiam pedalados a Marechal, e logo se distribuíam para os bairros. Entrega diária em domicílio.
O velho Falci foi dos poucos “estrangeiros” que ousaram invadir aquele trecho inaugural da Marechal Deodoro, que sírios e libaneses já haviam transformado em colônia. Convivência. Paz duradoura.
Por falar ainda nele. Nas reuniões semanais de Rotary, Falci gostava de reverenciar os valores da cultura e dos costumes dos imigrantes, para isso sempre bem humorado, pândego e gentil. Cultivava também alguma coisa que fazia lembrar o antigo empreendedorismo, que tanto contribuiu para o progresso de Juiz de Fora. Explicando. Falci viveu, como panificador, as dificuldades que a Segunda Guerra Mundial criara para a importação de trigo, fato que reduziu as possibilidades como empresário, ao mesmo tempo em que condenava os fregueses a se contentarem com alguns tipos de broa, em cujo preparo o fubá roceiro assumia as funções do trigo difícil. Pois ele foi descobrir – imaginem! – que em Paula Lima, na zona rural, estava uma região propicia ao desenvolvimento da triticultura. Levou o prefeito Adhemar Andrade, vereadores e empresários para conhecerem a primeira experiência bem-sucedida. Mas a ideia acabou condenada ao esquecimento, provavelmente por lhe faltarem garantias de viabilidade econômica.
Cultura e costumes
Na leitura dos intelectuais que se interessaram pelas questões de que tratamos aqui – Albino Esteves e os três Oliveiras: Estêvam, Almir e Paulino, para citar apenas alguns, sabemos que os caracteres que forjaram essa colônia são menos ou mais sensíveis segundo a região de onde procederam os imigrantes. É importante registrar este dado, para se compreender certa diferença cultural entre eles. Há casos conhecidos aqui. Sob alguns aspectos, um napolitano parece estrangeiro frente a um calabrês, embora tudo que os diferenciasse ruísse por terra quando, por exemplo, estavam em tela certos valores artísticos que falavam mais alto que eventuais divergências. E então eram unânimes. E aí entram Angelo Biggi, que ajudou a imortalizar Juiz de Fora e projetá-la para o Brasil com as pinturas do Theatro Central; Luigi Rufolo, citado entre os maiores violonistas do País no seu tempo; a Banda Garibaldina, de Luiggi Loreto, onde só os italianos podiam tocar.
Interessante é que, mesmo detentores de imensa musicalidade, foram aqueles citados os poucos, quase únicos, que se valeram dela como forma de sua afirmação cultural. Durante muito tempo, o talento da colônia se restringiu e se consumiu na banda do Loreto, o violino do Rufolo e manifestações familiares isoladas. A música, como veículo da arte e dos sentimentos inerentes, demorou a chegar ao grande público. Em 1957, o cantor Nino Delmonte passava a apresentar programas semanais na Rádio Difusora. Pouco antes dele, o Teatro Experimental de Ópera, da professora Alaíde Margarida, escola do bel canto, onde proliferaram descendentes. No mais, algumas iniciativas na Casa D’Italia, obra de concepção arquitetônica fascista, inaugurada em 1939. Ocorriam ali os recitais “Dopolavoro” (depois do trabalho), que cuidavam menos de divertir e mais de conscientizar politicamente, tal como o Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, que ali também funcionou.
Seja como for, as artes, como maior ou menor intensidade, são ingrediente importante no organismo da cultura; a cultura, como veículo de afirmação, quase tão essencial como a língua, que foi sendo absorvida pelo português, a toda hora ouvido no cotidiano das vidas em comum. O idioma poderia até correr o risco de estar em parte esquecido no falar e nas relações, se entusiastas como Iris Maestrini e raros grupos antecessores de descendentes não preservassem alguma coisa, muito além do “bom giorno” e “tante grazie”. Sente-se então que foram os costumes que permaneceram em boa forma nas individualidades.
