18-01-2025 às 15h21
Mariah Brochado*
Ataques a estilos de vida e escolhas pessoais, agressões verbais destiladas em milhares de
postagens, manipulação ideológica de opiniões por meio de notícias falsas para a captação utilitarista
de subjetividades para fins diversos, estas são formas de violências que há menos de duas décadas
passaram a fazer parte do nosso cotidiano, sendo executadas sem pudor, com a certeza da impunidade
garantida por uma tela e pela rede mundial de computadores, versão high-tech do “anel de Giges”
que nos invisibilizou para, ao contrário da sua função na mitologia grega, nos franquear novas versões
do mal. Este passou a ser relevado, ignorado e até mesmo desejado- desde que atraia seguidores e
multiplique likes
A violência por canais de virtualização e anonimização da vida é a nova faceta da banalidade
do mal, inimaginável a Hannah Arendt, que testemunhou os horrores muitíssimo concretos do
nazismo e concluiu que o mal trivializado é pior que o intencionado, pois na prática banal do mal
sequer se é capaz de notá-lo como tal, de diferençá-lo do que não é mal. E o mal manifesto na era
digital, no ambiente virtual do cyberespaço, tem notas caracterizadoras que o distinguem do mal que
aflige diretamente corpos humanos: ele é performado numa arena desterritorializada, desfizicalizada
e intangibilizada. Neste formato de espacialidade sem território, a tela dos computadores nos blindam
de ataques físicos, mas não nos protegem dos efeitos que o mal desfizicalizado provoca em nossas
mentes, em nossos espíritos, podendo levar até mesmo à morte, como ocorreu há alguns anos com o
jogo Baleia Azul nas redes sociais russas, que incitou dezenas de jovens ao suicídio
O jogo russo foi uma radicalização do mal virtual, mas não se trata de algo esporádico e
circunscrito a um país. O dia a dia de mães e pais em todo o mundo tem sido atormentado com a
autoestima dilacerada de seus filhos, jovens frustrados que já nascem num mundo onde a ostentação
compartilhada por centenas de “influencers” celebrizados no cyberespaço é a única referência de vida
exitosa. Nunca se falou tanto em depressão e suicídio entre jovens, fruto de uma espécie de anomia
causada pela incapacidade de administrar a constante contradição entre o desejo de visualizar cada
atualização exibicionista de conquistas e a frustração diante de tantos êxitos alheios inalcançáveis,
muito distantes dos que preenchem a vida nossa de cada dia nos territórios reais da família, da
escola, do trabalho, do bairro, da cidade.
ersões falsas de um tipo de vida que só existe na transmissão pela tela dos computadores
são vendidas como artigos de luxo no seio de um neo-hedonismo que contagiou a era digital.
Exibições de sucesso excepcional de pessoas comuns são precificáveis como qualquer outro objeto
de desejo no mercado do engajamento por perfeições imagéticas submetidas a dezenas de filtros,
nossa maquiagem digital. (Alguns foram banidos do Instagram e do Facebook, mas outros seguem
em pleno uso).Tudo é recebido por visualização passiva diante das telas, por jovens inertes em seus
quartos, sem qualquer desafio factível que os convença a sair em busca das próprias conquistas na
vida fora da tela. No Japão, a palavra Hikikomori, que significa “isolamento” ou “solidão”, passa a
apontar para uma síndrome que acomete a juventude hoje: nativos digitais desejam ficar isolados o
tempo todo, negando-se a ter uma vida social que envolva conhecer pessoas reais (tangíveis), estudar,
trabalhar, divertir-se, sentir-se no mundo que habitamos fisicamente. O enquadramento episódico de
milhares de flashes num continuum fragmentado circunscrito à tela distorce o horizonte do que
entendemos por real, asfixiando nossas aspirações, gerando impotência na busca por uma felicidade
que está atrelada ao prazer de se mostrar, de divulgar méritos, de se aparecer a qualquer custo em
episódios banais do cotidiano, hedoné imagético adequado ao hedonismo virtualizado no
cyberespaço. De onde partimos e onde chegamos?
