Na construção do modelo brasileiro de universidades, acompanhou-se o desenho europeu, com concursos para as cátedras baseados em defesas de tese…
16-12-2024 às 09h29
José Luiz Borges Horta*
O sistema universitário brasileiro é tardio no mundo iberoamericano e no Espaço Ibero-Americano de Educação Superior. Sabemos que — e quanto — a fragmentação da colonização castelhana produziu a fundação de universidades de forte cunho religioso por todo o continente americano (hoje muitas vezes tornadas universidades públicas e chamadas de universidades nacionais), e gerou um avanço intelectual sob estrito controle de ordens religiosas. Já o domínio português sobre as terras brasileiras impediu iniciativas de natureza educacional substancial, fazendo com que apenas após a fundação do Império do Brasil, em 1822, e particularmente após a longeva Constituição Imperial de 1824, fosse possível a criação de educandários superiores no Brasil.
Assim, aos 11 de agosto de 1827, fundaram-se os primeiros educandários superiores do Brasil, não por acaso duas faculdades de Direito, distantes da corte (no Rio de Janeiro) mas vocacionadas à preparação da elite dirigente nacional. O modelo seguido foi o da Universidade de Coimbra, comumente chamado de coimbrão, no qual nossas ancestrais faculdades — em Olinda e em São Paulo — possuíam lentes responsáveis por cadeiras: deste modo, as faculdades principiaram com lentes catedráticos e (veremos) lentes substitutos.
Com a derrubada do Império, cada província pôde fundar sua própria experiência educacional superior, daí surgindo as múltiplas faculdades públicas de Direito nos novos estados-membro da novíssima Federação brasileira: em Minas Gerais, já em 1892, três anos após a debacle do Brasil Império, a Faculdade livre de Direito surgiu sob a liderança de Afonso Pena, Conselheiro do Império e, neste, membro do Poder Moderador, egresso da ancestral Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, e na República Presidente de Minas Gerais e depois da própria República. A Casa de Afonso Pena foi fundada no modelo coimbrão, com lentes catedráticos e logo lentes substitutos, mas já nas primeiras décadas do século XX passou a adotar concursos públicos com defesa de tese para o posto de catedrático, com o que nela se consolidou um espírito fortemente acadêmico de respeito as cátedras — coerente com o fundador, que obtivera em São Paulo a aprovação de sua tese Letra de Câmbio, ainda em 1871.
Paralelamente, o Brasil também estruturaria o seu sistema universitário, com a fundação das primeiras universidades ao final dos anos 1920, como foi o caso da Universidade de Minas Gerais, fundada por Antônio Carlos de Andrada em 1927, o que a coloca no posto de uma das mais antigas universidades brasileiras. (À UMG, depois federalizada e afinal chamada UFMG, sucederam-se muitas outras, como a Universidade de São Paulo, fundada em 1933, após a derrota daquela província na revolução dita constitucionalista de 1932).
Na construção do modelo brasileiro de universidades, acompanhou-se o desenho europeu, com concursos para as cátedras baseados em defesas de tese e intensamente disputados no meio político e social — e com a aprovação em excedente gerando o que se intitularia de livre-docência. A livre docência mimetizava a estrutura alemã, do docente privado [Privatdozent], habilitado a assumir uma cátedra; assim, aqueles que eram aprovados nos certames para catedrático, mas não indicados para ocupar a vaga em concurso, restavam habilitados a ocuparem a Cátedra, como livre-docentes, e portanto poderiam ser convocados a substituir os catedráticos que por alguma razão — no caso das faculdades de Direito, quase sempre, a ocupação de cargos públicos de distinta importância —, se licenciassem e necessitassem ser substituídos. Assim, o modelo coimbrão de lentes catedráticos e lentes substitutos se transformou no modelo brasileiro de catedráticos e seus livre-docentes, logo desdobrado em dois diferentes tipos de livre-docentes: aqueles aprovados em certame para catedrático, mas não classificados para ocupar a cadeira, e aqueles que se inscreviam diretamente para certames de livre-docência. Como nos concursos para catedrático, os concursos para livre-docência envolviam a defesa de uma tese, além de provas de conteúdo.
