Apesar do entusiasmo de muitos republicanos brasileiros pela república estadunidense, a opção por este modelo de bandeira despertou divergências dos republicanos que se orientavam.
14-11-2024 às 07h:32
Sérgio Augusto Vicente*
Os símbolos desempenham importante papel no processo de legitimação dos regimes políticos ao longo da história. Na transição do regime monárquico para o republicano no Brasil, no final do século XIX, diversas disputas pautaram a redefinição do repertório simbólico da nação. O processo de escolha da nova bandeira oficial do país, destinada a substituir a bandeira do Império, envolveu intensas batalhas entre concepções políticas distintas.
Na ocasião da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, pelo menos duas versões de bandeira se inspiraram no modelo norte-americano. Uma dessas versões, atribuída aos sócios do Clube Republicano Lopes Trovão, conservava nas faixas horizontais as cores verde e amarela da bandeira imperial. Esta chegou a ser levada pelos republicanos civis às ruas no dia 15 de novembro e foi hasteada por José do Patrocínio na Câmara Municipal, onde permaneceu até o dia 19. Uma dessas versões também esteve içada a bordo do navio Alagoas, que levou a família imperial para o exílio na Europa, tão logo a monarquia foi derrubada.
Apesar do entusiasmo de muitos republicanos brasileiros pela república estadunidense, a opção por este modelo de bandeira despertou divergências dos republicanos que se orientavam, de um lado, pela experiência revolucionária francesa e, de outro, pela filosofia positivista de Auguste Comte. Entre esses, havia ainda os que defendiam uma bandeira republicana que dialogasse mais fortemente com a tradição monárquica. Segundo Clóvis Ribeiro, Marechal Deodoro “queria manter a bandeira do Império, com eliminação apenas da coroa”. Alguns estudos e projetos de bandeira elaborados nesse período apresentam poucas alterações em relação à bandeira do Império, como é o caso de um projeto de bandeira existente no acervo histórico do Museu Mariano Procópio, em que apenas a coroa imperial foi substituída pelo barrete frígio (vermelho), o famoso símbolo republicano da liberdade na Revolução Francesa.
Dentre os vários modelos de bandeira em disputa naquele contexto, o governo provisório adotou, em 19 de novembro de 1889, a versão que seria considerada a oficial. Trata-se da versão concebida pelos positivistas ortodoxos e desenhada por Décio Villares. Enviada ao governo provisório de Marechal Deodoro da Fonseca por intermédio de Benjamin Constant, a nova bandeira oficial apostou na permanência de elementos da bandeira do Império, como o retângulo verde, o losango amarelo e as estrelas. Da antiga bandeira foram excluídos apenas os emblemas imperiais, como a cruz, a esfera armilar, a coroa, os ramos de café e tabaco.
Embora considerado um modelo hegemônico – tendo em vista a força política dos positivistas na ocasião – e permanecendo como a bandeira oficial do país até a atualidade, sua aceitação não foi unânime. O lema “Ordem e Progresso”, evocado na divisa que atravessa a esfera azul, dividiu políticos, autoridades e alguns segmentos da sociedade civil: para uns, contrariava o conceito de liberdade atrelado à República e, para outros, significava a imposição de uma doutrina cujos adeptos não compreendiam parte expressiva da sociedade brasileira. A divisa positivista despertava, inclusive, críticas de alguns católicos, que viam nela a exaltação de uma seita “dissidente”. Domicio da Gama, por exemplo, chegou a declarar na Gazeta de Notícias, em 16 de março de 1890, que estariam propagando na Europa “o boato de haver o Brasil substituído a religião católica pela positivista”.
Outros críticos da época, como o famoso caricaturista Ângelo Agostini (1842-1910), por diversas vezes publicizaram aspectos da realidade brasileira que consideravam contraditórios e contrastantes ao lema “Ordem e Progresso”, como as velhas mazelas políticas, econômicas e sociais enfrentadas pelo recém-instaurado regime republicano. Nesse sentido, como não lembrar da icônica charge de Agostini, veiculada pela revista D. Quixote, em 1895,em que Marianne, a alegoria francesa da república, é representada cabisbaixa e montada em um jumento/burro, de costas viradas para a cabeça do bichano, puxado em um cabresto pelas mãos de autoridades brasileiras, em sentido oposto à “Estrada do Progresso”, com a bandeira positivista “ostentando” o lema “Desordem e Retrocesso”.
Em 1896, o poeta Correia de Almeida (1820-1905) também não poupou sua verve satírica ao registrar sua “desilusão” com o curso do novo regime e o patriotismo estampado no manto cívico republicano. No livro Produções da Caducidade, o idoso padre-poeta de Barbacena satirizava os “iludidos” com o que entendia como a falsa marcha do Brasil para o progresso:
Inveja eu até que tive somente
de quem crê que o país vai caminhando
a passos de gigante, desde quando
a milícia nos trouxe o bom presente.