Desde o final do século passado começamos a viver conectados a artefatos e dispositivos
como jamais antes. Trata-se de uma hibridização que não só forja nossas vivências em ininterrupta
dependência de telas computacionais, como também nos anestesia neste processo de imersão num
espaço de comodidade que nos traz o “mundo todo” em aparelhos que cabem na palma da mão. Ao
contrário do que ocorria na era analógica, em que desligávamos os aparelhos depois de utilizá-los
(rádio, televisão, toca-discos, telefones particulares e orelhões etc), hoje nos tornamos incapazes de
viver sem nossos smartphones e tudo o que eles nos oferecem- e que vai muito além de entretenimento
imagético. Suas diversas funcionalidades condicionam nossa própria relação com o mundo, ao
sermos guiados por aplicativos de trânsito e navegação, ao realizarmos compras e contratarmos
serviços via plataformas e sites, ao acessarmos centenas de compilados digitalizados de produção
cultural no estilo wiki, seja ela técnica, artística ou científica, tudo podendo ser armazenado em um
pendrive- experiência muito diversa do acúmulo de milhares de páginas e capas de livros que nós,
nômades digitais, ainda cultivamos em estantes no nosso habitat físico.
O real como conhecíamos
passou a ser mediado pelo irreal, no sentido de intangível, essencialmente imagético, criando duas
versões de vida: online e offline. O estilo de vida híbrida da era digital nos mantém constantemente
conectados, ainda que dependamos de elementos concretos da nossa corporeidade para processá-la,
seja pelo tanger dos dedos nas teclas, seja pelo mirar dos olhos nas telas. Ganhou projeção entre
acadêmicos uma sacada do intelectual italiano Luciano Floridi: “on-life”. Com esta expressão quis
ele significar que passamos a viver uma vida sem fronteiras bem demarcadas entre online e offline.
Ele ilustra nossa condição comparando-a ao mangue, vegetação formada onde não é possível
distinguir o que é água salgada e água doce na água salobra dos manguezais- já que ali se misturam
rio e mar. Esta vida “on-life”, no entanto, ao contrário do que idealizaram alguns Filósofos da
Tecnologia para o nosso futuro altamente tecnologizado, mais nos escraviza do que nos liberta,
lançando-nos num loop infinito de dependência desse “ópio digital” que não nos rendeu bem-estar,
apenas fuga.
Não é difícil constatar o que resultou do processo de intensa virtualização da realidade
promovida pela tecnologia digital: o cyberespaço é, ao termo e ao cabo, um terreno baldio, carente
de construções regulatórias que limitem as invasões e turbações nele praticadas. A recente declaração
de Mark Zuckerberg a propósito do descomprometimento da Meta com o controle sobre as
manifestações dos usuários no Facebook e Instagram só confirma o óbvio: nosso maior desafio é
encontrar meios normativos para a proteção dos usuários da internet contra a barbárie que se
instaurou nesse universo sem rédeas técnicas, faroeste de práticas criminosas na dark web, desde a
compra de medicamentos proibidos e drogas, passando por pornografia infantil e canibalismo, até o
tráfico de armas, pessoas e órgãos, e práticas de terrorismo. Versões do mal que lutamos
persistentemente para banir do nosso habitat físico e que hoje, com nosso prodigioso progresso
tecnológico, têm porteira aberta no habitat cyberizado. Na ausência de meios técnicos satisfatórios
para enfrentar as consequências maléficas decorrentes da própria evolução técnica, resta-nos o abrigo
na tradição, o legado grego que segue sendo esteio da nossa civilização: a “Ciência do ethos” ou
Ética. É dela que precisamos partir para pensarmos nos desafios do ethos da era digital, o qual,
enquanto ethos humano que é, traz consigo uma normatividade intrínseca, não condicionada a
técnicas de virtualização da nossa presença no mundo, geradas artificialmente por Eletrônica e
Algoritmia aplicada.
Dada a inaptidão histórica da normatividade jurídica tradicional, pouco eficiente para
assumir as rédeas do cyberespaço com seu novo modus operandi do mal, a retomada das discussões
éticas sobre a natureza humana, ou sobre o que o filósofo brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz
chamava de nosso “metabolismo espiritual”, é urgente. A nossa dignidade supõe um metabolismo
“conformado por liberdade e vontade, logo, por responsabilidade. Pensar em ação humana é lhe
atribuir a condição de agir ético, admitindo que o animal sapiens traz em si uma instância de decisão
que se difere das funcionalidades físicas do seu corpo, sua mente consciente, que não se confunde
com o cérebro, o qual a comporta sem, no entanto, a causar” (BROCHADO, Mariah, Inteligência
Artificial no Horizonte da Filosofia da Tecnologia, Editora Dialética, 2023, p. 421). Atuar no
cyberespaço não nos subtrai este metabolismo essencial, eis que, até quando mediadas pela
intervenção técnica, nossas ações são sempre dirigidas a fins pelos quais nos responsabilizamos,
sendo, portanto, agir intrinsecamente ético (livre e responsável)
Enquanto realização humana que é, a tecnologia deve ser assumida como agir livre e
responsável, portanto, não sujeita à falácia moderna da neutralidade científica. A tecnologia não é
desideologizada, como muitos defendem; ao contrário, sendo produção do espírito, é sempre
comprometida com opções e responsabilizações, razão por que ela deve ser objeto de estudo da Ética
(Filosofia Prática) hoje levada para o campo da Filosofia da Tecnologia. As discussões sobre os
feitos e propósitos da produção tecnológica não podem mais estar circunscritas às ciências naturais e
lógico-matemáticas, como se fossem apenas “problema de peritos” e seus mandarinatos acadêmicos
fracassados na pretensão de solver tecnicamente o que não é técnica no apogeu da civilização da
técnica. A ampliação do debate acadêmico sobre os fundamentos do fenômeno tecnológico, como
vem sendo reivindicado por intelectuais do porte de Carl Mitcham, Andrew Feenberg, Margaret
Boden, Claus Pias, Pierre Lévy, talvez seja o nosso mais decisivo ponto de partida para enfrentar as
banalizações do mal características desse início de século. Como conclusão, não posso deixar de
trazer o pensamento de Lima Vaz, nosso filósofo maior. Em uma entrevista publicada no ano 2000,
eis a sua lição sobre a sujeição do “mundo de artefatos” à reflexão onipresente da Ética: (Vinte e
cinco anos depois a agudeza do seu pensamento segue vanguarda, porto seguro para quem quer refletir
com cautela sobre os dramas da era digital.)
“Temos de um lado o crescimento vertiginoso da tecnociência, e, na sua esteira, a produção
incessante e exponencialmente crescente de objetos que passam a ocupar quase totalmente o mundo humano,
tornando-o cada vez mais um mundo de artefatos. A essa invasão do artificial corresponde, nos indivíduos e
na sociedade, o aparecimento de mecanismos sempre mais aperfeiçoados de utilização. O útil erige-se em
categoria primeira e quase exclusiva da prática social. Ora, o útil não pode, por definição, sendo
condicionado pelo objeto por ele visado, desejado ou possuído, presidir ao universo simbólico do ser humano
onde estão presentes fins, normas e valores irredutíveis ao critério da simples utilidade. Negá-lo seria fazer
do ser humano apenas o sujeito inquieto de desejos sem fim, aprisionado à lógica do consumo e da satisfação
e sem outra finalidade superior na sua existência. Regido pela categoria do útil, o universo simbólico no qual
se exprimem nossas razões de viver seria apenas a versão ideológica do universo material dos objetos
oferecidos ao consumo. É essa a face mais visível do nosso mundo “globalizado” e é para ela que se voltam
as reflexões de filósofos, moralistas e de todas as pessoas lúcidas que se preocupam com o futuro da
civilização. Essas reflexões são necessariamente de natureza ética e daí a atualidade onipresente da Ética”
(em: Conversas com Filósofos Brasileiros, Ed. 34, 2000, p. 37).
*Mariah Brochado: Professora Titular de Filosofia do Direito e da Tecnologia da Faculdade de Direito da UFMG. Coordenadora da Cátedra PhiloTech, integrada ao Centro de Excelência Jean Monnet (UE/UFMG). Professora Visitante do LeibnizInstitut für Medienforschung/Universität Hamburg. Doutora em Direito pela FDUFMG, com Pós-Doutorado em Filosofia na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg