De acordo com as pesquisas de Curt Lange, as primeiras manifestações de bandas de música em Minas Gerais datam do final do século XVIII e início do século XIX.
14-11-2024 às 12h12
Por Dr. Handel Cecilio (www.handelcecilio.com)
As bandas de música, também conhecidas como corporações musicais, desempenham um papel significativo na história e na cultura de Minas Gerais. Essas formações, muitas vezes centenárias, são parte integrante das tradições locais, além disso, seu estudo abrange aspectos históricos, socioculturais, educacionais e patrimoniais. Segundo o pesquisador Márcio Miranda Pontes: ‘Desde os charameleiros do período colonial, as bandas participaram ativamente da vida social e cultural da comunidade mineira por meio de eventos religiosos, cortejos fúnebres, carnavais, programações cívicas e retretas, com execuções em praças públicas, coretos e adros de igrejas. Certamente, por esse motivo, Minas Gerais é o estado brasileiro que possui mais bandas de música em seu território‘ (PONTES, 2008, p. 04).
O musicólogo Francisco Curt Lange (Günther Lange) foi um pesquisador na área da musicologia latino-americana, com ênfase na história da música colonial brasileira, especialmente em Minas Gerais. Seus estudos revelaram a riqueza e a complexidade da vida musical na região. Curt Lange dedicou-se a pesquisar os manuscritos musicais encontrados em arquivos e igrejas de Minas Gerais, revelando a existência de um rico repertório musical praticado por bandas e orquestras locais. Ele enfatizou que as bandas de música desempenhavam um papel crucial nas celebrações religiosas, festividades cívicas e na educação musical da população.
De acordo com as pesquisas de Curt Lange, as primeiras manifestações de bandas de música em Minas Gerais datam do final do século XVIII e início do século XIX. Contudo, identificar exatamente qual foi a primeira banda de música é um desafio, devido à escassez de registros documentais precisos daquela época. Entre as bandas mais antigas mencionadas em seus estudos estão:
- Sociedade Musical Santa Cecília: em Ouro Preto, fundada em 1775, é frequentemente citada como uma das mais antigas bandas de música de Minas Gerais e do Brasil. Lange destacou sua importância na vida religiosa e social da comunidade ouro-pretana.
- Lira Sanjoanense: em São João Del-Rei, fundada em 1776, também é reconhecida por sua longa tradição musical. Lange ressaltou o papel dessa banda na manutenção das tradições musicais barrocas mineiras.
- Banda Ramalho: em Sabará, embora haja debates sobre sua data exata de fundação, é considerada uma das bandas mais antigas, com atividades registradas desde o final do século XVIII.
A Importância Histórica das bandas de música mineiras
- Contexto Colonial: As bandas de música estavam intimamente ligadas às irmandades religiosas e às atividades das igrejas, sendo fundamentais para a realização de missas, procissões e festas religiosas.
- Formação Musical: Serviam como centros de formação para músicos, muitos dos quais eram afrodescendentes ou mestiços, contribuindo para a disseminação do conhecimento musical entre diferentes camadas sociais. Muitos músicos das orquestras que tocavam nas missas nos períodos coloniais e imperiais tinham sua formação nas bandas locais. Até mesmo nos dias atuais, muitos estudantes das escolas de música das universidades mineiras vêm de bandas locais.
- Patrimônio Cultural: As bandas ajudaram a preservar e transmitir tradições musicais europeias adaptadas ao contexto brasileiro, resultando em um sincretismo cultural único.
O repertório das bandas mineiras é resultado de um processo histórico que remonta ao período colonial. Influenciadas inicialmente pelas tradições musicais europeias, especialmente portuguesas, essas bandas incorporaram ao longo do tempo elementos da cultura afro-brasileira e indígena, resultando em um acervo musical diversificado. Principais Gêneros e Composições deste repertório:
- Marchas e dobrados
- Marchas Militares e Cívicas: Originárias das tradições militares europeias, as marchas são peças fundamentais no repertório das bandas, executadas em desfiles cívicos e procissões religiosas.
- Dobrados Brasileiros: às vezes referidos como “dobras”, são composições semelhantes às marchas, sendo tipicamente nacionais, apresentam melodias vibrantes e são apreciadas por seu caráter festivo e enérgico.
- Peças Religiosas
- Hinos e Cantos Litúrgicos: Utilizados em celebrações religiosas, festas de padroeiros e eventos litúrgicos, muitas dessas composições foram adaptadas ou criadas especificamente para as bandas mineiras.
- Motetos e Procissões: Peças que acompanham procissões e rituais religiosos, são peças eruditas adaptadas para a formação instrumental das bandas. Algumas vezes são baseadas em tradições seculares.
- Música Popular Brasileira
- Chorinhos e Sambas: Representam a incorporação de gêneros tipicamente brasileiros, trazendo leveza e alegria às apresentações.
- Valsas e Polcas: Heranças europeias adaptadas ao estilo brasileiro, essas peças são populares em concertos e festivais.
- Obras Eruditas
- Arranjos de Compositores Clássicos: Peças de compositores como Beethoven, Mozart e Tchaikovsky são adaptadas para a formação das bandas, enriquecendo o repertório e oferecendo desafios técnicos aos músicos.
- Composições Originais para Banda: Compositores brasileiros, como Antônio Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos, contribuíram com obras específicas para bandas sinfônicas e filarmônicas.
- Música Regional e Folclórica
- Modas de Viola e Cantigas de Roda: Refletem a cultura rural e as tradições folclóricas de Minas Gerais.
- Congado e Folias de Reis: Gêneros associados a manifestações religiosas afro-brasileiras, integrados ao repertório em celebrações específicas.
- Inclusão de Novos Gêneros: Mais recentemente, o repertório passou a incorporar músicas populares brasileiras contemporâneas e internacionais, como canções da MPB moderna e temas de filmes e novelas.”
Dois Exemplos Notáveis da Atuação de Bandas Tradicionais Mineiras
- Corporação Musical São Vicente Férrer de Formiga, Minas Gerais: a corporação tem desempenhado um papel significativo na promoção da cultura e da educação musical na região, sendo parte integrante das manifestações artísticas e religiosas locais. SegundoVinícius Eufrásio: ‘o conjunto musical teve sua fundação no ano de 1908 por meio da junção de operários que trabalhavam na construção da Estrada de Ferro Oeste e, na realidade histórica das práticas musicais de Formiga, destaca-se como o grupo instrumental com maior tempo de atividade ininterrupta, aproximadamente um século‘ (EUFRÁSIO, P. 3).
Corporação Musical São Vicente Férrer em 1924
Fonte: Acervo da Corporação Musical São Vicente Férrer.
A corporação foi estabelecida com o objetivo de fomentar a prática musical entre os habitantes de Formiga e arredores. Ao longo dos anos, tornou-se uma instituição respeitada, promovendo a formação de músicos e a preservação das tradições musicais mineiras. A devoção a São Vicente Férrer, padroeiro da banda, reflete-se em suas atividades, muitas vezes ligadas a eventos religiosos e comunitários.
- Vesperata em Diamantina: Uma Sinfonia ao Ar Livre que Encanta Corações
A Vesperata é um evento musical único que ocorre na cidade histórica de Diamantina, situada no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Conhecido por sua originalidade, este espetáculo ao ar livre celebra a rica tradição musical da região, combinando música, arquitetura e cultura, e atraindo visitantes de todo o Brasil e do mundo. Os músicos das bandas tocam das sacadas dos casarões históricos, transformando a ‘Rua do Beco’, ou ‘Rua da Tecla’ em um cenário singular, um palco a céu aberto. A atmosfera é complementada pela iluminação suave dos lampiões e pela arquitetura barroca que remete ao século XVIII, período áureo do ciclo do diamante na região.
