Mais do que a simples ausência de conflitos, a paz se constrói sobre a concretização da justiça, sendo fundamento de uma sociedade livre e próspera.
23-12-2024 às 08h37
Rodrigo Marzano Antunes Miranda*
A manutenção da paz social deixou de ser um ideal distante para se firmar como um dever essencial do Estado para com seus cidadãos. Mais do que a simples ausência de conflitos, a paz se constrói sobre a concretização da justiça, sendo fundamento de uma sociedade livre e próspera. Entretanto, o avanço do chamado Estado Poiético – caracterizado pela tecnocracia e pela instrumentalização do ser humano – ameaça os alicerces da justiça social, como alerta o professor Joaquim Carlos Salgado. De outra maneira, o Estado Ético tem como propósito central a promoção da justiça e a garantia dos direitos fundamentais, baseando-se na legitimidade popular, na legalidade e na ética, como defendem autores como Dalmo Dallari e Norberto Bobbio. Esse modelo estatal coloca a liberdade como eixo de suas ações, promovendo um ambiente em que cada indivíduo possa se desenvolver plenamente. Esse modelo visa criar um ambiente propício ao desenvolvimento do indivíduo, estabelecendo a liberdade como um bem supremo e inerente à natureza humana, assim tornando-se o eixo central das ações estatais.
O Estado Poiético, movido pela lógica fria da eficiência e da produção, transforma o cidadão em mero instrumento a serviço de seus próprios fins, como critica Jürgen Habermas e Zygmunt Bauman. A busca desenfreada pelo poder, materializada na voracidade do sistema econômico, subverte a ordem natural das coisas, colocando o “ter” acima do “ser”. Como resultado, a burocracia, desprovida de alma e compaixão, perpetua um ciclo de desumanização e injustiça. Essa lógica reduz o ser humano a um elemento quantificável e manipulável, desconsiderando sua dignidade intrínseca e seus direitos inalienáveis. Nesse ambiente, a busca por resultados a qualquer custo ignora os impactos sociais e a ética, corroendo os valores humanísticos e a coesão social. As consequências da prevalência desse Estado são devastadoras e multifacetadas. No âmbito moral, como alerta Norberto Bobbio, a corrupção alastra-se como erva daninha, corroendo os valores éticos e minando a confiança nas instituições. No plano político, a democracia é enfraquecida, abrindo espaço para o autoritarismo e a tirania. No campo jurídico, a insegurança jurídica impera, gerando caos e instabilidade.
Nesse contexto, a ausência de freios éticos e a busca desenfreada pelo poder abrem caminho para a corrupção e o abuso de poder. A democracia, como sistema político baseado na participação popular e no respeito à vontade da maioria, é corroída pela manipulação, pela desinformação e pela apatia social. A insegurança jurídica, por sua vez, mina a confiança nas instituições e impede o desenvolvimento social e econômico. Esse quadro preocupante, revela a necessidade urgente de defender o Estado Ético e a busca pela justiça social.
A paz, como fruto da justiça, exige um Estado comprometido com o bem-estar social, a igualdade de oportunidades e garantia dos direitos fundamentais. Apenas a partir da construção de uma sociedade justa, em que a dignidade humana seja o valor central, poderemos alcançar a paz duradoura e genuína. A esse momento o professor Joaquim Carlos Salgado chama de Estado Ético. Nesse sentido, destacamos a necessidade premente de resgatar a ética como bússola para as ações estatais, colocando o ser humano e seus direitos no centro das políticas públicas. A construção de uma sociedade mais justa e igualitária exige o combate à corrupção, o fortalecimento da democracia e a promoção da justiça social. Somente assim poderemos garantir a paz duradoura, construída sobre os alicerces da justiça e da dignidade humana.
A paz consolida-se como resultado natural de uma sociedade justa e equitativa. A justiça, como princípio basilar, garante a igualdade de direitos e oportunidades, a imparcialidade na aplicação das leis e a proteção contra abusos e arbitrariedades. Para o filósofo Lima Vaz, a função da filosofia é recompor certezas, mesmo que mediatizadas pela experiência histórica e pelo conflito, uma visão que Hegel associaria à dialética. Essa reconstrução de valores é essencial para o fortalecimento do Estado Ético, que contrasta com o Estado Poiético. Segundo Joaquim Salgado, a pluralidade de sociedades contemporâneas exige que o direito funcione como denominador comum, representando valores universais, como liberdade e igualdade. Ele reforça a necessidade de superar a divisão entre sociedade civil e Estado, herança do modelo liberal, que privilegia a autonomia privada em detrimento da participação política.
