Engatinhando pelo chão espesso de um barraco sem móveis e carregando no pescoço, pendurado num cordão grosso, um pedaço de bife mal passado. A mãe explicava que fora sugestão de um estudante de medicina para prevenir contra anemia.
08-01-2025 às 12h52
Elson Martins
Faz mais de trinta anos que guardo na memória esta cena comovente: a de uma menina de oito meses engatinhando pelo chão espesso de um barraco sem móveis e carregando no pescoço, pendurado num cordão grosso, um pedaço de bife mal passado. A mãe explicava que fora sugestão de um estudante de medicina para prevenir contra anemia.
O barraco que visitei muitas vezes ficava por trás do presídio São José, em Belém, num terreno alagado com esgoto a céu aberto e cujo acesso só era possível equilibrando-se sobre palafitas. Além dos aspectos deploráveis da construção e do mau cheiro em volta, o local era vigiado por estranhas figuras armadas, agentes da polícia política do regime militar de 1964.
Os pais da menina pertenciam à ALN (Aliança Libertadora Nacional) e haviam sido presos ao tentar sair do Estado do Pará para a região onde militantes desencadeariam uma guerrilha para restaurar a democracia no País. Acusado de ser perigoso guerrilheiro, o pai foi mantido no presídio enquanto a mãe ficou em liberdade vigiada para cuidar da filha que estava por nascer.
Completava um ano que a mãe, sempre que podia, ia visitar o marido na prisão passando por todo tipo de vexame. Policiais militares a achacavam e faziam ameaças insinuando que o fim do casal estava próximo. Quando se ausentava do barraco, uma irmã ficava com a menina, sempre sobressaltada com a vigilância que cercava a pequena e vulnerável família.
Antes de completar um ano de prisão, entretanto, o pai conseguiu, com a ajuda de amigos de esquerda, articular uma fuga. A estratégia era adoecer para ser levado a um hospital público onde alguns médicos simpatizantes prolongariam o tratamento. E com o passar do tempo se tentaria ganhar a confiança dos guardas encarregados da vigilância do preso.
A confiança foi conquistada ao ponto do preso sair duas ou três vezes do Hospital da Santa Casa, de madrugada, junto com um policial para ir até o barraco ver a mulher e a filha. Numa noite dessas, o policial ficou deitado numa rede armada na sala enquanto o preso, a mulher e alguns amigos conversavam na cozinha. Um generoso copo de cuba-libre (Coca-Cola com rum) era levado para o policial pelo próprio preso, que lhe pedia que não fosse identificar o restante do pessoal.
Numa certa noite, o preso saiu pela porta da frente do hospital vestido de médico. Um velho fusca, dirigido por uma amiga, já o aguardava nas proximidades com a mulher e a filhinha para leva-los até o Porto do Sal. Logo, uma pequena canoa de feirante deixou o porto singrando as águas do Amazonas rio acima, até Guajará-mirim, na Bolívia.
A pequena família iniciava a aventura de 10 anos de exílio no Chile, Canadá e África.
Minha participação nessa história foi a de estar presente em pelo menos duas conversas no barraco, enquanto o guarda tomava seu drink na sala; e de ter providenciado um bom rancho de leite em pó, biscoitos e outras iguarias, sobretudo para a menina do bife pendurado no pescoço. Após a fuga do casal, abriguei em minha casa a tia dela, procurada pelo exército e pela polícia federal.
Não sei dizer o que aconteceu com os policiais que faziam a guarda no hospital. Sei apenas que alguns ficaram sabendo da fuga e até manifestaram o desejo de fugir também. O certo é que no dia seguinte viu-se grande aparato bélico em volta do silencioso e abandonado barraco sobre palafitas.
Essas lembranças foram despertadas por um e-mail que recebi da Artionka Capiberibe, a menina do bife que hoje é doutora em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ), professora do departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autora do livro Batismo de Fogo: os Palikur e o Cristianismo (2007), indicado ao prêmio Jabuti.
Educada no Chile, Canadá, África e nas várzeas amazônicas do Amapá antes de tornar-se acadêmica em São Paulo, a antropóloga Artionka carrega na alma as marcas dessa luta que não terminou.
*Elson Martins é jornalista