Como resumi-los? A bocha com os amigos, o copo de vinho, conversas patrícias, roupas mais largas, viagens curtas, às vezes ao Rio, nas caravanas de Dona Concheta para rezar na capela de San Francesco. Sentimentalmente, como convém. Às vezes, atividades sociais na Casa D’Italia. E o respeito patriarcal, sem faltar um hábito interessante, que ficou no passado, e de lá não mais saiu: a celebração respeitosa da autoridade hierárquica e familiar. Não faltam exemplos. Um deles: há quatro ou cinco décadas, quem parasse na banca de jornais que havia na esquina de Halfeld e Getúlio Vargas podia ver, não poucas vezes, italianos tomando a bênção de Dom Ercole Caruso. Beijavam-lhe a mão direita, dirigindo-lhe poucas e medidas palavras em voz baixa. Nada mais que o necessário. De fato, muitos dos recém-chegados deviam àquele chefe o primeiro teto, a primeira mesa, o primeiro emprego de jornaleiro. Não era pouco. Tudo permitido, menos a ingratidão.
Sobriedade e explosão
Vamos a dois casos históricos e ilustrativos; nada além de dois, suficientes para mostrar o temperamento indomado e de certo modo revolucionário que aqueles primeiros imigrantes trouxeram na bagagem. Trata-se de uma curiosa capacidade de explodir, para logo depois retomar a docilidade. O primeiro caso vem de 1913, e vai nos remeter a italianos em flagrante desacordo com os padres da Glória, que dirigiam a paróquia de São Roque. Fizeram protestos e comícios acalorados que avançavam pela Andradas, indo até a funilaria de Seu Padovani e a loja Turola. Desafiadores, culminaram por convidar a pregar em Juiz de Fora o padre Manoel Carlos Correa, fundador da Igreja Católica Brasileira, francamente hostil a Roma e seus representantes eclesiásticos. Ele não pôde vir, mas mandou em seu lugar, para pregar, um italiano ainda mais bravo e destemperado, o padre Francesco Frederico Arditi; tão desabusado, que já sairia da cidade excomungando pelo bisco Dom Silvério.
Pois bem. Arditi, também falando, ao que parece, sobre valores espirituais da etnia quando postos a serviço de Deus, procurou animar os compatriotas inflamados, e, suprema audácia, proclamou-se no Largo São Roque primeiro patriarca da Igreja Católica Brasileira. Uma loucura, ao lado de três propostas mais que graves, como informa Rolando Azzi em seu “Sob o Báculo Episcopal”: fim do celibato dos sacerdotes, a negação da hierarquia católica e o banimento do latim nas celebrações. Naquela época, vejam só! É fácil compreender a rebordosa e as tensões. Até há alguns anos eram conhecidas testemunhas oculares. Foi assim mesmo que aconteceu.
Eram nossos imigrantes e descendentes aplaudindo tudo que Roma odiava. Mas, logo depois, o sangue esfriou nas veias dos revolucionários da véspera, passou a raiva, coisa que sua índole não sabe guardar, e lá estavam eles sujeitando-se de novo às obediências romanas. Sossegadas as paixões, a Glória pacificada voltou ao clima daquele trágico 1895, quando italianos choravam no ombro redentorista para lamentar a morte de Dom Lasagna, bispo patrício que morreu em acidente ferroviário em Mariano Procópio. Italianamente compungidos.
Rebeldes de anteontem, nunca mais deixariam de seguir, com fervor, o catolicismo romano, rezando na língua pátria, invocando San Genaro. E San Francesco. Assis ou Paola? Os dois. Uma religiosidade de missas e comunhões dominicais, tudo primando por um profundo e severo recato, intolerante com os faltosos e com os viúvos que não podiam sair sem o plastron e o fumo preto na gola do paletó, pública mostra da dor do luto. As mulheres, se órfãs dos maridos, escondidas em vestidos pretos, fechadas em recordações lacrimogêneas, diferentemente daquela brasileiríssima Ana Flora, da Rua Direita, que Pedro Nava vestia de roxo, romântico e sonhador.
Rezava-se à Virgem Santíssima, como se lê numa efígie de 1902, que a família Scanapieco conserva até hoje: “Stendete si di me II manto dela vostra protezione, arricchitemi delle vostre grazie, e fate che io viva dela vostra vita, e muoia della vostra morte. Cosi sai”.
Sinistra Hospedaria
O segundo caso sobre momentos de maior agitação em que italianos foram protagonistas ocorreu em novembro de 1891 na Hospedaria dos Imigrantes Horta Barbosa, na Tapera. Uma crônica de desespero que acabou dando lugar à violência. Fome, sede, doenças, frio, mau cheiro, banhos escassos, insegurança, crianças raquíticas esperando a morte, e constantes brigas entre famílias por causa de espaços mal divididos. A quem visse poderia parecer que outro italiano, o Dante, da Divina Comédia, esteve ali para escrever no pórtico do inferno: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrarte”.
Eram 1302 estrangeiros, maioria de italianos chegados aqui ao embalo da promessa de emprego fácil nas fazendas de café recém-desabilitadas do braço escravo. Antes deles, pretendeu-se o trabalhador chinês, ideia logo abandonada, considerando-se a distância para a viagem. Os descontentes não apenas queriam trabalho, mas que, pelo menos, 100 famílias permanecem juntas nos locais onde passassem a morar, o que confirma a preocupação com um dos valores de raça que eles traziam, ainda que sob a vida miserável. Como as promessas demoravam a se converter em realidade, certa manhã de novembro a explosão. Os gritos. Desespero. Polícia e feridos.
Por fim, chegaram a paz e as providências para o encaminhamento de parte dos trabalhadores, distribuídos entre Juiz de Fora e outros municípios da Zona da Mata. Muitos descendentes nesta região podem hoje ser considerados filhos mais que legítimos da rebelião na Hospedaria. Alguns sofredores escaparam da roça e ficaram para trabalhar na cidade.
É preciso demorar um pouco neste ponto para se conhecer o primórdio da civilização que ia se revelar diante de nós. Não diferentemente do que ocorreu no resto do País, em Juiz de Fora o volume maior da imigração se deu entre 1880 e 1910. Fatores diversos haveriam de contribuir para localizá-la nesse tempo, influindo principalmente o fato de então a Itália não se encontrar nacionalmente organizada. Eram províncias e regiões mais ou menos autônomas, em alguns casos verdadeiros feudos isolados, cada qual com seus hábitos e dialetos. Tanto que, quando embarcaram para o Brasil, aventura mar adentro, ocorreu de muitos nem poderem se comunicar, o que explicaria, tempos depois, o citado esforço de famílias na Hospedaria da Tapera para permanecerem juntas nos locais de trabalho para onde fossem designadas. Eram aquelas que já se conheciam a bordo. Pode ser que nem atinassem, mas nisso estavam elaborando o primeiro modelo de defesa e vida em comunidade, o que deviam conservar para não parecer culturalmente. Precisavam estar agrupados.
Ainda para refletir nessa mesma linha, sabia-se que, quando solteiro, o jovem imigrante sentia a premência da instituição familiar. Procurava logo a moça do mesmo sangue para casar. Abria-se o caminho das descendências, na mais prolífera de todas as comunidades estrangeiras; um campeonato no qual disputavam, com sírios e libaneses, fôlego e tempo na obra da procriação. Para confirmar o que revelou em 2013 a Embaixada da Itália: naquele ano, o Brasil contava com 30 milhões de descendentes diretos e indiretos. Temos uma parcela nessa estatística nacional. No mapa dos estados por eles preferidos, Minas está no terceiro lugar, superada apenas por São Paulo e Rio Grande do Sul. No painel mineiro, recorda-se que a preferência dos italianos e “oriundi” contemplou o Sul e a Zona da Mata, e, nesta, particularmente Juiz de Fora, desde os tempos da Tapera, onde para eles o governo Bias Fortes havia mandado construir a famigerada hospedaria.