A paz, ideal perseguido por civilizações desde tempos imemoriais, transcende a mera ausência de conflitos bélicos, representando a complexa e multifacetada concretização da justiça social. No âmbito dessa temática, o debate sobre o papel do Estado Ético não é novo. Desde o Império Romano, pensadores como Cícero e Ulpiano destacaram a justiça como pilar de um sistema jurídico estável. Enquanto Cícero enfatizava a igualdade perante a lei, Ulpiano buscava princípios universais para assegurar a equidade. Esse legado romano ecoa no desafio contemporâneo de equilibrar eficiência estatal com valores éticos e direitos humanos. A formalidade jurídica, herança da influência religiosa, servia como mecanismo de segurança e previsibilidade, conferindo permanência à vontade manifestada nos atos jurídicos e garantindo a estabilidade social. A cisão do Estado reside nesse embate que se trava dentro dele mesmo, criando dois Estados: o Estado Poiético, do domínio burotecnocrata, e o Estado Ético, do domínio da sociedade política, enquanto Estado Democrático de Direito.
A ascensão do Estado Poiético agrava a desumanização, ignorando a dignidade humana e priorizando a burocracia e a produção. A mera aplicação da lei, desprovida de um arcabouço ético sólido, mostra-se insuficiente para a construção da paz social. A ascensão do Estado Poiético, com sua lógica tecnocrata e instrumentalização do ser humano, representa uma ameaça aos pilares da justiça e, consequentemente, à própria paz. A busca desenfreada pela eficiência e produção, características marcantes do Estado Poiético, reduz o cidadão a um mero instrumento a serviço do sistema, desconsiderando sua dignidade intrínseca e seus direitos inalienáveis. A burocracia impessoal, a desumanização nas relações sociais e a priorização do “ter” em detrimento do “ser” criam um terreno fértil para a corrupção, a erosão da democracia e a insegurança jurídica, minando a confiança nas instituições e corroendo o tecido social.
Diante desse cenário, torna-se imperativo retomar os valores do Estado Ético, buscando inspiração no legado romano, porém adaptando-o aos desafios da contemporaneidade. A justiça social, como distribuição equitativa de direitos e oportunidades, deve ser o eixo central das políticas públicas, combatendo as desigualdades sociais e promovendo a inclusão social. Fortalecer a democracia, garantindo a participação cidadã e a transparência nas ações do Estado, é crucial para evitar a concentração de poder e os abusos. A educação para a ética e a cidadania, desde a infância, é fundamental para formar indivíduos conscientes de seus direitos e deveres, capazes de construir uma sociedade mais justa e pacífica.
A paz, portanto, não é um Estado inerte, mas sim um processo dinâmico em constante construção. Exige esforço conjunto de governantes e governados, pautado pelo diálogo, pela justiça social e pelo respeito à dignidade humana. Somente assim poderemos superar os desafios do presente e construir um futuro de paz duradoura para as futuras gerações.
Para ler mais sobre o assunto, acesse:
• BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
• BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
• BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
• DALLARI, D. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2013.
• HABERMAS, J. Teoria da ação comunicativa. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1987.
• SALGADO, J. C. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996.
• SALGADO, J. C. O Estado ético e o Estado poiético. Revista do Tribunal de Contas de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 47-62, 1998.
• SALGADO, J. C.; HORTA, J. L. B. Hegel, liberdade e Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
• VAZ, Henrique Claudio de Lima. A formação do pensamento de Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
*Doutorando do Programa de Pós-graduação em Cidadania e Direitos Humanos: Ética e Política na Faculdade de Filosofia da Universitat de Barcelona, linha de pesquisa: 101157 Filosofias do Sujeito e da Cultura (UB 2019-), orientado pelo Prof. Dr. Gonçal Mayos Solsona, mestre em Direito pela UFMG (2019), especializado em Formação Política (lato sensu) PUC-RJ (2007), Graduado em Filosofia (bacharel licenciado) PUC-MG (2005). Membro dos grupos de pesquisa: Seminários Hegelianos (UFMG) e o Grupo Internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado (UFMG-UB). Sócio efetivo colaborador da Sociedade Hegel Brasileira. Assessor do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara. E-mail: agendamarzano@gmail.com.