Registre-se que apenas nos anos 1930 o Brasil tenha iniciado de fato a implantação do curso de doutorado, que entretanto seguiu sem efetividade até fins dos anos 1950, uma vez que os docentes-pesquisadores propunham suas teses diretamente em certames para a Cátedra ou, alternativamente, para a livre-docência.
Com a “ditadura civil-militar” ou “regime de exceção militar” iniciado em meados dos anos 1960, os acordos MEC-USAID procuraram impor o fim do sistema de cátedras nas universidades brasileiras, como forma óbvia de enfraquecimento do peso social e político dos catedráticos e das universidades públicas no debate democrático brasileiro. Ao final dos anos 1960 e na virada para os anos 1970, o regime militar promoveu reforma universitária que buscava descaracterizar o sistema universitário brasileiro, impondo departamentos à norte-americana, esvaziando as cátedras, e criando uma estrutura em múltiplos níveis para a carreira docente (auxiliares, assistentes, adjuntos e — enfim — titulares, estes afinal correspondentes aos antigos substitutos então efetivados como titulares…)
E assim se fez, uma vez que o regime militar efetivou os livre-docentes, ou catedráticos substitutos, na nova condição de professores titulares, em igualdade formal de condições com os catedráticos efetivos, aqueles que antes conquistaram em certame a vaga que ocupavam (igualando também, segundo a ideia de diluir o peso da autoridade acadêmica, os antigos catedráticos, e seu peso social evidente, aos novos professores auxiliares que não necessitariam de nenhum tipo de produção ou proposição académica/científica para ingressarem — ou permanecerem — no magistério superior).
Este desenho, conquanto apoiado por partes substanciais da universidade-alienada-de-si, não prosperou nas universidades públicas brasileiras, que continuaram sobrelevando toda autoridade intelectual dos (novos) professores titulares, considerados, para fins acadêmicos, catedráticos. Para isto o provimento dos cargos de professor titular permaneceu, mesmo durante todo o regime militar e todo o período da Nova República, restrito àqueles que prestassem novo concurso, com novas provas, e especialmente com defesa de tese alcançada mediante uma longa carreira.
No período, as instituições brasileiras que mantiveram o sistema de três teses — a tese doutoral (PhD), de ingresso na carreira de docente-pesquisador, professor-doutor ou professor-adjunto, a tese de livre-docência (PD), de mediação para ascensão às cátedras e acesso à condição de professor-associado a elas, e a tese de cumeada, tese de cátedra (ou de titularidade) — se destacaram entre suas congêneres, auferindo maior prestígio nacional e saltando em qualificação e excelência, caso da Universidade de São Paulo e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A ascensão a Professor Titular via concurso foi mantida nas universidades públicas e gratuitas brasileiras até o final da Nova República, no Governo Dilma Roussef, quando pareceu ter sido implementado o projeto construído no Grupo GERES, nos anos 1980, para promover a ascensão por tempo de serviço, sem novo concurso, à função de professor titular.
A proposta do GERES (Grupo Executivo para a Reformulação da Educação Superior), formulada no Gabinete do Ministro da Educação Jorge Konder Bornhausen, em 1986, pareceu vingar com a legislação construída no governo Dilma, quem estabeleceu a regra da exigência do tempo de serviço prévio para a ascensão a cátedra. Nada obstante, a própria legislação anti-autonômica hoje vigente faculta a ascensão, quer mediante memorial de carreira, quer mediante tese inovadora, o que produz um desenho jurídico dúbio, anfíbio, segundo o qual os professores titulares seguem sendo catedráticos, na exata medida em que não lhes basta simplesmente a ascensão por tempo de serviço via avaliações anuais ou bienais, mas necessitam de uma aprovação em um certame específico, no qual somente serão arguídos por catedráticos de outras instituições, nacionais ou estrangeiras, sob a presidência de um único docente catedrático da instituição de origem. Mais: no certame de ascensão à titularidade, se exige a presença de uma (ou mais) tese(s).
No sistema federal, é possível e é imperativo exigir a tese doutoral prévia, mas também é potencial exigir nova tese, quer de titularidade (ou de cátedra), quer, per analogiam, tese prévia de livre-docência. Já no potencial sistema das unidades federativas, como é o caso das universidades estaduais paulistas, na vanguarda científica nacional talvez exatamente por isso, pode-se seguir o sistema das três teses, a saber a tese de doutorado, a tese de livre-docência e a nova tese de titularidade (ou cátedra) já em sede do concurso de ascensão e provimento do cargo de professor titular.
Desta forma, no Brasil, existem três tipos de teses que um docente poderá defender, em ordem hierárquica: a que corresponde ao mais elevado de todos os graus universitários, chamada de tese doutoral (Philosophiae Doctor, a tese de PhD), comum a todas as universidades e academias do mundo, a tese de livre-docência (Privatdozent, a tese de PD, ou Priv.-Doz.), que hoje exige do seu proponente prévio grau doutoral (e portanto é uma tese de segunda magnitude, ainda maior do que a tese doutoral), e a tese de titularidade ou cátedra, que pode ser tanto concebida como equivalente à tese de livre-docência (uma vez que habilita ao exercício da função e ao provimento do cargo de professor titular ou catedrático) ou como a proposição de uma nova tese, esta sim de terceira magnitude, a tese de cátedra propriamente dita.
Assim, ao falar em tese de titularidade ou tese de cátedra, no sistema universitário brasileiro, nos referimos a (ao menos) uma tese-de-habilitação [Habilitation], nos termos do sistema universitário europeu. Os dois termos — titular e catedrático — são assombrosamente polissêmicos, antonômicos e de confusa compreensão, uma vez que na tradição europeia um professor titular (quer em alemão, quer em castelhano, por exemplo), é um professor que possui apenas um título, mas não um cargo, uma cadeira, que se reserva em qualquer Academia àqueles que, em língua inglesa e.g., se chamarão full (completos) professors, ou mesmo literalmente Chair Professors (catedráticos).
Sem a defesa de teses de nível mais avançado que as teses doutorais, para algumas das academias mais distintas do universo educacional brasileiro, um professor titular não terá todas as prerrogativas substanciais pertinentes ao cargo e função.
Tomada na sua singularidade, uma tese de cátedra é uma autorreflexão de grande relevo, uma confissão genuína de fé intelectual: por isso, mais que original e contributiva, como a tese doutoral, espera-se uma tese de grande autenticidade e lastreada no intelecto único de seu proponente — daí o caráter retrospectivo-e-prospectivo com que as teses de cátedra muitas vezes são apresentadas (ou presentificadas perante o tribunal da História), um rememorar do destino e da historicidade do projeto intelectual do acadêmico que a redige e agiganta perante a comunidade universitária. (Talvez por isso as ciências naturais prefiram memoriais, ao invés de teses, como muitas das ciências culturais e hermenêuticas).
Hegel, o Filósofo da Contemporaneidade, discretamente, habilitou-se na hoje Friedrich-Schiller-Universität Jena, em 1801, com uma dissertatio philosophica intitulada De Orbites Planetarum, para cuja defesa agregou doze teses, nas quais terá elencado a chave do seu projeto de vida filosófica: “A contradição é a regra do verdadeiro, a não-contradição, do falso”; “A ideia é a unidade do finito e do infinito, e toda a filosofia vive nas ideias”; “A eticidade perfeita se situa em contradição com a virtude”.
Joaquim Carlos Salgado, o Filósofo da Mineiridade, em 1991, enunciou seu projeto jusfilosófico na monumental A Ideia de Justiça em Hegel. (Dois séculos após a ascensão espiritual de Hegel, seu Sistema segue crescendo, e a cada ano os Hegel-Archiv, desde a Ruhr-Universität Bochum, lançam um novo volume de textos de Hegel encontrados postmortem.) Salgado, catedrático de Teoria Geral e Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da UFMG entre 1991 e 2009, segue escrevendo ainda pessoalmente, em Belo Horizonte, sede do Idealismo Alemão do século XXI, de onde já lançou cinco volumes de sua Teoria da Justiça — e o prelo guarda um novo volume, já anunciado para 2025.
* José Luiz Borges Horta, 53, é Professor Titular de Teoria do Estado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordena na UFMG a Linha de Pesquisa em Estado, Razão e História e o Grupo internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado. Professor Visitante na Universitat de Barcelona, é membro da Sociedade Hegel Brasileira e do Centro de Excelência Jean Monnet em Estudos Europeus. Defendeu na UFMG, em 17 de dezembro de 2020, a tese de cátedra Dialética do Poder Moderador. Contato: zeluiz@ufmg.br