Pode-se pensar, à primeira vista, que tais informações resultam apenas em relativa importância, quando estão em tela as bases da etnia. Mas observe-se que, no seu conjunto, as opções regionais, assim como as atividades escolhidas e o sistema familiar adaptado, são a fonte da formação daquele patrimônio de que tanto se valeram para se manter, longe das origens territoriais.
Para Juiz de Fora, ocorre outro detalhe significativo, ainda com relação à preocupação deles com o “estar juntos”. Porque, antes de chegarem aqui, mas desembarcados no porto, aqueles que nos seriam destinados ficaram unidos para quarenta na Ilha das Flores. Já sabendo seu destino, permaneceram ali por alguns dias, talvez duas semanas. Saindo, foram levados para Petrópolis. Uns 600. Mais uns 10 dias e, de trem, rumo a uma Juiz de Fora da qual pouco haviam ouvido falar. Inseparáveis.
(Desse mundo de horror, na Tapera, acabou saindo personagem internacional: Domenico Marchioro (1888-1965), que em 1920 voltou para a Itália, depois de ter trabalhado na Industrial Mineira, sendo “um dos pequenos escravos desse cotonifício, onde eram comuns as chicotadas sobre o corpo dos meninos sonolentos, as 12 horas de trabalho diário, o salário miserável”, como escreveu. Em 1924, Marchioro ingressou no Partido Comunista Italiano, preso durante 20 anos no regime fascista, mas eleito para integrar, em 1946, a bancada comunista da Assembleia Nacional Constituinte, onde ganhou expressão. Certa vez, em Roma, com Luiz Carlos Prestes, tratou das “lembranças do lúgubre e triste edifício da Hospedaria Horta Barbosa.”
Calor na política
Entramos, agora, em outro terreno onde os pioneiros italianos e os continuadores são capazes de revelar seus anseios, pela via da ternura ou com o espírito armado; anseios que oscilavam para frente ou para trás, para cima ou para baixo com incrível velocidade. Trata-se da militância política que souberam forjar ao embalo de muitos sonhos, alguns bem antigos, pois já se esperava a consolidação da unificação da velha Itália. Ela conseguiu, mas como custou!
O nacionalismo, na sua forma mais radical, caminhou facilmente para as pregações de Mussolini e sua bandeira da Pátria Ideal. Aqui, embevecidos, os fascistas só passaram a ganhar a vigilância atenta dos órgãos de segurança, quando o Brasil, rompendo com o Eixo, estava pronto para guerrear o regime de Roma. Nesse contexto, tornaram-se suspeitos tanto como os alemães. Só que, enquanto estes permaneciam calados para a política, quietos na Colônia de São Pedro, os italianos, no centro e nos bairros, pregavam abertamente e se reuniam. Peregrinavam nas ondas curtas dos rádios antigos para acompanhar o noticiário de guerra. Havia quem batesse estrondosamente no peito ao ouvir os discursos do Duce. No parque Halfeld e na Casa D’Italia, corriam listas a angariar dinheiro para financiar a campanha da Etiópia. Tudo às claras, como se lê num convite publicado no Diário Mercantil, assinado pelo “segretário interinale”Pietro Bergiona:
“Fascio di Juiz de Fora
La sera del 28 corrente mese, alle ora 8 e mezza, nella sede del Fascio, che é ao plano superiore della Societá di Beneficenza “Umberto I”, será commemorata le Marcia su Roma, com um discorso dell’ Avv Emilio Camodeca. Si avverte che non solo i fascisti, ma indistintamente tutti gli altri italiani, possono partecipare alla celebrazione dell’ evento memorando, per cui I’Italia há avulo pace e prosperitá”.
Todos àquele antigo sobrado de Getúlio Vargas, porque também ali o fascismo prometia olhar generoso para os italianos no estrangeiro.
Declarada a guerra, a intolerância da polícia acabou com essas manifestações e com os sonhos, e, como Mussolini, de cabeça para baixo. Na cidade, não faltaram exageros desnecessários nos protestos, como a mudança do nome da Rua Itália, que virou Rua Oswaldo Aranha. A Casa D’Itália tomada pelo governo brasileiro, só mais tarde devolvida aos donos. O ex-prefeito Rafael Cirigliano, por ser descendente, teve sua casa apedrejada na Rua do Sampaio, entre outras hostilidades que o obrigaram a mudar para São Lourenço.
Mas, quando se fala dos italianos, sem relegar descendentes ilustres, como os republicanos Paletta e Detzi, e depois o trabalhista Hildebrando Bisaglia e o vereador Waldir Mazócoli, observa-se que, na política de Juiz de Fora, eles tiveram também o viés sindicalista, onde viveram papel saliente, nunca negando aquele temperamento mercurial, quantas vezes confirmado no manancial de um dos caracteres étnicos.
Registre-se, para o bem da história, que o desejo de agitar as massas, não diferentemente nos discursos políticos, acontecia nas assembleias e nas campanhas da classe operária. Infiltravam-se nos sindicatos independentes, na Societá Operaria, na Societá Umberto Primo ou onde quer que prosperasse uma reivindicação qualquer. Era uma época em que aquelas lutas coincidiam com a feroz resistência dos interesses e do humor do patronato. Oscar Vidal, presidente da Câmara, recebeu-os, mas recusou todas as propostas. Mandava que os queixosos se entendessem com os empregadores… Pode ser que tenham sido poucas as conquistas, mas a cidade ficou devendo a muitos italianos o despertar para o debate de grandes questões sociais. Vivas aos patrícios Antônio Notaroberto e Guiseppe Biteti.
A greve de 1912, a maior que a cidade assistiu, insistia no período de oito horas diárias de trabalho, ideia recusada in limine. Interessante é que o único acatamento espontâneo a essa reivindicação veio exatamente de Pantaleone Arcuri, que concedeu jornada das 7 às 16 horas, mesmo num momento de graves problemas, quando sua indústria pagava 15 mil réis a tonelada do amianto importado do Canadá.
Certo é que o sangue deles jamais deixou de ferver nos sindicatos. Continuou correndo nas veias de Clodesmidh Riani, um líder nacional que esteve à frente das principais postulações de trabalhadores nas décadas de 50 e 60, como a revisão anual do salário mínimo e o 13º salário.
Por fim, como defini-los num olhar que seja, ao mesmo tempo, retrospectivo e atual? Com que palavras? Dizer que são pessoas de hábitos simples, raramente apressadas, pouco visitadoras? Obreiros por excelência, sem nenhum temor diante das tarefas mais duras e humildes? Talvez de tudo isso um pouco, somando-se ao seu trabalho uma total ausência de orgulho ou preconceito de ordem classista, mesmo quando celebrados e famosos. Nem por isso recusavam o braço na atividade mais dura. Quem não viu Natálio Luz (o calabrês Natale Chainello) garupando na bicicleta as verduras e legumes da quitandinha que os pais, Vicenzo e Angelina, tinha na Batista de Oliveira. À noite, e tão diferentemente, ia ele comandar o radioteatro da Industrial ou subia ao palco do TECI ou se recolhia ao estúdio para pintar paisagens reais e fictícias.
Por tudo isso, talvez até mais, em muita coisa essa gente ajudou Juiz de Fora a crescer e enfrentar o que fosse preciso mudar. Entraram firmes e dispostos na história da cidade que lhes abriu suas páginas-portas. E entraram de vez, com todos os sinais de um temperamento que aqui chegou empacotado em baús e bruacas.
E as saudades? Quando se pergunta sobre esse sentimento em relação à terra natal, suas distantes aldeias fincadas em planícies multiformes, ouve-se o de sempre: uma grande vontade de rever, mas igual vontade de voltar às sombras do Parque Halfeld, à família e aos amigos, como disse certa vez, Sílvio Imbroisi, que algumas vezes foi e tantas outras vezes voltou.