Fonte: https://minhasgerais.com.br/diamantina-e-regiao/vesperata-em-diamantina/
A Vesperata teve seu início no final da década de 1990, mais precisamente em 1999. O nome “Vesperata” deriva de “Vésper”, referência ao entardecer, horário em que as apresentações têm início. O evento foi idealizado como uma forma de revitalizar a vida cultural e musical de Diamantina, aproveitando a arquitetura colonial e a tradição musical já existente na cidade. A Vesperata ocorre nas noites de sábado, principalmente entre os meses de abril e outubro, aproveitando o clima ameno da região. Os músicos, integrantes da Banda Mirim Prefeito Antônio de Carvalho Cruz e da Banda Sinfônica da cidade, posicionam-se nas sacadas dos casarões coloniais da Rua da Quitanda. Com regência no chão, maestros conduzem a orquestra que, do alto, projeta melodias pelas ruelas históricas. Os espectadores, acomodados em mesas ao longo da rua, desfrutam de um repertório que vai do clássico ao popular, incluindo peças de compositores como Pixinguinha, Tom Jobim e Villa-Lobos.
Nestas noites, a culinária mineira desempenha um papel fundamental. Mesas e cadeiras são dispostas nas ruas pavimentadas com pedras e os restaurantes locais estendem seu serviço para essas áreas, permitindo que o público desfrute de refeições enquanto aprecia as apresentações musicais. A hospitalidade mineira é notória; proprietários e funcionários interagem com os clientes, contando histórias sobre a cidade e oferecendo sugestões dos melhores pratos e bebidas.
Além de oferecer entretenimento de qualidade, a Vesperata desempenha papel significativo no fomento à cultura e ao turismo em Diamantina. Hotéis, pousadas, restaurantes e comércios locais beneficiam-se do aumento no fluxo de visitantes durante os períodos de apresentação. A música atua como uma ferramenta para divulgar a mineiridade e impulsionar o desenvolvimento econômico regional.
Considerações Finais
As bandas de música são verdadeiras guardiãs do patrimônio cultural mineiro e desempenham um papel fundamental na preservação e disseminação da cultura. Elas refletem a alma de Minas Gerais e a pluralidade de influências que moldaram sua história musical.
Os músicos, com sua dedicação e talento, são os protagonistas dessa jornada cultural. Eles não apenas entretêm, mas educam, inspiram e fortalecem os laços comunitários, promovendo a inclusão social e a valorização das tradições. Suas performances nas ruas históricas, nas igrejas e nos coretos das praças públicas transformam o cotidiano em celebrações da identidade mineira. Nesse contexto, a música torna-se uma poderosa ferramenta para divulgar a mineiridade e promover o intercâmbio cultural.
Em suma, a valorização da música, dos músicos e das bandas de música é essencial para a perpetuação da tradição mineira. Ao celebrar e apoiar essas manifestações culturais, reafirmamos nosso compromisso com a preservação da identidade e do patrimônio imaterial de Minas Gerais. Que as melodias que ecoam pelas montanhas e vales continuem a inspirar corações e a contar as histórias de um povo orgulhoso de suas raízes e de sua mineiridade.
Como exemplificado pela Vesperata de Diamantina, a música tem o poder de atrair pessoas e até multidões, gerando benefícios econômicos e sociais. Por isso, é fundamental que líderes, administradores, governantes, empresas e comunidades reconheçam que investir na música e, principalmente, nos músicos é essencial para promover o desenvolvimento cultural e econômico da sociedade.
Dr. Handel Cecilio – Organista e Pianista – Concertista Internacional
Professor de Música – Músico para Eventos Sociais.
Referências
- PONTES, Márcio Miranda. Dobrado Belo Horizonte / Bento, José. Belo Horizonte: Editora Pontes: 2008
- Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD): Teses e dissertações sobre bandas de música.
- Lange, Francisco Curt. Música Colonial Mineira. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1982.
- Lange, F. Curt. Estudos Musicológicos sobre Minas Gerais. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura, 1983.
- Silva, José Maria Neves da. História das Bandas de Música em Minas Gerais. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura, 1982.
- Eufrásio, Vinícius. Entre Pautas, Papéis e Fragmentos: As Bandas de Música a partir dos Acervos Documentais de Formiga (Minas Gerais). In: Silva, Arthur Vieira da; Machado, Kátia Pereira (Orgs.). Bandas de Música: Intersecções Históricas, Identitárias e Educacionais. Salvador: EDUFBA, 2021, p. 61-84. ISBN: 978-65-89284-30-7.
DOI: 10.23899/9786589284307.4