O padre-poeta, valendo-se de sua autoironia, incorporava a persona de um “velhinho” para expressar todo seu humor cáustico. Não era ele um “sebastianista”, um saudosista da monarquia ou defensor de sua restauração. Padre Correia integrava aquele grupo intelectual que, depois de muita militância abolicionista e críticas às mazelas do Brasil-Império na imprensa, assistia a tudo como um ancião que não “acompanha a brava gente” nem “atende às vozes do comando”, limitando-se a assistir ao “espetáculo” da política brasileira:
Agora vem tentar-me de repente
outra inveja maior, e estou banzando,
sem atender às vozes do comando,
e sem acompanhar a brava gente.
A persona do padre-poeta e a Marianne de Agostini, descontentes e desiludidos, parecem arrastados pelas forças do retrocesso, percebendo-se impotentes no empreendimento de qualquer luta ou resistência capaz de transformar a realidade. No entanto, escrevendo ou desenhando, Almeida e Agostini tinham à sua disposição uma única arma: a quixotesca linguagem do humor. Assim como ambos, muitos intelectuais “inconformados” e “desajustados” se valiam do humor como verdadeiro refúgio. E mais do que isso: como chave interpretativa e identitária da nação.
Ironizar, debochar e carnavalizar o ridículo levado a sério poderia parecer para muitos humoristas a arte de parafrasear piadas prontas, em que a “desordem” simula a “ordem”; e o “retrocesso”, o “progresso”. Assim expressava O Malho, em 15 de novembro de 1913, por ocasião dos quatorze anos da Proclamação da República: “O nosso povo anda tão acabrunhado com as dificuldades da sua vida, tão indiferentes às preocupações e gentilezas do mundo oficial, tão enojado pela pressão constante das ratas e gafes de seus dirigentes, tão desesperado por se sentir cada vez mais banido de todos os seus direitos, que só se preocupa em reagir pelo único meio de que o não podem despojar: o riso, a chacota, a esmulambação de todas as seriedades caricatas!”
Uma charge de Storni acompanha esse texto da revista. Nessa charge, o autor representa o “Zé Povo” (versão brasileira do personagem “Zé Povinho”, bastante conhecido na revista humorística portuguesa O Antonio Maria), apreensivamente posicionado sobre a esfera azul da bandeira do Brasil, que, não obstante o lema que carrega (“Ordem e Progresso”), encontra-se prestes a rolar ladeira a baixo. Duas mãos misteriosas, porém, seguram-na, impedindo que o desastre aconteça. E, logo abaixo da charge, o texto prossegue: “Embora o Brasil esteja sempre à beira do clássico abismo, não se precipita nele – ou não cai – porque há uma Divina Providência, que sempre o ampara…” À mercê das forças do imponderável, o “povo” (“Zé Povo”, melhor dizendo) figura no limiar do precipício, desprovido de amparo e assistência em um regime que se auto intitula ancorado nos princípios da ordem e do progresso.
Essas não foram, certamente, as únicas representações satíricas das paradoxais relações entre o lema positivista de uma bandeira, seu discurso cívico-pedagógico e a realidade brasileira. Parecemos condenados a viver à mercê da própria sorte (ou azar) nesse país. Porém, continuamos “arrotando”, hipocritamente, um lema positivista do século XIX, sem sabermos sua origem e muito menos as divergências e dificuldades de se “costurar” consenso a partir dele, num país tão diverso e plural como o Brasil.
O “patriótico” lema sempre reaparece ao menor sintoma de imunodepressão da democracia. Talvez “reaparecer” não seja o termo mais apropriado, tendo em vista que, desde o momento em que passou a ser professado no Brasil, não apresentou indícios de desaparecimento. Pelo contrário, em circunstâncias específicas, como as que passamos a viver de uns anos para cá, ele tem ganhado maior vitalidade, embora continue não convencendo diversos setores progressistas da política brasileira.
O fato é que, na história do Brasil contemporâneo, o famoso lema se transformou em dilema, estando em alta entre representantes da extrema direita, que não apenas arrogam para si o papel de legítimos patriotas e guardiões da nação, como também monopolizam os símbolos nacionais. Continuamos caminhando sem ordem nem progresso, mas insistindo na permanência de simulacros em meio ao caos: “escolas militares são melhores”; “na ditadura que era bom”; “intervenção militar já”; “a culpa é dos direitos humanos”; etc. Continuamos nos comportando como o “Zé Povo” das páginas da revista O Malho, sonhando com o “fantástico” resgate de uma “ordem” e de um “progresso” que nunca existiram. É esta República que temos a comemorar? Até quando exaltaremos lemas, mitos e messias? Enquanto isso, a esfera azul não para de rolar. A cada giro, maior o massacre e o nível de tontura…
*Graduado, Mestre e Doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora